segunda-feira, 30 de maio de 2011

Visita

- Mãe, por que o Jãovegole foi embora?
- Porque ele precisa dormir.
- Por que ele não dorme na minha cama?
- Porque ele gosta da cama dele.
- E por que ele não mora na nossa casa?
- Porque ele é visita.
- É?
- É!
(Silêncio)...
- Mãe...
- O quê?
- Eu quero ser visita!
- !?

Atravessar a rua

- Agora me dá a mão, todo mundo, pra atravessar a rua!
- Todo mundo não, mãe; nós somos só dois!
- Ahn... Ainda bem, né!?

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O homem azul

Roberto Magalhães: Homem azul.


- Mãe, por que a cabeça desse homem é azul?
- Porque ele é uma pintura.
- Por que ele é uma pintura?
- Porque foi pintado aí por um artista.
- E por que o artista pintou o homem de azul?
- Deve ter sido porque ele estava estava alegre.
- Não... foi porque ele pensou no céu!
- Ah tá!

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Superdodói


Homem-aranha. Fonte: http: www.google.com

Enquanto eu lia uma revista, o Francisco saltava de um sofá para o outro, na sua fantasia de homem-aranha, enfatizando a sílaba tônica da última palavra de cada frase e fazendo cara de mau:
- Eu sou o Aranha! Saiam todos! O Aranha vai pular! - saltou pra lá.
- Cuidado pra não cair, hem, Aranha!
- Não tem problema, senhora! Eu não sinto dor! - saltou pra cá.
- Ah, não?
- Não, eu sou um supererói! - de novo pra lá.
- É só gente que sente dor, né?
- É! Saiam todos que agora eu vou voar!
Caiu de joelho na mesinha de centro e veio correndo para o meu lado, choramingando e retirando rápido a máscara:
- Mamãe, tá doendo! Sou eu, mamãe, o Francisco!

sábado, 21 de maio de 2011

Eu quero ser homem! ou O primeiro manifesto feminista a gente nunca esquece



Os dois já saíram do carro discutindo:
- Eu sou homem! Eu sou homem, sim!, dizia a Flora, na sua sainha de babados.
- Não é, não!, replicava o Francisco.

À nossa passagem, o vendedor de cocos arregalou a boca e seguiu-nos com os olhos.
E o Francisco continuou:
- Você é menina; eu é que sou homem!

Eu conduzia os dois pelas mãos e observava o fluir da discussão, tentando entender-lhe as origens um pouco mais remotas do que a arenga detonadora, sobre quem seria retirado primeiro da cadeirinha.

Atravessamos a rua em direção à padaria e eu nunca tinha visto os dois discutindo com tanta veemência. Sentamo-nos no café. Ela, já exasperada com a resistência do irmão e dona de um olhar cortante, pediu auxílio:
- Mãe, eu quero ser homem! Fala pro Francisco deixar eu ser homem!
- Está certo. Francisco, ela quer ser homem. Agora, então, ela é homem; está bem!? (Caramba - pensei - até pra entrar pro time temos que pedir autorização a eles!)

- Ela é homem, mãe!? Então eu sou o quê!?
- Homem! Você quer ser homem? Então você continua sendo homem! Tudo bem?
- Sim.

Mais ou menos um ano atrás a Flora tinha chegado da escolinha com a novidade: "- Mamãe, eu sou menino!". E eu já vinha observando de longe o modo como, nas brincadeiras de quadra, as meninas se unem de um lado e os meninos, invariavelmente, de outro. Enquanto algumas delas fazem gestos de princesa e contam às outras, cheias de caras e bocas, os seus segredinhos, eles, do lado de lá, se empurram e correm e riem alto, ignorando-as completamente. Isso quando não dividem a caixa de lápis de cor, os meninos ficando com a parte que vai do verde ao preto e as meninas com aquela que vai do branco ao rosa. Quem me lê pode suspeitar de que estou criando uma alegoria para reforçar os argumentos. Pois saibam que não: observo as crianças (as minhas e as outras) diuturnamente, e noto inclusive a sua dificuldade em distribuir o lápis lilás. E a cena se repete, igual todos os dias, criando raízes comportamentais fortes como as de um jatobá e demandando, sem dúvida, algum tipo de intervenção pedagógica. Afinal, se for para sairmos deixando o mundo extamente como estava quando chegamos - penso eu -, não precisávamos ter vindo.

Desde aquela época entendi que as meninas, ainda nas fraldas, percebem (nessa fase os meninos ainda não desenvolveram qualquer domínio do disfarce, nem descobriram o uso skinneriano de compensações como dar-lhes passagem, abrir para elas a porta do carro, mandar flores ou pagar as contas) que o mundo em volta está todinho preparado para o uso e o abuso deles.

Deu-se ao mesmo tempo em que, por óbvia pobreza semântica e sintática, ao tentar apagar o fator desagradável de uma situação, nas suas sentenças simples, a Flora (e especialmente ela) negava a própria situação, a existência dela. Ouvi-lhe coisas como - com a roupa toda molhada: "Eu não fiz xixi na roupa!" ou então, enquanto eu me arrumava para sair: "A mamãe não vai trabalhar!".

