terça-feira, 22 de setembro de 2009

O Grito

Studies for the head of a screaming Pope.
Francis Bacon, 1952.

Grito é o cão faminto que vive no apartamento da senhora X. Alimentado da ração de dias iguais e noites tais, espera que a mulher retorne do pátio aonde desce diariamente, sozinha, armada de regador e rastelo, nessas horas em que as crianças, ainda de pijama e recolhidas aos seus apartamentos, fazem o dever de casa, florzinhas de veludo e feltro a escorrer pelas pernas roliças, os dedinhos dos pés entrando e saindo das brochuras de capas coloridas. Aqui e ali recolhem na pele algumas gotas de cola, que enrolam e guardam para amaciar depois nos dentes delicados. Ao longe ecoa o grito.

De manhã até o meio-dia a senhora X permanece no pátio. E rega, e rastela, e se regala com o seu trabalho, porque o orgulho do condomínio é seu jardim de tão viçosas amarílis que parecem mesmo nutridas de alguma misteriosa seiva descoberta pela discreta senhora. Plantas que florescem o ano inteiro, desrespeitando o vento sul. Nos dias de sol suas boquinhas vêm mais abertas colher mosquitos estourados do céu azul. São dias longos e claros cujas tardes as crianças preferem para vir sentar no jasmim, no jardim, e falar obscenidades umas às outras. Algumas dizem ter visto o grito no quinto andar, mas são crianças imaginativas! e desconhecem as normas do condomínio, que proíbem animais nos apartamentos.

De manhã as mulheres brotam esgotadas, o sol soassando os coletores de lixo. Amiúde o feijão é catado nas cozinhas. O grito desce do nono andar e é mais rude e rouco a cada dia. Algumas vezes, aproxima-se do segundo pavimento arranhando as paredes, arregalando os dentes enormes, e mais as crianças que os adolescentes o escutam, mais os adolescentes que os ocupados. No prédio, é claro, não há bebês.

Hoje, no dia de mais setembro deste sol, parece tudo muito amarelo acima e abaixo das amarílis, e os besouros mais lúcidos se emosquitam engolfados em declive pela goela das grandes flores. As crianças se apalpam quase a se desintegrar, mas o grito estronda, ronca, ruge, e os pequenos se espantam com o tremor que provoca e com a meleca escura que ele espalha na sua tez macia.
Há momentos de completo silêncio, quando tudo pára, mesmo o vento, e não se ouve o Grito...

É que então ele se alimenta.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O semeador

Van Gogh. O semeador.
Museu Nacional Vincent Van Gogh, Amsterdã.

O inconsciente é multimídia. (Jacques Derrida)

Uma criança montada num javali corre pela estrada em velocidade inacreditável. Recém-despertada no lombo do bicho, agarra-se com pavor às suas orelhas, no afã de salvar a própria vida e sabendo que, correndo assim, a queda seria fatal. Uma baba grossa escorre dos grandes dentes pontiagudos por sobre a pelagem grossa e ressecada do animal, que contorce a cabeça em busca dos dedos que lhe dilaceram a cartilagem. Certamente despertaram juntos. Em close vê-se a nuca da criança se eriçar. Nos seus olhos horrorizados incide uma luz que é quase de dia. Alguém diria que lhe procura a alma.

Perto dali, num balé nipônico, um corpo claudicante, indiferente ao que acontece ao redor, ascende da madrugada lamacenta, retirando do corpo, como se de um bornal, o gérmen negro que lança em todas as direções. A paisagem agora é feita de pontos pretos de tamanhos variados. O semeador é uma mancha negra cobrindo as outras, e sua presença, ao invés de encobri-las, multiplica-as.
Ao fundo vê-se uma árvore, ou o ramo de uma árvore, ou o galho de um ramo da árvore, ou a nervura de uma folha, ou.

Um outro corpo, ágil, salta da árvore para o ramo, e do ramo para o galho, e do galho para a folha, e.

No sentido oposto o sol se desloca, mais infinito que o pensamento sobre a árvore.

O semeador avança agora contra o sol, borrando a paisagem, sem o astro, insustentável.

Nos olhos da criança reflete-se o dedo de Vincent, riscando com artifício os cornos delicados de pessegueira. A força do gesto esboça a fragilidade do ramo, enquanto as orelhas de pau vão aos poucos sendo podadas da cabeça de Vincent, como se só lhe restasse disseminar-se, tão semelhante a si mesmo que quase cai para fora da tela dos olhos, desbotado, a pele seca, uma ruga recente na face côvea onde agora caminha o semeador.

O diretor se aproxima: “Corta!”

Zumbis

Pierre Flourens, fisiologista francês, sobre o uso do clorofórmio e das demais formas de anestesia: "... em consequência da paralisia geral da inervação, as dores são sentidas ainda mais vivamente do que no estado normal. O logro do público resulta da incapacidade do paciente de lembrar-se, após a operação, do que se passou. É concebível que as excitações dolorosas, que, em razão de sua natureza específica, podem ultrapassar todas as sensações conhecidas dessa espécie, provoquem um dano psíquico permanente nos doentes ou mesmo levem, durante a anestesia, a uma morte indescritivelmente dolorosa, cujas peculiaridades permanecerão eternamente ocultas aos parentes e ao mundo".

