quarta-feira, 28 de outubro de 2009

De beija-flores III

Andréia Delmaschio. Foto: Andréia Delmaschio.

Eu jogo com palavras. É a minha vida. (Philip Roth)

As dissidências entre real e imaginário... Mas, como mesmo? Como assim? Só se pode imaginar o real - ou não? Só se pode realizar o imaginado, certo? Ah, é pensamento sem fim, não há que separar ou juntar nada, não se trata de instâncias...

Alex leu o texto ilustrado por foto sua, e, assim que nos encontramos, perguntou sobre aquela passagem que eu omiti. "Qual?", indaguei. E ele: "Você não se lembra mesmo? Ah, queria eu ter esquecido!". E me narrou algo já completamente apagado da memória: "Eu, com pena do pássaro, devolvi-o ao ninho assim que os colibris o lançaram ao chão! Fui eu o responsável pela morte do bicho!".

E assim se revelou, de todo o acontecido, o fato que, aparentemente, forneceria a melhor matéria para a escrita. Aquilo que daria à crônica o bom desfecho foi simplesmente esquecido. Marcou-me tanto a conspiração extra-espécie para salvamento do pássaro que não me lembrei absolutamente da nossa interferência. Ou então a mente arquitetou um mecanismo de menos-culpa, para o prosseguimento suave dos nossos dias de férias.
Imagino quanto esquecimento, quanta deturpação... na verdade a impossibilidade sem tamanho de recuperarmos o dito acontecido. Aliás, não deve ter sido por acaso que a palavra dito começou a penetrar em certos lugares...

E olhe que tirei tanto prazer de relembrar o relatado! Gostei especialmente de replantar no texto o pomar inteiro de mamãe, e, quiçá, frutas que lá nunca existiram...

Agora há pouco, ao relê-lo, senti o cheiro do manjericão vindo direto do canteiro... Senti nas mãos a casca grossa das sementes do girassol... Tive nos dentes a trava azeda do maracujá...

Mas me esqueci de que Alex, entre condoído e confuso, apanhou no chão de terra o pequeno pássaro e devolveu-o, cuidadosamente, ao ninho, entregando-o, em suas mãos, ao apetite peçonhento do destino.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Quarta-feira de cinzas


No fundo do copo de leite os fantasmas noturnos começam a se dissipar. Flap flap um último cisne patina no círculo branco, atravessa o vidro e vai de encontro ao cinzeiro, onde tomba. Seu corpo exala uma fumaça suave. São quatro e vinte e cinco. A luz da rua, bordada pelas folhas do oiti, enche a sala de sombras que só se vão ao amanhecer. Nesta mesma posição, na manhã passada, notei o bolo de barbante engastado no pé do sofá. Hoje despertei com a cigarra do apartamento, mas não vi ninguém do outro lado.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

De beija-flores II

Colibri. Foto: Alex Delmaschio.

Assim que mamãe voltou definitivamente ao campo, os quatro irmãos íamos com muita frequência e empolgação visitá-la. A casa recém-adquirida estava ainda arruinada, pouco acolhedora, e a chácara nada mais era que um quintal pelado, cortado por um córrego de dentro do qual saía o fícus gigante, redundante, que hoje é o marco de entrada para aquele pequeno oásis em que se transformou o seu território, bem no meio do deserto que é o norte do espírito santo.
Nenhuma vegetação havia, além de dois coqueiros corriqueiros, doentes e improdutivos, hoje já derrubados pelas lagartas, e alguns pés de jiló. A primeira atitude de mamãe foi plantar girassóis na beira da estrada e em volta da casa. Umas fotos que fiz na época mostram a força daquela terra, até então dormente, revelada na beleza das flores gigantescas, e a admirável ausência de senso prático de mamãe, iniciando a reforma pelo jardim.
Ao desvanecer o apelo inicial da novidade, com o natural e paulatino rareamento das visitas, pudemos ver melhor o progresso que ocorria ali. Em pouco mais de um ano a casa havia sido reformada, ampliada, e o jardim se estendeu por todo o quintal.

À direita de quem entra ficava a horta e à esquerda o canteiro de plantas medicinais, menina dos olhos de mamãe e minha.

Nos fundos começavam a crescer, de um lado o cafezal, de outro as bananeiras e a batata doce, alternando, futuramente, com o milho e o feijão, depois com a cana e a araruta.

No brejo, próximo do córrego, o primeiro arroz estava pronto para a colheita. E o mais curioso: o ansiado pomar cobria todo o terreno, e incluía não somente as previsíveis jaca, manga, goiaba, laranja, abacate, cajá, graviola, jaboticaba, pitanga, limão, abacaxi, jamelão e acerola, mas também frutas raras ali, como a lichia, o abil amarelo e o roxo, a ameixa, o caqui e a laranjinha kin-kan, e os difíceis figo, pêssego e maçã, esta última tendo se negado sempre a produzir numa região em que jamais se viu uma goiaba verdadeiramente graúda ou uma graviola sem bicho... até que a velha senhora, sozinha, se estabeleceu no local.

