segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

O invasor e o espadachim

 

Não que a existência dele, por si só, me incomodasse. Desde a última operação, havia se convertido em apenas um pedaço de carne batendo no peito, mas, a cada vez que passa por mim o espadachim, sinto como se uma espécie de ímã tentasse romper a pele. Nessas horas, o invasor dança, freneticamente, para um lado e para o outro, sem que eu possa interferir sobre a sua atuação, e o incômodo, o susto, depois a angústia dão medo de morrer, trazem tremuras, taquicardia e falta de ar, a cada vez que eu o vejo se aproximar, mesmo quando vem sem a espada.

- E foi assim, doutor, que resolvi retirá-lo, mais uma vez, do seu ninho – com a mesma faca com que eu já o havia extirpado uma vez. A mesma que usei quando quis pô-lo de volta... 

Numa manhã igual às outras, fiz uma nova incisão, sobre a mesma cicatriz da primeira e da segunda, só que, agora, com um pouco mais de dor, talvez pela precaução – tive mais tempo para deliberar. Enfiei a mão por entre as costelas, vencendo jorros de sangue, rompendo teias de artérias. Desta vez, por alguma razão, ele me pareceu mais arraigado. Quente, na minha mão, ainda pulsava forte e exalava um odor adocicado, que me fez pensar, por um instante, na esperança. 

Aproximei o ouvido direito de uma das válvulas, de onde se escapava o batido de um mínimo tambor, num ritmo bobo, tolo, tonto, tosco. Desta vez, não foi tão fácil fechar o corte, que, espero, cicatrize rápido. De modo inédito, tive de pôr no seu lugar um chumaço de algodão, para que a área não erodisse ou assoreasse.

Cuidadosamente, deitei-o, ainda morno, sobre a tábua de carne, previamente lavada. Retirei a pele, alguma gordura, ramos de nervos e veias. Cortei-o inteiro em pequenos cubos. A textura é muito macia, numa parte, e um pouco mais densa, na outra. Marinei tudo no limão por longos minutos, antes de mergulhar em um caneco de água fria. Piquei um dente de alho e meia cebola branca, cuidando para que tivessem as mesmas dimensões do ingrediente principal. Em seguida, esterilizei um vidro e arrumei os cubinhos lá dentro, por entre as camadas de cebola e alho. Acrescentei uma boa colher de azeite e duas pitadas de sal. Finalizei cobrindo com vinagre até perto da borda. Com a tampa bem enroscada, guardei na geladeira sob cinco graus. A duração é de seis meses.

- Acabo de ver o espadachim no fim do corredor. Fatalmente vamos nos cruzar em segundos. Farei o primeiro teste de resistência pós-operatória.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

agosto

 Reparou na inocência cruel das criancinhas

com seus comentários desconcertantes?

Adivinham tudo e sabem que a vida é bela.

(Cazuza)




doces 

jujubas

suspiros dúbios


confeitos 

ocos

desfeitos no ar


castigam assim meu paladar infantil


lágrimas que inflam

curvas normais


pastilhas coloridas

taxas glicêmicas

poesia trêmula

sem futuro


bilhetes mesméricos

escritos a mão


duas frescas castanhas

num prato 


com caracóis.




 

Farol

 Ora (direis)...


Numa noite assim

parnasiana,

o grafite,

destro,

esboça um cacho,

ao passo que

na mão esquerda,

quase autômata,

a borracha apaga

sestros,

ésteres

e as estrelas dos ilhós.



sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Paradoxo

 

Os excessos da sutileza 

são beijos ardentes 

cravados no nada: 

arrancam nacos de espectros, 

sangram a alma.



sonho marítimo



emergir até

a orla do teu

nome


quando o mar se põe