sábado, 30 de janeiro de 2010

Para emagrecer

 
Adolfo emagreceu 25 quilos lendo Os Mambo Kings tocam canções de amor. Mamãe emagrece quando quer, e o quanto quer. Desaparece lá pra roça e, quando volta, daí a um mês, parece outra - cabelo cortado, roupas novas, e se vangloria: "Emagreci bem; não foi?", matando a gente de raiva com a receita: "Ah, só parei de jantar!". Mas, se insistimos, então ela desfila parte do seu conhecimento das ervas: "Vocês, que são jovens, podem tomar chá verde, sene, alcachofra...". É tão fácil emagrecer, que alguns emagrecem de raiva. Outros emagrecem por amor. Difícil é amar. Ou odiar adequadamente. Mas se alguém pode emagrecer lendo, imagine só escrevendo... Engodo: não se põem mais coisas pra dentro lendo do que escrevendo. As trocas não são quantitativas, nem tão previsíveis ou equilibradas. Leitura e escrita não se separam pela adiposidade...

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O panfleto

Picasso: Frankenstein.

Recebi o panfleto no sinal, das mãos de uma moça gordinha, nariz fora do lugar. Era uma tarde sinistra: bateria arriada, calor de quarenta graus, um trânsito tipicamente capixaba, ou seja, com as faixas lenta e rápida nos lugares inversos, e obras por todos os cantos da cidade. Mas ali se desanuviou a feia paisagem que trazia comigo. Desopilei o fígado, como diziam os antigos. No folheto, a foto de um homem jovem, nu da cintura para cima, bronzeado, olhos claros e cheios de um falso desejo. (Ou será falso todo desejo, num tempo em que se é obrigado a desejar?) No verso da folha, por óbvia carência idiomática e completa inexperiência em marketing, enfileirava-se verticalmente, sem aviso ou tempo para abafar o riso, uma lista de itens, cada um seguido de seu valor. Assim: buço - 10 reais; queixo - 12 reais; nádegas - 20 reais; virilha - 20 reais; braço - 30 reais; perna - 40 reais; tronco - 50 reais. Irrompi em alta gargalhada, para tristeza insuspeitada da panfletadora, a quem quase pedi desculpas. Depois pensei em comprar um tronco novo, quem sabe! O preço estava ótimo! O sinal demorava em abrir, mas o inferno agora tomara outra feição, menos trágica. Como quando é bom o filme de terror: naturaliza-se toda e qualquer outra desgraça. No rodapé, em letras quase ilegíveis, a frase que deveria ter encabeçado a propaganda: Depilação a laser - promoção imperdível!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Frankenstein (parte 4)


Célia Ribeiro: "Corpos líricos sob o viaduto Caramuru".

Chamaram ao telefone. E se fosse dez anos atrás, poderia ter sido eu mesma me segredando na secretária eletrônica, como de costume, sobre o mestre evanescente. Dele, cada gesto ou palavra pediam para ser apalpados, filmados, decorados... Ele bem o sabia, cônscio da efemeridade dos papéis. Eu, que sempre fui avessa a hierarquias, afeiçoei-me, embora secretamente, sem batismo ou propalação, a ter um mestre assim, para além dos ditos e ouvidos, cônsul das condições paradoxais que se formam em torno de todas as relações. Dele aprendi o nome de batismo, polindo à água a pedra do meu nome. Soube-lhe o nascimento e a paixão do conhecimento. E foi ele quem propôs, um dia, que, num rito de exorcismo, cada um doasse parte de seu nome - aquela que mais lhe incomodasse - e que assim formássemos um monstro utilitário, uma espécie de vodu onomástico, o bode expiatório de todas as nossas vergonhas, recebidas como herança ou marca inesquecível do gosto paterno ou materno. À roda, digo, à mesa dos enjeitados, foram saltando, batizados com cerveja (uma pena, de tão belos!, joões e marias), os tradicionais severinos e sebastianas, os sonoros, inacreditavelmente recalcados, flávio e isabel, os históricos silva e sousa, todos os que traziam cristo no radical, desbravadores de terras e mares, como padilha e maltinti, o poético ribeiro, os compreensíveis pio e vil, e, sob meus veementes protestos, o adorável raimundo - um afã desde as noites em que adolesci sobre as páginas de aluísio de azevedo -, mais a minha penha e o seu batista... Tombaram ali carvalhos, salgueiros e oiticicas. E, viciados todos em estéticas e esteticismos, esmeramo-nos em organizar o nome estratosférico do nosso frankenstein, a fim de dar-lhe alguma decência. Concluído o serviço, concordaram quase todos que, retirados de nós e lançados à figura imaginária pela qual, na hora da saideira, nutríamos já alguma simpatia, o nome, resultante de tantos esquartejamentos embora, soava incrivelmente agradável aos ouvidos, bonito, raro e nobre. Mistérios do deslocamento. O garçom se aproximou e apresentou enfim a nossa conta. Assustamo-nos. Seu nome era Frank Stein.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Frankenstein (parte 3)


