sexta-feira, 28 de maio de 2010

Carcaças

Uma pessoa morta é um objeto muito especial. (Von Hagens)



Por que será que têm me perseguido as carcaças? Geralmente os leitores, ao se depararem com essa palavra, se lembram logo de baudelaire. É porque ninguém encontra carcaças reais por aí assim, à torta e à direita. O mais longe que a maioria chega é mesmo ao poema, na sua tradução para o português. Mas eu, sim. Eu encontro carcaças. Melhor dizendo: as carcaças me perseguem.


Como assim? Uma fruta que esqueci sobre a pia, e que as formigas devoraram por dentro, deixando intacta a casca; o gato morto no asfalto, inchando com as chuvas de maio... Deve ser que ando demais para ir de casa ao trabalho, olhando os cantos da rodovia, ao atravessar os municípios da grande vitória (esse hábito de nomear os próprios com iniciais minúsculas ainda me causa problemas, especialmente quando não desejo ser irônica)...


E hoje, conversando com o dinho no café da padaria, notei que algumas pessoas têm o dom de - mui discretamente - trazer à tona as nossas próprias carcaças. Ou seriam couraças? Não sei se reich ou freud se viraram no túmulo; na verdade não gosto dessa expressão, que se baseia em uma série de impossibilidades: toda vez que se acha que alguém vulgarizou um ponto das teorias freudianas, por exemplo, logo um sujeito solta: "Freud deve ter se revirado no túmulo". Que túmulo, afinal? E que freud, enfim? Mas, num esforço de consideração de toda a abstração que traz esse chistezinho sem graça, suspeito em geral que, ao contrário do que se pensa, freud adoraria ouvir o que se diz sobre o que disse um dia...


Bom, estava no café com o dinho, e talvez retorne até lá, impressionada com a capacidade que tem a sua presença de bom ouvinte, todo olhos, acostumado a pensar a pausa, o silêncio entre as frases de um diálogo (ou monólogo)... a sua capacidade enfim de desenterrar as nossas carcaças. Uma presença que por vezes se disfarça entre cortinas...


E não é que ontem a frase nefasta nos apareceu no texto de uma entrevista que líamos em aula? Estava lá, com todas as letras: "Freud deve ter se revirado no túmulo". Era sobre o fim do tabu do incesto, projetando um momento em que a família nuclear tivesse já se transformado, após a disseminação da reprodução humana por meio da clonagem...


O entrevistado lembrava freud para afirmar que algo como o complexo de édipo teria de ser revisto, numa situação em que um filho pudesse ter dois pais e duas mães (um biológico e outro doador), e quando pai e filho fossem, na verdade, irmãos gêmeos, o que aconteceria também com mãe e filha, sendo que irmão e irmã seriam tão estranhos, sanguineamente, como pai e mãe, podendo inclusive virem a se apaixonar...


Ali pausamos, a pedidos, para que eu explicasse o que vinha a ser o complexo de édipo, contando, na introdução, com o resumo da peça feito pelo carlos augusto, sempre a postos com sua memória multimídia, e, quando ia terminando minha fala, que dizia do desejo filial, pincel na mão riscando algo no quadro, principiei a ouvir a negativa que se avolumava a partir dos cantos da sala, feito um coaxar, na turma eminentemente masculina: "Não! Não! Não!". E um dos rapazes ainda acrescentou: "Nem morto!"; e um outro: "Nem que me pagassem!", o que quase nos mata a todos de rir.


Freud também gargalhava, em decúbito ventral.