Aquilo que ouvi enquanto me "operavam" (operar, no aurélio: executar; obrar) me assombrou para sempre. Não fui submetida a muitas intervenções cirúrgicas, mas deu para notar que o medo pálido que senti enquanto a maca era empurrada em direção ao desconhecido é uma bobagem, se comparado ao horror que experimentei depois, ao escutar da boca dos operadores, enquanto cortavam e costuravam, considerações sarcásticas sobre o que retiravam do que era, ali, o corpo de um estranho. Durante a ação, notavelmente repetida centenas de vezes, pululam os relatos de antigas façanhas e as anedotas sem graça, repetidas no tédio de um trabalho cansativo (muito mais sujo e quase tão pesado quanto o das estivas), iniciam-se as recomendações de restaurantes e marcas de vinho, mas isso ainda não é nada se comparado ao modo totalmente desafetado como se referem a casos tenebrosos, recém-passados ou ainda por vir. São frases que caem na mente anestesiada como sentenças, porque afinal estamos nas mãos de deuses que, naquele instante, nos recriam; somos fantoches inertes em meio a aparelhos cortantes, de frios, e a máquinas ininteligíveis e distantes de nossas mãos, invariavelmente atadas à maca. Quando nos anestesiam, transformam-se curiosamente em zumbis.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Metade deus ou Os eleitos ou Quando Ele pisca o olho


"Olhe: se deus levou a todos para junto de si e somente você escapou do desastre, é porque Ele deve ter um desígnio muito especial para você. Não é justo você se rebelar, porque na verdade você foi abençoada pela mão do Misericordioso. Pense comigo: por que será que Ele a deixou com o braço direito intacto? Não será que foi para acalentar aqueles que ainda necessitam? Deus sabe o que faz, e pode estar certa de que os seus filhinhos agora estão em lugar muito melhor do que este em que vivemos. Deus é o pai de toda a justiça, e só Ele sabe o que faz. Nós jamais alcançaremos o pedestal da sua sapiência. Lembre-se do que aconteceu comigo: quando a casa foi invadida e toda revirada pelos assassinos raivosos, eu havia acabado de sair. Se não foi deus quem me protegeu, então? Hein, quem foi? No vizinho, minutos depois, eles fizeram aquele estrago, e a mãe dele, coitada, velhinha já, ficou irreconhecível, de tanta violência que usaram contra ela. Deus-me-livre-e-guarde, que até pensar essas coisas que você disse contra Ele já é pecado mortal. E a quem é que vocês recorrem, então, na hora do aperto?"

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Belchior no fim do mundo

Belchior. Auto-retrato.

O quarto é o mesmo em que fica o chico quando diz que está trancafiado num apartamento lá em paris para escrever um romance, eu disse. Fica aí, rapaz! Tenho certeza que ninguém na redondeza o reconhece. Tira esse bigode; ou melhor, deixa o bigode... Eu garanto: é mais fácil se lembrarem do rei mago que de você. Eu não lhe disse? Outro dia mesmo uma aluna da licenciatura me perguntou o-que-qui-era lisregina. Eu corrigi: o certo é lisergina - pode olhar no dicionário. Eu insisto: não precisa ir pro fim do mundo, que ele já era e, afinal de contas, lá pode ser a mesma chatice. Espalha suas telas por aí, fica pintando, espaço não falta. Aqui pelo menos você pode ir até a academia, puxar uns ferros - falei pra sacanear - e estou certa de que passará incólume. Ele riu muito, quase estouramos de rir, mas ao final achou a cidade quente e poeirenta. Sugeri a casa da mamãe, já que era pra rolar um isolamento, mas ele implicou com o lance de a velha chocar ovos de pato no microondas. Desencanei: desaparece daqui, então...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Utilidade pública

Preciso urgentemente de um ortopedista. Conhecem algum em vitória? Qualquer um, à exceção dos muito machistas ou homofóbicos, em geral de sobrenome italiano, que já experimentei todos os da lista, porque transformam o diálogo da consulta (quando o há, no dia em que estão a fim) num martírio: dispenso, por favor, os que marcam uma consulta a cada cinco minutos, os que assinam blocos de cheques diante do paciente e principalmente os sábios, de ventre budista (como será que a coluna os sustenta?), tão experientes que de lá mesmo do seu trono dourado, sem se levantar, pedem que se ponha a mão sobre o lugar que dói. Simples assim, e receitam o corticóide que nos inchará por meses. Talvez seja um lance de cura pela imposição das mãos que experimentam... no caso, por meio das nossas próprias mãos... Mas quando pergunto se, mesmo portando hérnias de disco, posso praticar yoga, ninguém sabe do que se trata (estou me referindo a yoga, claro). Assim como não devem conhecer, obviamente, a canela-de-macaco. Pensando bem, recomendem-me com urgência, por favor, um macumbeiro. Pode ser de qualquer vertente, não tenho tantos preconceitos quanto faço parecer logo acima. Fazer o quê? Cada um tem a formação que lhe foi possível! Trancado num quarto decorando as apostilas de química do cursinho caríssimo pago obviamente pelo pai empresário ou, ahahah, ortopedista, as tardes inteiras comendo meque-não-sei-quê-lá e tomando energético para ser aprovado no vestibular por cujo funil enfim escorregou, na época em que o organismo ainda metabolizava aquele mequeleca todo; trancando-se depois, por anos, numa fria sala de aula, num gabinete e, com sorte, num laboratório de anatomia... ah... caído agora, quilos e décadas depois, num consultório apertado sobre uma avenida idem, não daria mesmo para aprender e/ou ensinar nada sobre as pessoas e seus ossos – vivos. Por favor, recomendem-me, com urgência, um macumbeiro – dos bons.