quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cruzar o sinal

"... já disse, é tudo verdade, mesmo ou sobretudo o que invento... só a ficção está de fato apta a prestar contas do real..." (Evando Nascimento)

Como pode ser assim, isso de escrever?

Às vezes é tão imenso o deserto imaginário, que as palavras vão saindo dos dedos feito as lebres de um ilusionista, orelhas fora da cartola, carentes de sentido, olhando em volta sem nada entender do barulho do teclado aplauso e das luzes do estranho palco monitor.

E ainda assim desponta, em algum lugar, alguém que, numa noite de chuva como a deste atípico fim de outubro, nos leu...

Na verdade (e ainda há quem ria do fato de eu duvidar também disto: a verdade)... na verdade apanhei um cigarro para escrever ao namorado ausente, sobre como as suas mãos, talhadas no movimento de amaciar o ferro, decoravam o ângulo italiano do meu nariz.

A lista de romantismos resultaria interminável - e mesmo inútil - entre tantas resenhas a revisar, mamadeiras sujas, pequenos contratempos cotidianos e, ainda por cima, a empregada pedindo as contas...

Esta não pode ser uma noite comum. Primeira medida: cortar os cabelos longamente cultivados. Segunda primeira medida: mudar o toque do celular, driblando a náusea da espera. Terceira primeira medida: olhar duas vezes antes de cruzar o sinal.

No quarto contíguo dormem as crianças, entre lobos maus... Esta noite não é mesmo comum.

Deixarei para chorar amanhã, na cadeira do dentista.

domingo, 24 de outubro de 2010

Nunteressa

À medida que o vocabulário se amplia, aumenta a confusão entre palavras com sonoridade parecida, misturam-se sílabas iguais de diferentes vocábulos e, curiosamente, desponta a mesma dificuldade que se tem no aprendizado de um novo idioma: não se sabe ao certo, nos primeiros contatos, onde termina uma palavra e começa outra, no falar fluente do plenamente letrado.

Daí a produção de pérolas como: "Eu não sei andar de bichiclete." ou "Mamãe, eu engoli o bicicletes!"

Algumas vezes só pude entender a permuta involuntária graças aos objetos, ao gestual: "Agora eu vou andar de basquete", disse Flora simulando um skate com meu grande chinelo sem tiras...

Deparamo-nos, por vezes, com a criação (muito lógica) de uma nova regra: "Minha cama é cor de rosa; a parede é cor de branco e o ventilador é cor de preto!"

E, ainda, vez ou outra, com a reinterpretação de uma norma: diante de palavras proparoxítonas, como máquina, ou forçosamente proparoxítonas, como a migrante bátiman, Francisco pergunta em auto e bom som: "Cadê minha maquiná?" e "É esse o batimán?", o que é muito compreensível se ouvirmos essas palavras descontaminados do conhecimento cristalizador que temos delas: lá está, na última sílaba, o segundo acento, o outro tom que chamou à atenção o ouvido, e pelo qual ele optou. Quem te ensinou essa canção? "Foi a tia Fatimá!"

Também aparecem diálogos cômicos - e de início ininteligíveis - como: "Vamos brincar de Bela Adormecida?" "Vamos! Eu sou o cagão!" Diante da dificuldade de pronunciar o dr, comparece a consoante mais fácil. Assim que percebi o fogo saindo das ventas do cagão, fui dar a minha contribuição para o seu encaminhamento ao correto pronunciar, triste embora com a poda de mais essa linda ignorância. Assim que saí do quarto, escutei: "Agora o vagão sou eu!"

À insistência em saber o que a priminha mais velha tinha na boca, Francisco recebeu enfim o seu primeiro "Não interessa!" Demorou, mas já estamos tão acostumados a essas crueldades - ou deselegâncias - que nem as percebemos como tais. E, se assim é, é melhor que nos naturalizemos a elas, para não sofrer em vão. Só que, para ele, ainda não caiu como ofensa. Veio imediatamente a mim: "Mamãe, me dá nunteressa. Eu estou sentindo o cheirinho de nunteressa".

São pratos já feitos para um decadente poeta concreto, para o escritor aposentado, carente de imaginação, ou para o alfabetizador perdido para a criação, de tão agarrado à gramática da língua...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tímpanos perfurados


Acidente no quarto de brinquedos. Foto: Andréia Delmaschio.


Do que viu e ouviu, o escritor retorna com os olhos vermelhos e os tímpanos perfurados. (Gilles Deleuze)


O Miguilim, narrando a preparação do corpo do irmão menor para o velório, diz que "a coisa mais forte neste mundo" era a mãe segurando o pezinho machucado do Dito morto como se ainda pudesse doer, caso batesse na beira da bacia em que o lavavam...

Roland Barthes, acerca da foto de "crianças 'anormais' em uma instituição de New Jersey", afirma: "Desprezo todo saber, toda cultura... não vejo as cabeças monstruosas e os perfis deploráveis... vejo apenas a imensa gola Danton do garoto, o curativo no dedo da menina...".

A mim me tira noites de sono a voz do pastor Jim Jones repetindo rouca e incisiva, quatro vezes: "Mother, mother, mother, mother" no momento em que as mães (ao menos uma devia estar relutando) tinham de fazer ingerir veneno as crianças, antes de o ingerirem elas próprias.