domingo, 23 de maio de 2010

Fim de jogo

Acontece que alguém tem que chutar a bola, é certo, na hora terrível da cobrança de pênalti. Sofre o goleiro, sofre o jogador, sofre talvez a bola, no seu couro calejado, que por vezes uma partida basta para desbastar-lhe as arestas e tirar-lhe o cheiro de matéria nova. Tenho receio de usar metáforas de futebol, mas até aqui penso que não fui mal. O que importa é o chute - a coragem (obrigatória) e a força dele. Mas a bola pode ir para o mesmo lado ao qual o goleiro se lança para abraçá-la - e tudo em questão de segundos. Menos ainda, talvez. E ninguém me exija verossimilhança, que só pisei num estádio uma vez - e foi por engano. A bola pode ainda se desviar. Para que isso aconteça basta que, ao resvalar na chuteira, descubra um milímetro até então oculto de lama no ponteiro também já gasto, e quase na hora de ser dispensado. Se o gramado também não ajuda... E o gramado, inclusive, sofre, se não for de plástico (artificial não seria o termo mais adequado). Aí subentende-se que falo aqui de uma pelada de várzea. Gosto bastante dessa idéia, porque em volta da quadra posso vislumbrar um bairro suburbano, e então o nosso jogador emagrece um pouco, não tem carro nem glamour. Nem moças esperando na fila para serem suas próximas namoradas. Também não precisa ser obrigatoriamente assim, claro... Voltando ao campo, lá nos cantos do gramado, já que nossa grama é viva (natural não seria o termo mais adequado), existem centímetros não pisados, e ali o mato mais alto (que não se trata nem bem - ou não só - de grama) ainda guarda um pouco de rocio (que o nosso rocio não é de rosas) e a nossa partida é logo pela manhã. Domingo. Tédio de beber no bar da esquina com os camaradas de sempre, falta de grana... E aquelas gotículas de orvalho, que irão secando lentamente com o passar do dia, permanecem lá; aguardam uma carícia do gandula, porque esse anda descalço. Em meio a todos os esquálidos jogadores, ele é o mais leviano (no sentido marioandradino do termo) e corre lépido todo o tempo que durar a partida. Sua mulher, grávida, acompanha-o a cada domingo ao local do jogo, e sempre com um misto de vergonha hierárquica e um certo sorriso escondido lá consigo, através do qual se vinga do desempenho tão ruim que o rapaz tem na cama... Alguém passa distribuindo água. Aqui você não deve imaginar as garrafinhas azuis de água mineral. Melhor: imagine-as, sim, mas reaproveitadas do lixo limpo do boteco mais próximo e reabastecidas com água da torneira da prefeitura. Mas ela mata a sede de todos, especialmente a daquele goleiro oprimido, que o irmão caçula segue com os olhos como a um super-herói; porque não basta ser herói, tem que ser super. E a bola vem na sua direção. Para ele, aquele momento se apresenta em câmera lenta, como num filme. Ela vem vindo, a princípio lenta, lentíssima, e quando ele abre os olhos ela já entrou. E entrou por entre seus finos gambitos. Seu primeiro olhar é para o irmão caçula, sentado em lugar de visão privilegiada. Ele bem sabe que o pequeno o compara ao Spiderman desde que o viu, um dia, escalando um alto muro, na vizinhança. O irmão menor, em silêncio, sente latejarem as têmporas, na hora da cobrança. E internamente reza, como se o irmão estivesse no cadafalso... E a bola passa - por entre as pernas. A cabeça do goleiro reclina incontinenti...

sábado, 8 de maio de 2010

Dia das mães

E já que este blog está se descaracterizando a olhos vistos, dia após dia, aproveito para dizer que ontem ganhei meu primeiro presente de dia das mães. Como todos os que se acham críticos do sistema obrigatório-comemorativo-mercadológico, eu também não ligo - mas ligo - para essas coisas. Se se lembram do nosso aniversário, então não ligamos; se se esquecem, então saímos chorando pelos cantos. De todo modo, eu pensei que tivesse de esperar até que crescessem um pouco (santa ingenuidade!) para que fossem tomados pelos tentáculos da obrigatoriedade comemorativa mercadológica (é o nome de um deus ou totem) de agradar-me com presentes no dia das mães, mas chegaram os dois empertigados da escolinha, disputando um só embrulho, porque a entrega deve ter sido muito treinada, o papel celofane estava incrivelmente intacto naquelas mãozinhas inábeis e o ato tinha de ser solene. Ganhei! O primeiro! E pela primeira vez, às vistas de um embrulho de presentes, entenderam que não era para eles.

Sintaxe

Alguém que é professora oito horas por dia e mãe outras dezesseis não deveria ter o direito à insônia, penso eu. Mas, já que é pra permanecer de plantão, e como não sei falar de amor às três da madrugada, vamos registrando aqui alguma coisa, apenas para não perder o hábito.

No começo da verbalização de frases mais completas, os gêmeos descobriram o verbo ajudar. E, como perceberam que funcionava muito bem (ninguém vai negar ajuda a um bebezinho de braços estendidos), usavam-no para quase tudo. Era Me ajuda! pra cá, Me ajuda! pra lá. Me ajuda!... desce da cadeira. Me ajuda!... sobe na cadeira. Me ajuda!... abre a mamadeira. Me ajuda!... apanha um biscoito.

Agora a gama de verbos se ampliou, mas a estrutura - utilíssima, devem pensar eles - foi preservada, o que gera frases no mínimo curiosas, como: Me descasca! (com a fruta na mão). Me abre! (a porta do box). Me fecha! (o registro). Até aí tudo bem; com o tempo aprenderão a necessidade do objeto - pensei. 