A campainha tocou. Vinte anos atrás. Era uma cigarra discreta, porém não o suficiente para um consultório de psicanálise, e pareceu-me mesmo absurda a sua instalação ali. Soou-me como um recurso didático ou de auto-defesa, não sei. Mas não quis tocar no assunto. O profissional era todo ouvidos. Eu nem era toda palavras, mas ele realmente ouvia como ninguém. Ouvia com os olhos, a boca, a ponta dos pés. Ouvia de modo tão poroso que eu ficava imaginando como é que fazia para se livrar de tantos discursos que passavam por ali num dia. Mais tarde descobri o óbvio. Mas o importante é que, se aquela crise dos vinte anos não tivesse ocorrido, hoje eu dificilmente entenderia os meus amigos mais angustiados e ansiosos - talvez fosse esse o meu quadro então. Do estado dos paranóicos, fóbicos e deprimidos no entanto ainda não tenho compreensão, porque me parece difícil uma verdadeira troca de experiências com eles. É preciso estar bastante preparado para poder ofertar algo a uma pessoa que permanece o tempo todo vigilante a cada palavra sua, a cada mínimo gesto, que se sente perseguido e foge feito um animal espantado ao menor sinal de conflito. Como criar interlocução com alguém que, de repente, tem medo de sair de casa, do quarto, do banheiro? Não basta oferecer-lhe - o sol! É necessário ter desenvolvido uma grande delicadeza para acreditar que se perca o desejo por absolutamente tudo sem saber ao certo por que razão. Imaginemos uma outra situação: alguém que não dormisse, pensando sobre o aquecimento global, a fome, a guerra, o terremoto no Haiti... Embora sejam situações que deveriam realmente nos tirar o sono, assim como as demais desgraças espalhadas pelo globo, pessoalmente não conheço ninguém que, sem notória desfaçatez, relate sofrer por isso a ponto de não querer mais se alimentar, por exemplo. Há às vezes uns ensaios nesse sentido, mas uma máscara blasé de intelectualidade arrogante - e limitada pela arrogância - logo desmorona. De todo modo, a quem olha de fora parece implausível que o outro seja feito de uma matéria tão fina que, por exemplo, tenha as mãos trêmulas e suadas diante de qualquer argumento mais insistente ou veemente, numa conversa informal. Eu nunca pretendi ignorar a fragilidade que pode advir de um trato sem solução de cada um dos pequenos obstáculos que a vida impõe, mas também não posso deixar de aconselhar para esses casos de real sofrimento - quando a opinião me é direta ou indiretamente solicitada - a resolução de problemas de ordem prática. Os argutos pensantes, ciosos da importância de seu cérebro, não precisam se preocupar, porque durante o ato mesmo de apertar ou afrouxar os parafusos do armário é que muitas vezes se solucionam complexas questões de ordem afetiva; sujar a mão em cocô de neném costuma deixar as falanges mais aptas a uma aula de escultura... O tradicional cabo de enxada, mais a trouxa de roupa pra lavar, recomendáveis aqui a todos os gêneros, indistintamente, não os livrarão de pais violentos, de uma infância mal vivida, da pobreza, da feiúra, da obesidade, da acne, do abandono, da solidão, da falta de afeto, da incapacidade de expressão, da vontade de possuir, do medo de deixar, dos inimigos, dos patrões, do ciúme, da exploração, do câncer, da aids, da baixa auto-estima nem da alta baixa-estima, rs... mas aquele traquejo ali... colocar as mãos assim desse modo e não de outro, sentir a superfície suave ou rústica da matéria, ter de baixar um pouco a cabeça em direção a um dos ombros e depois torcer a coluna para alcançar enfim a água (caso se escolha a trouxa de roupa) ou o mato (caso se escolha o cabo de enxada)... Hum, acredite-me: não há nada melhor que contorcer o corpo para polir o pensamento e robustecer a vontade. (Um minuto, que estão chamando ao telefone.)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Frankenstein (parte 2)


