quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Londrina

Fragonard. Os amantes, 1780.

Ao passarem pelo portão ele roçou de leve, na sua, os pêlos da perna. Pareceu proposital, mas pairava muito álcool na bolha de insegurança que em breve arrebentaria no ar. Só então ela percebeu que ele usava aquelas bermudas ridículas que simulam calças, mas não chegam sequer às canelas. Ele pediu a chave. Ela ainda procurava na bolsa quando ele enfiou a mão e foi tirando o molho num gesto apressado, surpreendente. Entraram: ela risonha: "Homens baixos nunca me meteram medo!", e ele sério, com cara de medo. No elevador teve início uma viagem: o espelho onipresente, as bocas crescendo desmesuradas naquele cubo de arpejos curtos, o primeiro encontro depois de meses de auto-erotismo diante da webcam. Chegaram ao quinto andar. Entraram como que empurrados, fugindo do frio londrino. Na certa havia mais alguém na casa, uma república no centro da cidade. Do único banheiro vinha um som de ducha. A porta do quarto tinha ficado aberta. A cama desarrumada se abria em copas quentes. Num instante ele a lançou sobre o colchão com a força de uma máquina desejante e não deu tempo para que voltasse a si: sentiu quando os cabelos dele, ainda molhados de sereno ou suor, resvalaram sobre a sua nuca despida e um cheiro bom de homem lhe veio da boca viril, próxima, e que no entanto fugia, ameaçava entregar-se e fugia. Resolveu reagir, virando o corpo para sentir-lhe o flanco, mas ele a imobilizou completamente naquela posição meio diagonal em que qualquer proximidade era impossível. Ela impôs novo golpe de força e por fim conseguiu mover-lhe um dos braços, chegando-se inteira ao seu tronco, mas ele já reagia, mordendo suas costas num afago cruel. Em um segundo ela uniu novas forças e, numa virada inesperada, subiu-lhe por cima, deixando-o em cruz e iniciando o que seria um abraço muito quente, quando ele lhe desceu pernas abaixo, gemendo e passando a língua muito úmida pelos seus tornozelos. Ela queria alcançar-lhe as nádegas, em meio àquela dança brutal no lusco-fusco do quarto iluminado apenas pelos faróis da rua, mas ele já fugia, e, lentamente, de modo determinado, imobilizava-a de bruços, dando sequência ao que iniciara pelas pernas. O efeito do álcool tinha de todo se esvaído e a querela já parecia durar horas. Ambos arfavam, procurando do outro as partes mais íntimas, que o poderoso senhor possuidor se esmerava sempre, mais e mais, em negacear, a si e ao outro, ampliando o desejo aos limites da angústia. Era de se esperar que a qualquer momento aquilo explodisse: de dentro, de fora, para qualquer dos lados... Mas a loucura tem suas imprevisibilidades, e seja o que tenha sido aquilo, permaneceu encarnado nas paredes do quarto de estudante, dentro das páginas de verlaine, escondido nas gretas do assoalho. Na manhã seguinte: banho morno, universidade, palestras, aeroporto...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Eu me sonhei...

É curioso o modo como as pessoas referem a matéria sonhada. Jô, minha fiel escudeira, usava, para narrá-la, um delicioso "diz-que", resolvendo desse modo a questão da irrealidade: "Diz-que eu estava numa praia bonita toda vida. Foi quando ele chegou e me entregou o tal embrulho..." Provindos de mamãe, os relatos oníricos sempre me intrigavam com a introdução totalmente inusitada: "Eu me sonhei que a água do poço vinha até a porta de casa...", transformada, depois de décadas de uso, em uma fórmula para mim ainda mais misteriosa: "Eu fiz um sonho em que era criança novamente, e nele minha mãe aparecia bem jovem...". Quando comecei a concluir sobre o "me sonhei", a partir das considerações de freud de que os personagens dos nossos sonhos somos sempre nós mesmos, ela me chega com a atividade insuspeitada do "eu fiz um sonho". Como assim, perguntei uma vez. E ela, renitente na sua simplicidade arguta: "Quem foi que fez, então, se só havia eu mesma na cama?"

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Aula de Yoga III

Monumento "Tortura Nunca Mais". Recife, Pernambuco.
Foto: Cassandra Lima. Flickr, 2006.

