segunda-feira, 20 de julho de 2009

Aula de Yoga II

Flor no cerrado. Foto: Andréia Delmaschio.

A mesma professora de Yoga que um dia peguei lixando as unhas durante o relaxamento (aderbal verbo me corrige: não é aula; também não é professora) hoje me comoveu com um gesto simples, mas que, para mim, naquele momento, avultou merecedor do prêmio nobel: percebendo que eu sentia frio, tirou não sei de onde algo que também não vi o que era, porque mantinha os olhos fechados, e me cobriu os pés gelados. Delícia do carinho espontâneo e gratuito! Ela me deu: o calor! Desta vez estraguei o relaxamento pensando em por que aquele gesto me comovia assim. Assustei-me verdadeiramente ao perceber que há anos não era alvo dos cuidados de alguém; prometi doar parte do calor que conseguir juntar e pensar melhor sobre o gesto corriqueiro de lixar as unhas...

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A pena

A cadeira foi deixada num canto da calçada, ali perto do terminal de carapina, metade no sol, metade na sombra... eu vi quando passei de carro para o trabalho. Na vizinhança ninguém mais a percebe, porque todos já se acostumaram à presença do seu aço frio e arranhado, de segunda mão, conseguida graças a um locutor de rádio a.m. E no segundo que durou o impacto do quebra-molas, vi inteiro o rapaz que a habita: foi vestido com sua melhor roupa: uma camisa branca, de mangas e gola duras, hiperlavada e passada, uma calça de tergal azul-marinho e um par de sapatos pretos, brilhantes. Ele espera. Há mais de vinte anos, espera. É a sua saída mensal para a consulta - um evento. E vai de transcol, acompanhado pela mãe idosa, caridosa, a vida toda dedicada ao único filho homem. A pele do rosto é muito branca, macerada pelo frescor da varanda da casinha simples, onde recebe na boca, dia após dia, o almoço e o jantar. As mãos são lívidas de tanto não tocar; ele não consegue articulá-las, viram-se sobre si mesmas, enrijecidas, e a cabeça pende completamente por sobre o feixe clair, simulando um narciso triste, obrigatório, a olhar eternamente para o próprio umbigo, sem opção. Com o pai nunca estabeleceu nenhum tipo de relação, porque não lhe foi dada a felicidade de poder falar, e dizer que tem frio, calor, que lhe dói a garganta, que está ouvindo, sim, os pássaros lá fora, que o som da televisão à noite é inoportuna, que a comida está muito quente, que a água gelada faz doer ainda mais a garganta, que o incomoda já há oito anos, que não gosta de ser exposto às visitas, que precisa de ar puro, que o banho de mar, aos três anos de idade, foi algo que nunca mais esqueceu, e que, se pudesse pedir, pedia outro, e mais outro, e outro ainda... Tenho pena? Devo ter pena. Os mais sensíveis não podem nem mesmo ouvir essa palavra. Não aprovam que se tenha pena. Ninguém gosta de ser alvo da pena. De nada ajuda que eu tenha pena.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Bêbado e bailarina

Que matéria frágil eu moldo com minhas mãos, para além do sono mentiroso dos ansiolíticos: noites de flor, dias de febre... que insana disciplina - amar. Amar o que veio, com meu sangue inscrito nos cabelos, as águas se cristalizando para formar a um só tempo dois pares de mãos de anjos, quatro pernas se entrechocando: um bêbado e uma bailarina, meus súditos e senhores na dança sombria das delicadezas.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Maria Tomba Homem

Tarsila do Amaral: A negra.


Fim de uma tarde de mil novecentos e lá vai infância, na vila velha. Eu voltava da escola pelas ruas de ataíde, em direção à ilha das flores, o sol na nuca feito um farol alto. De certo modo, até hoje procuro aquela ilha. Ou talvez eu esteja parada na porta do armazém, no momento em que a sombra se agigantou à minha frente, petrificando-me o corpo ao fincar na terra, entre os meus dedos, uma vara longa e delgada. Era Maria Tomba Homem. Seu nome pronunciado em voz alta fazia tremer inteira a lista de chamada. Desde então folhea-se repetidamente, diante dos meus olhos, a série de gigantes coloridos que já habitava os meus sonhos diurnos.