Tocou o interfone. No início do show do frankenstein. E se tivesse tocado trinta anos atrás, teria sido no máximo a campainha inventada por meu pai, uma geringonça pendurada no portão da frente e ligada por uma cordinha à porta do barraco de tábuas, também construído por ele, onde alguma coisa sonora, que não lembro o que era, anunciava a chegada do visitante. Rarán, agora já recebíamos visitas - quanto avanço! Tínhamos até uma kombi para os piqueniques em caçaroca e em muribeca, esses nomes deliciosos e cada vez mais raros, feitos de consoantes e vogais alternadas, algo que uma criança com ouvidos nunca esquece. A consoante era o trecho de terra sobre o qual se estendia a toalha para fazer o lanche; a vogal é um riacho que passa ali bem perto, sobre o qual o irmão mais velho vai cair, depois de ter se dependurado num cipó, sob a forte influência de Ron Ely, visto já com atraso na primeira televisão comprada pelo pai, no fim do ano. No meio disso tudo me parece incrível: primeiro: que papai e mamãe soubessem o que era um piquenique, já então assim nomeado; segundo: que tivéssemos os cabelos penteados, que andássemos sempre calçados e com roupas tão bonitas, costuradas por ela; terceiro: algo que por ora me parece inenarrável. Enfim, tocou a campainha...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Frankenstein (parte 1)


Estava começando o show de fim de ano do frankenstein na tevê quando tocou o interfone. Se tivesse acontecido quarenta anos atrás, ainda não teria sido instituído o tal show de fim de ano, claro, a emissora recém-criada. E eu estaria nas fraldas (de pano), deitada num berço improvisado no quarto úmido da palafita. A última reforma ortográfica (penúltima, agora) estaria próxima de acontecer. Obviamente as palafitas não tinham interfone - até hoje não têm. É apenas por um vício de estilo que se constrói uma frase como essa, já que a ausência de interfone, nessas circunstâncias, não indica nem uma necessidade, porque as necessidades são de outra ordem. Nos bairros erguidos sobre o mangue as moradias são tão próximas que não é preciso gritar para ser ouvido pelo vizinho. Por isso também não existem: a visita, o convite, o sino, a campainha ou o interfone, ahahah! Mas mamãe, castelense-quase-cachoeirense-recém-migrada-de-são-gabriel-para-tabuazeiro-e-de-lá-para-a-pedra-do-búzio-portando-como-enxoval-uma-caixa-de-sabão-e-um-cão-vira-latas, provavelmente estaria ouvindo no radinho de pilha a voz do mesmo frankenstein, então apenas criado, talvez ainda sem uma perna; melhor (ou pior): talvez ainda com uma perna - e sem nome. O fato é que tocou o interfone...

domingo, 10 de janeiro de 2010

Alguns pesadelos


Abapuru (gravura em metal). Célia Ribeiro. In: desenhos-celialice.blogspot.com

Alguns pesadelos rasgam na memória uma via tão funda que nos assombram para sempre. Porém o mais assustador é que em geral não temos consciência disso. E não constituem matéria que se possa, de modo algum, narrar, ou seja, encaminhar para um outro estágio. As crianças menores costumam se livrar de um pesadelo somente depois de horas de despertas. Por vezes, dias. Muito do que, através dos séculos, antes e depois de freud, se chamou possessão, neurose, histeria, fobia, amnésia, depressão, esquizofrenia e epilepsia tem a sua origem ali, nos recônditos dessa fábrica de um supercinema independente. A vida, em suas armadilhas, é tão inescapável que não nos permite dormir impunemente.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Eles e elas

Por que razão as mulheres pobres se referem aos seus companheiros diretamente por meio do pronome pessoal, sem que, no contexto, seus nomes ou quaisquer outros termos que os refiram tenham sido usados? Da primeira vez que o notei foi numa frase assim: Quando Ele voltar do mar, terei de parar com as faxinas. Pensei que se tratasse de Deus. Ainda mais que a sentença foi dada de manhã, bem cedo, enquanto o leite fervia, e Sebastiana tinha os olhos fixos nos azulejos, sobre o fogão. Soou como uma revelação profética. E outro dia escutei da doce Denise, sem mais nem menos: Amanhã Ele vem buscar a televisão. Ainda não tínhamos falado nEle, mas tão-somente na televisão; de onde então Ele despontava assim, feito Hércules, já descendo as escadas  com o meu televisor às costas? A impressão que dá é a de que Eles vivem no pensamento delas, todo o tempo muito presentes, e de que para lhes sair pelas bocas é questão apenas de que estas se abram.