Numa das ocasiões em que lá nos reunimos, estávamos todos sentados no chão da varanda que terminamos de caiar, comemorando embriagados de garapa com torresmo, quando percebemos que, revoando em torno da roseira principal do canteiro que antecedia a casa, um pássaro de pequeno porte gritava desesperado.

Alex, sempre diligente com gentes e bichos, ergueu-se rápido nas suas platinas e chegou o mais próximo que pôde, tentando entender a razão do desespero da cambucira - designou-a, que eu, de pássaros, entendo menos do que gostaria. E olhou daqui, olhou daqui... O bicho parecia mesmo pedir ajuda; seus gritos desafiavam o pequeno peito e estendiam-se, cortantes, pelo ar.

Chegamos a solicitar a experiência de mamãe, acreditando que poderia nos iluminar sobre a razão da balbúrdia. Notei então que o problema da experiência é que, com o tempo, ela pode virar um calo, e, se não me engano, mamãe afirmou que aquele pássaro é assim mesmo, faz algazarra por pouca coisa etc. Talvez quisesse nossa ajuda no grande forno de barro onde assava os pães para o lanche da tarde, porque ela também tem seu lado prático, mas os românticos peter pans e hobin hoods que criou não arredamos pé dali enquanto não descobrimos o segredo da cambucira.

Logo percebemos que na roseira estava posto um ninho, obviamente seu, habitado por um filhote ainda sem plumas. A mãe pulava para ali, rápida, beliscava o filhote, como se o quisesse erguer no ar, molinho que era, e voltava a soltá-lo na pequena cama côncava de capim seco. Nós acompanhávamos impotentes a sua movimentação, porque, ao primeiro sinal de aproximação, ela parecia se desesperar ainda mais. Em pouco tempo no entanto começaram a aparecer mais pássaros se agitando em torno do ninho - lembro-me ao menos de uma outra cambucira, como ela, e - curiosamente - de dois ou três beija-flores.

A solidariedade entre espécies diferentes sempre me assombrou...

E todos gritavam e beliscavam o filhote. Para nós era um espetáculo novo - e ininteligível. Tive pena do recém-nascido, e mesmo vontade de protegê-lo de tantos bicos, mas não me senti no direito de interferir naquilo que nem mesmo compreendia o que era. Alex reforçou: "Deixa, que a mãe sabe o que faz!". A saraivada de bicos curtos e longos durou alguns poucos minutos, que no entanto pareciam um século para a nossa espera embotada, sem qualquer entendimento do caso.

Foi então quando, súbito, a gritaria se acelerou, e também os ataques à pequena cambucira, todos lhe metendo o bico ao mesmo tempo. A violência daquilo já nos exasperava, quando num repente o barulho todo cessou e presenciamos uma cobra, pele idêntica ao galho, descendo da planta espinhosa num rastejo lento de animal saciado, os pezinhos do bebê-pássaro despontando ainda da boca.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Pés e cabelos

Van Gogh. Par de botas.
Museu Nacional Vincent Van Gogh, Amsterdã.

Francisco se atrapalha com tênis e sandálias. Seu pé comprido e fino - idêntico ao meu em cada traço, veia, canto de unha - parece se ampliar para os lados junto com a borracha colorida da papete, e então ele se desequilibra, toca nas coisas, tropeça e cai; foi feito para andar descalço. Em compensação, deve poder escalar pedras com leveza e admirável facilidade. Como a mãe. Feito um gavião ou um bode. Eu mesma, embora não tire as sandálias sequer para o banho, de tênis me sinto um alien: tenho medo de tropeçar na porta da sala de aula e cair direto lá dentro. Acontece mesmo de, por vezes, enquanto caminho, um pé esbarrar no outro, embora seu alinhamento seja perfeito. Nunca me acostumei a esses tênis rechonchudos que todos usam, aparentemente usufruindo deles muito conforto. O último que comprei está intacto no armário há exatos dez anos. É possível que a borracha tenha ressecado e, mesmo, que não me sirva mais, porque, ao contrário do que dizem, o corpo muda sempre - antes e depois dos quarenta. Ter passado pelos anos oitenta em plena adolescência, sem calçar um par de tênis, parece estranho, hoje, mesmo para mim, porém mais me assunta saber que cheguei aos dezoito sem ter vestido nunca a onipresente calça jeans, outro incômodo no corpo de meu pequeno filho. A mais antiga lembrança do assunto que trago comigo diz respeito a uma criança pobre, porém, contudo, todavia filha de costureira, o que muda muita coisa no mundo das aparências, ou seja, no mundo. Eu devo ter desejado, sim, me embrulhar em justos jeans, como o fazia a maioria das garotas da minha idade, mas não com muita força, que naquele tempo a imposição não tinha o alcance de hoje. E seria uma dupla afronta rejeitar as saias e vestidos tão lindos e tão baratos feitos pela minha mãe... É certo que às vezes ela exagerava um pouco, e eu ia à escola digamos um pouco bonita demais. Lembro-me de uma vez em que a dona nilda, assinante de revistas de moda e costureira das mais requisitadas na vila velha, resolveu estender deus dotes até os meus longos cabelos, e construiu ali um alto coque tipo b-52, que aos oito anos quase me matou de raiva e vergonha. E medo de que os colegas descobrissem que por baixo da banana brilhosa e loira que os fios lisíssimos compunham havia nada mais nada menos que uma bucha de bombril. Desgraça. Infelicidade. Aquilo me destruiu o dia, porque eu não podia desfazer o penteado. Depois de tentar fugir, cedia, contrariada e entre lágrimas, à estética obstinação materna. Obedecia sem que ela precisasse de mais argumentos. Ao caminhar em direção ao colégio, onde me encontraria com os meus colegas negros e pobres para o capítulo mais ridículo de uma já difícil relação, sentia no ouvido, feito o som de um violino fúnebre, o ranger dos finos fios de aço. Só sei dizer que a bucha foi descoberta, pinçada, puxada, espalhada, lançada pela sala aos pedaços. Naquele dia devo ter odiado minha mãe, como em tantos outros. Mas foi bom, para sentir de uma só vez como é ter cabelo de bombril e ser discriminado em público.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

