domingo, 13 de junho de 2010

Os olhos de Vincent


Vincent Van Gogh: Autorretrato com a orelha enfaixada.


Flora não gostou de van gogh: "Esse não, mamãe; esse não!" Ou então não gostou do livro das reproduções, a sua dura capa gigante... Ou talvez o tenha preterido apenas em contraste com o anterior, um bosch cheio de bichos novos e outros conhecidos, ou mesmo em comparação silente com a revista da flora silvestre brasileira, tão sem graça para mim e à qual retornou assim que fechei o grande livro.

À qual, aliás, retorna sempre, fascinada, a cada vez, com a descoberta de um novo detalhe: "Que é isso, mamãe?". (Um dia, na falta de livros de histórias por perto, iniciei, a pedidos do francisco - "Conta uma história, mamãe!" -, um era uma vez a partir das páginas da revista amada, com seus pistilos, vanilas e rubiáceas, mas nenhum dos dois aceitou que fizesse a minha viagem imaginativa apontando o dedo para uma vitória-régia dissecada e com legenda: não confundem ciência com contos de fadas).

E ela rejeitou o van gogh. Mas o seu comentário não veio de imediato, como pode parecer pelo dito acima. Antes ela o folheou muito curiosa, viu os girassóis, os comedores de batatas, os campos de trigo, noites estreladas, a orelha enfaixada de vincent, o semeador... Ela olhou, ela viu, ela quis mesmo ver, mas algo nesse não lhe agradou.

Certa hora vi seus grandes olhos claros sobre os olhos decadentes de vincent. Não resta dúvida de que ela o viu, mas... o que foi, enfim, que ela viu? Não importa? Importa, mas não consigo vislumbrá-lo - então tateio.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Me conserta!



A estrutura frasal vai sendo aprimorada, mas ainda está longe (quiçá) de chegar perto da norma! Assim, o "Me ajuda!" inicial se ampliou para o "Me conserta!" e, depois de algumas risadas dos adultos, foi enfim acrescentado um providencial "pra mim". Agora ouço coisas assim: "Me abre pra mim, mamãe!"

Com a ampliação dos verbos, flora começa a confundir aqueles que possuem sílabas iguais; troca "segura" por "mistura" e "conserta" por "consegue". Demorei um pouco a perceber isso, quando chegou a mim com o guardassol: "Me mistura pra mim, mamãe!" E depois, com a boneca sem perna: "Mamãe, me consegue pra mim!". E como usa bem o imperativo, rs!

Enquanto isso, francisco se empenha admiravelmente em melhorar a pronúncia de alguns termos. Vez ou outra se posta bem à minha frente, fixa os olhos nos meus lábios e lança a palavra sobre a qual paira alguma dúvida fonética, para que eu o auxilie, pronunciando-a corretamente, o que já se tornou uma deliciosa rotina lúdico-pedagógica. Foi assim, da primeira vez, com o "fapo", ao qual transformamos em "sapo" em apenas duas ou três repetições...

Esta semana, do fundo de sua alminha teatral, que não se contenta em responder à pergunta sobre que barulho faz a onda do mar quando bate na pedra com apenas uma onomatopéia, repetindo-a incessantemente (como o próprio mar) e jogando o corpo junto com o "tchá", "tchá", "tchá", sempre para um mesmo lado e com os olhos abertos como os de um peixe à deriva, saiu-me de repente com uma frase longuíssima, surpreendendo com o uso tão precoce do pronome relativo: "Na casa do papai tem um bicho esquisito que abre as asas e voa lá para fora."

Outro dia ainda me encarou muito sério, quase triste, e soltou, comoventemente, entre a exclamação e a pergunta: "Mamãe, me ama!?" Só depois lembrei que provavelmente estava se referindo a quando me debruço sobre eles fazendo-lhes cócegas, brincadeira que quase sempre termina em declarações de amor de nós todos.

Interpretar o que pode vir a ser cada termo, cada uso, cada contexto ou neologismo que trazem é das coisas mais deliciosas que esta fase reserva. Assim a flora, encontrando pelo chão uma fotografia da via láctea: "Olha!... O tempo!" E depois, à noite, concentrada num belo alvorecer waltdisneyano no dvd: "Amanhã!"