domingo, 30 de janeiro de 2011

Aviso aos navegantes II

Gaughin: Vincent Van Gogh pintando girassóis.


A personagem é mais lógica, embora não mais simples, do que o ser vivo. (Antonio Candido)

Muitos leitores buscam (e encontram!), nos escritos, precisamente aquilo que lhes falta: sinceridade. E isso lhes falta como poderia faltar qualquer outra coisa! Não vamos confundir as nossas demandas e obsessões com o belo movimento gratuito de oferenda. A ficção escrita com mais jeito e graça tende a nos parecer verdadeira, convence-nos de que o narrado foi de fato vivenciado por quem escreveu. Esse sentimento está na origem daquela exclamação que fazemos quando nos sentimos ludibriados: "Essa mentira está muito mal contada!". Caso fosse bem contada, então, ascenderia a um certo status de verdade!?

Branca de Neve II

Paula Rego: Branca de Neve brincando com os troféus do pai.
 
Contando - pela tricentésima vez - a história da Branca de Neve:
- E então, quando ela despertou, com o sol lhe batendo no rosto...
- Por que o sol bateu no rosto dela?

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A queima roupa

-O que é a queima roupa?
-Hum... É...
-E gelar a fronde, mãe, o que é?
-Espera, eu vou te explicar...
-O que é explicar?
-!

domingo, 23 de janeiro de 2011

Negativas

Candido Portinari: Menino com pião.

- E então, Francisco, passeou com o papai?
- Não!
- Não foi à praia?
- Nada!
- Nem à piscina?
- Nem!

sábado, 22 de janeiro de 2011

Lua



- Mãe, tem uma lua na minha janela!

Biscoito

- Ah, Flora, segura direito... Olha esse biscoito jogado aí!
Meia hora depois, terminado o pacote:
- Mamãe, eu quero mais biscoito!
- De qual desses?
- Biscoito jogado!

sábado, 15 de janeiro de 2011

Ínsula insalubre

Uma menina entra no ônibus na praça da goiabeira. O motorista acelera. O cobrador cobra. Perto da porta, a menina abre a boca. Uma jujuba cai no canto do ônibus. A poeira de imediato se gruda nela, enquanto a boca se fecha, seca. Outro pó, imperceptível, vai se acumulando sobre a boca, invadindo aos poucos quantas bocas se abrem. A jujuba rola numa freada brusca, indo parar junto a um saco de pipocas. Os corpos se amontoam e ligeiros voltam ao lugar de origem. Os olhos da jujuba vêem a menina. Seus olhos passam por todas as árvores. Ela é vesga e logo fica tonta, mas não deixa nunca de olhar a árvore o muro a árvore um carro outro carro outra árvore outra árvore. No ponto seguinte, um cheiro forte invade os sentidos da menina, que vai seguindo ser saber para onde. Seu cabelo ressecado, puxado para trás num espanador anelado, toca de leve o antebraço de um homem magro, de olhar perdido para além dos carros e das árvores. Uma coleção de camisetas brancas entra compassadamente. Entram outras jujubas conduzindo seu vendedor numa caixinha. Um out door colorido olha de longe para a menina. Há sol mas faz frio. Panelas de barro secam no chão de inverno. Já na reta da penha uns odores se apedrejam, outros se lançam do alto, sobem e descem pelas janelas escancaradas. Outros out doors entram no ônibus em frente ao shopping center. A menina respira com dificuldade. Abre e fecha a boca, olha ao redor. Parece adormecer, mas tem a respiração pesada. O coletivo fede, é frio e úmido. Ao longe o mar bate com força no areal enfadonho. As pontas dos ramos de algumas árvores entram pela saída de emergência e vêm ao encontro da menina nas proximidades da terceira ponte. Ela masca o dedo indicador e cospe no chão do ônibus. Ninguém percebe sua baba escorrendo. O ônibus sobe a terceira ponte. Lá em cima o frio aumenta. A menina estremece, mas não sabe onde está. Desfalece. Nunca fez acordada a travessia. Nem viu a paisagem lá de cima, as casas longínquas, minúsculas, da enseada do suã. Com os olhos entreabertos ela se encolhe junto ao encosto duro. Sob o sol de julho, as piscinas das pequenas casas lançam raios que perturbam a visão, mas não a da menina. Tremeluzem os tetos de cores variadas. Diante do convento a menina cai em sono profundo. Na descida da ponte o cheiro familiar de uma vala revigora os seus sentidos, saturados de patchouli da praia e alfazema da serra. Aos poucos a menina volta a si e distingue os carros das árvores. Salta numa vila velha e caminha por uma praça. Caminha lentamente, e retorna ao ponto de ônibus.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Supereromem

- Eu sou o Supereromem! E você?

- Eu sou o Batman! É a minha fantasia de carne naval!

Surpresa

- Hoje é meu aniversário, mãe?
- É este mês. Por quê?
- Eu vou preparar uma grande surpresa pra mim!

Branca de Neve

Paula Rego: Envenenada com a maçã.


Chove na floresta. A Branca de Neve, no esquife de cristal, dorme o Sono da Morte... Em volta choram os bichos e os anões.

Francisco:
- Mãe, você sabe por que está chovendo?
- Por quê?
- Porque os sete anões vão chorar.

Flora:
- E você sabe por que eles estão tristes?
- Não. Por quê?
- Porque eles estão chorando.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O ator


O ator finge que dança -
e nós acreditamos.
Simula um canto -
mas não convence.

E faz que ama, que odeia;
encena que é, que sente,
e não arranca sequer um aplauso
(há representações impossíveis).

Desesperado, o ator finge que finge,
mas extrapola toda compreensão.

Então ri, e chora...

Coitado do ator! Ninguém o entende!

Ele agora sente de verdade,
e mais uma vez não é compreendido,
porque,
para representar a verdade,
é preciso ser muito bom ator,

e,
ademais,
o público é simplório,
não está preparado para sua grande atuação.

Cuspes e palmas para o ator!

Levem-no rapidamente a um palco!

sábado, 8 de janeiro de 2011

Divina injustiça

O neném tem medo de escuro,
a irmã tem medo do monstro,
o primo tem medo da aids.

A mãe tem medo de ladrão,
o pai tem medo do patrão.

A tia tem medo da vida,
o tio tem medo da morte,
a avó tem medo do câncer,
o avô tem medo do diabo.

E ninguém tem medo de deus!?

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Não me leve


Pensando bem,
me leve a mal!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Questão de ordem

William-Adolphe Boughereau: Dante e Virgílio no Inferno.


A boa notícia:
o monstro está dentro da sua cabeça.
A ruim:
o monstro está dentro da sua cabeça.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Aviso aos navegantes

Van Gogh: Girassóis (detalhe).


É tudo ficção. Mesmo o que realmente ocorreu.
Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é mera coincidência.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Romance

Franz Marc: Tigre.

Por enquanto sinta na pele
a incisão do meu dente esferográfico.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Das funções literárias

Manet: Cigana com cigarro.

Eu nunca usei a literatura como vingança,
mas confesso que não vejo a hora!