Ultimamente contudo, desde o adentramento mais efetivo a um pequeno mundo tecnológico, tenho escutado diariamente os assustadores: Me liga! Me desliga! Me conserta!

Melhor introduzir logo uma aulinha de sintaxe, enquanto não chega de vez o homem pós-orgânico.

sábado, 1 de maio de 2010

Morrer

Bão Balalão, Senhor Capitão, tirai este peso do meu coração.
Não é de tristeza, não é de aflição, é só esperança, Senhor Capitão!
A leve esperança, a aérea esperança... Aérea, pois não!
Peso mais pesado não existe não.
Ah, livrai-me dele, Senhor Capitão!
(Manuel Bandeira).



Ninguém sabe ao certo quando é que alguém começa a morrer. O professor Arnoni dizia, do Mário de Andrade, que sua morte teve início no final de uma anedota genial do Oswald, dita certa noite, num bar, e cuja principal personagem era o próprio Mário, ali presente... O amigo sarcástico teria dito que "Mário de Andrade, de costas, era igual a Oscar Wilde", revelando de uma só vez a feiúra e a homossexualidade, além de desenterrar no nosso Mário sabe-se lá que mais, pela comparação - para os delicados recônditos de Mário, nefasta - entre os dois escritores. A partir desse momento, afirma-se, o gênio paulista definhou até a morte. Não sei. Pode ser que o próprio Oswald já estivesse morrendo, naquele momento... A gente mal nasce - diz o poeta - começa a morrer.

Eu não penso aqui nos pródromos românticos, financeiros ou de saúde - em geral ninguém os chega a conhecer, também, por completo - que acabam por precipitar-nos em acidentes fatais, por vezes ininteligíveis. Penso sim é nos pródromos subterrâneos desses pródromos: aquele pesadelo bruto que persegue por dias, tão real que só podia mesmo ter sido sonhado: por que ele não se descola de vez da nossa rotina, deixando o fluxo livre para os acontecimentos reais, se em geral nem mesmo percebemos que ele ainda está ali... E a palavra mal posta, pendendo da boca amiga feito uma fruta podre? Será ela a nossa bala perdida? E a impossibilidade de dar e receber amor? A indiferença paterna...

Tempos atrás chegou aos meus ouvidos, curiosamente por acaso e através de desconhecidos, a história de um meu parente não muito distante, filho de produtores de tangerina em Venda Nova do Imigrante, que, jovem belo, muitíssimo querido pelos amigos e feliz com a namorada, apanhou o violão, seguiu para o paiol, tocou uma última canção brasileira e desfechou um tiro na cabeça. Ponto.

Ontem, indo a pé pela Praia do Canto, notei que as chuvinhas de abril começam a apagar o rastro de sangue que durante semanas acompanhei por uma dezena de quarteirões, no primeiro dia de um vivo vermelho à Frida Kahlo, no terceiro apenas marrom e logo depois quase ocre, da cor do esquecimento.

Quem terá vertido tanta matéria pulsante nas pedras indiferentes daquela calçada centenária? Não importa, talvez. Mas houve momentos em que claramente se recostou a uma árvore, porque o fluxo, saísse de que parte saísse, deve ter lhe enchido as mãos, escasseando um pouco logo depois, quando o passo começa então a ir mais trôpego, com paradas inesperadas, sempre próximo das esquinas - percebe-se por cada novo grande borrão, lançado ainda quente ao vento vindo da orla próxima e agora coagulado em grande mancha na pedra fria.

Penso que os refregos tenham coincidido com o olhar já quase sem esperança na direção de um carro que se aproximava, pensando que pudesse ser um ônibus - ou mesmo uma ambulância. Por outro lado, pode ser que  fizessem mesmo parte ativa de uma fuga, o sangrante em pleno jogo, de dia ou de noite, contra a polícia, os amigos, os inimigos, o amante.

Quem sabe uma mulher tenha simplesmente menstruado em meio ao caminho para o trabalho! É difícil imaginar contudo que andasse por tanto tempo sem buscar abrigo e auxílio... A não ser que fosse uma daquelas babás noturnas que descem dos prédios muito cedo, de madrugadinha, com suas fundas olheiras, vindas de Cariacica ou Serra sede, e que se revezam com uma outra que acaba de chegar de lá também, andando rápido, ombros tesos, com medo de assaltos...

Mas não. Havia nas bordas da pintura sanguínea de cada cerâmica daquelas como que o fantasma de um sacolejar angustiado - e seguramente solitário - de mãos que tentam segurar a alma vermelha e quente entre os dedos, empurrando-a de volta para o peito, ou a cabeça, ou a boca, ou as pernas, ou o sexo, ou os intestinos...