De beija-flores

Foto: Flávio Crunivel Brandão.

Em brasília eles vinham aos bandos e quando se achegavam aos hibiscos que cercavam o quintal, era sempre em dupla. Mas lá se mostravam pequenos, apenas cinzentos ou levemente amarronzados; vez ou outra penso ter visto um maiorzinho, azul-marinho, rabo de tesoura, mas pode ter sido apenas uma memória que carreguei dos daqui, ora muito verdes, ora muito azuis, e acho que às vezes ambas as cores se misturam num só, espalhando reflexos prateados. Desde quando morava sozinha num apartamento pequeno já gostava de os atrair com o melzinho na janela, pingando de flores de plástico. Agora, com as crianças, eles frequentam a casa sem medo. A primeira coisa que notei foi isso: os beija-flores não temem as crianças. Talvez seu instinto nos perceba, adultos, muito cheios de dedos (ótimo duplo sentido!) e daí fiquem desconfiados: por que devotamos tanto zelo, afinal, ao nos aproximarmos deles? Confesso que o cuidado que tinha, quando acontecia de um deles ficar preso e não conseguir mais achar a saída, era resultado de medo: medo de machucar aquela fragilidade ambulante, de ser mal interpretada nos meus propósitos e mesmo um outro sentimento que existia antes de ter tido filhos: um receio de tocar o vivo, de não saber cuidar, ainda que por um instante. Quando criança, nas visitas à vovó, corria horrores das galinhas, que corriam horrores de mim... Mas as minhas crianças nunca se apavoraram com pássaros ou peixes, ou sapos, ou formigas, ou aranhas, ou galinhas, ou bois... E de manhã, quando acontece de entrarem na área de serviço três ou quatro colibris de uma só vez, é uma festa: eles voando lá em cima, em círculos, e as crianças correndo aqui em baixo, simplesmente espantando-os com uma fralda na mão e um "vai bóia" que eu mesma ensinei, numa manhã em que percebi um filhote já cansado de bicar o vidro. Depois de tanta comemoração que fiz no início, assim que eles descobriram o nosso jardim, florido mês após mês, não poderia simplesmente pegar de um pano na frente dos gêmeos e tocar o coitadinho mundo afora. Então me aproximei de modo discreto, abri a janela inteira à sua frente e disse: "Vai embora, querido. Sua mãe deve estar te procurando". Ontem, em meio ao burburinho sonífero do nebulizador, percebemos que algo acontecia no escritório e lá fomos nós, corajosas desbravadoras do desconhecido - flora e eu. Um filhote de pescoço super-verde e rabo ainda curto batia com o longo bico, brilhante feito grafite, num canto da escrivaninha, entre um calendário que parou em agosto e uma pilha de provas por corrigir. Apanhei-o cuidadosamente, porém sem temores, num gesto rápido o suficiente para que não fugisse, e seguro, para que não temesse, ele. Agachei-me para que a flora o visse de perto e sua expressão era - perdoem-me pela palavra - epifânica. Fez sinal de que queria tocá-lo. Aproximei-me com o filhote na mão. Pesava menos que um lápis. Ela fez levitar o indicador pela testinha brilhante, até à fina ponta do bico, e, como se ouvisse o eco do meu pensamento sobre a leveza do pássaro, notando certamente a sua semelhança com os lápis de cor, olhou-o muito fixamente e soltou um "ápice", que é como chama a lápis e canetas; "ápice", eu repeti. E abrimos a janela para o ápice - sua mãe já devia estar preocupada!