A professora de Yoga (que não é professora, bem dito - meu eterno bode expiatório) desfiava frases do hermógenes. Poderia ter lido um poema (diz o bith: poesia é auto-ajuda). Eu já implicava com a simplicidade excessiva, aparentemente sem fundo, quando me lembrei do relato de um presidiário, que vi num documentário. Ele declarava, em poucas palavras, como a prática da Yoga, por intermédio do hermógenes, tinha mudado a sua vida. E seu olhar confirmava o que ele dizia. Há tempos aprendi a ouvir as palavras de olhos postos nos olhos, o discurso ficando quase num segundo plano. No dia em que se disseminar o domínio (que algures já deve existir) do olhar para dissimulação das intenções, teremos de reescrever todos os códigos de ética e moral... Para quem está recluso, a importância da recriação de um universo no próprio corpo é inegável. Do mesmo modo, saber o alcance do calcanhar. E parece que hoje estamos quase todos reclusos; alguns renegam os limites mesmo do corpo (adalberto foi quem me lançou, certa feita: passo uma semana sem sair de casa; sou ou não sou um prisioneiro?).

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O andarilho na Ilha do Boi


O andarilho foi saindo lentamente da ilha em direção à cancela da entrada: mochila às costas, cabisbaixo, os cabelos levando de lembrança uns gravetos de hibisco...

Fiquei pensando sobre o que o teria atraído ao pequeno paraíso hermético da ilha de Vitória. Uma ilha dentro de outra não é mesmo algo fácil de se imaginar.

Mas ela é linda. A natureza no final da Praia da Direita parece estranhamente intocada. Numa capital, uma prainha quase sempre deserta, com peixes e algas, e grandes pedras que se pode percorrer... É verdade que, a depender do vento, o minério de ferro escurece as areias, mas os peixinhos lá estão, adaptáveis, e ostras em abundância.

O andarilho deve ter se informado previamente sobre a beleza da ilha, num site talvez, acessado de uma lan house próxima à rodoviária obscura em que desembarcou...

Acompanhei durante alguns segundos, pelo retrovisor, esse representante de uma espécie que eu já imaginava extinta. Há quanto tempo não via um mochileiro! Magro, a pele escurecida, os cabelos longos e mal cuidados pareciam serpentes sedentas, as roupas vinham desbotadas de tanto sol...

Mas a cabeça ia mais baixa que o normal. Aquela curvatura exagerada do pescoço me incomodou. A opressão das casas gigantescas, escondendo sob toneladas de cimento e vidro o que deve ter sido um dia um belo monte coberto de restinga seria razão para que se inclinasse tanto alguém que já carrega nas costas tantas paisagens?

De repente começaram a medrar, de vários pontos, as motos com homens no uniforme vermelho e cinza da empresa de vigilância. E vieram fechando o cerco em torno do rapaz como se tocassem uma rês perdida, tendo por aboio o barulho irritante dos motores, algo que tinha de incomodar mais os moradores que a presença esquálida do rapaz, pensei.

E ele veio saindo devagar, aparentemente ileso. Embora a cena já não me parecesse inédita, desta vez me chocou o erro de cálculo: que ameaça poderia representar às fortalezas de cerca elétrica o rapaz levando às costas uma mochila maior que ele? Depois entendi que a ingenuidade era minha. Ele enfeiava a ilha, era isso! Ele é aquilo em que, por um lance qualquer do acaso, um de nós pode rapidamente se transformar. É o espelho embaçado em que ninguém quer se mirar.

A cabeça baixa era como uma placa de aviso ambulante: É proibido - inclusive - olhar.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Flor e borboleta

Flor. Foto: Andréia Delmaschio.

As crianças confundem flor e borboleta - e não leram Clarice Lispector. Com uma caixa de giz de cera enchem as paredes de pétalas que voam, azuis e amarelas. A alegria descobriu primeiro a aura imaculada do corredor, invadindo depois todo o apartamento - pátinas, pisos, portas de armários. Imediatamente dispenso os papéis de parede. Dispenso o projeto de decoração. Dispenso o projetista, o jantar, o fim de semana. Dispenso a faxineira, com sua flanela ensaboada, sento no chão e declino em voz alta, um por um, os seus arabescos.