Assustadoramente, em princípio, as frases sexistas começam a avultar junto mesmo com a aquisição da linguagem, na disputa pelos brinquedos e na categorização mais geral: "- O carrinho é meu; você não é homem!"... "- Eu vou tomar banho primeiro, porque você é mulher!"...

E também, vindas do outro lado: "- Você é homem, não pode usar xuxinha no cabelo!"... "- Mãe, o Francisco vai colocar camisa rosa? Ele não é menina!"...

"Ser homem" significa portanto, sob a égide de uma educação sexista que se perpetua, ter acesso aos bens, ao movimento, à livre expressão, à prioridade e, por consequência, à possibilidade de concessão de pequenos benefícios àquelas pedintes. O poder os torna livres e fortes e belos - e generosos!

A elas cabe diferençar e designar o uso das cores, o delicado, o adorno, o mimo... e a espera...

Na sua linguagem em desenvolvimento e quando ainda não conquistaram, a duras penas, outros meios de consegui-lo, as meninas solicitam então, aos meninos e a nós adultos, que lhes concedamos o direito de serem - homens! Logicamente quem detém poder (Foucault acrescenta: poder não é algo que se detém, é algo com que se joga!) não quer dividi-lo. Nesse caso, então - e nesse jogo - é necessário às mulheres (e meninas) requisitar as suas peças.

A opressão por que passa uma mulher desde o início da sua socialização é inenarrável. Basta olhar para a carinha das meninas em geral, ainda muito pequenas, nas salas de aula. Para vê-las melhor no entanto é preciso retirar-lhes o invisível véu de naturalidade com que as encobrimos no ocidente, denominando-as "mais obedientes e doces e castas"...

Nós, mulheres, enquanto continuarmos a reproduzir os mesmos modos e meios, prosseguiremos reclamando, sempre tardiamente, de que os homens não dividem conosco as tarefas, de que não conseguimos desenvolver com facilidade as habilidades em que eles são mestres. Etc.



terça-feira, 17 de maio de 2011

Historinha pra dormir

Francisco: - Mamãe, hoje sou eu que vou contar história!
Eu: - Ah, que bom!
Flora: - Eu quero contar também!
Eu: - Ótimo! Podem começar!
Francisco: - O monstro me comeu e ele comeu a Tóia...
Flora: - E ele ficou bem forte, com a barriga roxa!
Francisco: - É! E aí veio um tubarão e comeu o monstro: Ahhh!
Flora: - E eu fiquei bem forte também, porque eu fiquei dentro do monstro que o tubarão comeu!

domingo, 15 de maio de 2011

Sem apetite

Francisco, diante da irmã, atacando um prato de macarrão:
- Tóia, eu vou comer tudo pra eu ficar grandão!

Flora, carinha sarcástica, revirando a comida sem apetite:
- Ah é? E eu vou comer tudo pra eu ficar pequenininha!

U de lagarta

Mal terminamos de regar as plantas e saiu desfilando pelos azulejos uma daquelas lagartinhas cujo caminhar se resume a um movimento sucessivo de encolher e esticar o miolo do corpo, que se mantém erguido do chão, ora juntando, ora afastando as periferias, entortando-se como um U de ponta-cabeça.

Diante de nosso olhar hipnotizado, ela pareceu mesmo abrir um sorriso, como numa animação. Nisso a Flora me olhou séria:

- Mamãe, a lagarta sabe que ela anda!?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Da ajuda ou O valor da amizade ou Superalex

Se uma mulher com uma criança me chega no meio da noite, eu acato. (Clarice Lispector)

Auguste Rodin.

Não por acaso, lembrei-me muito, nesse mês que se foi, de algumas das coisas que ouvi, vida afora, do meu querido Alex. Sendo embora o irmão caçula e de todos o mais moleque, ele sempre conseguiu ser também, sem esforços aparentes, o que mais ensina - ao menos a mim, que talvez por inata afinidade, talvez pela proximidade geracional, tive a sorte de, até que nos afastassem alguns imperativos categóricos (como diria o Vinícius), conviver com ele mais constante e intimamente.

Uma de que não me esquecerei é que "Você nunca deve levar mais coisas do que consegue carregar sozinha". É do tempo em que acampávamos juntos, indo de ônibus de Vitória a Matilde ou ao Rio Bonito,  mas muito me auxilia no dia a dia com duas crianças e duas hérnias de disco.

Foi também na juventude, ao final de algum namoro significativo, na fase ainda ultrarromântica de tédio e desesperança, que ouvi dele a previsão (essa de ordem nada prática) de que "A vida ainda vai te surpreender muito". E não é que ele tinha razão!? O difícil é perceber o óbvio.

Nesses últimos tempos porém o que mais alto me saltou da caixa-de-boneco-bobo-das-lembranças foi algo que lhe ouvi ao fim de uma das nossas aventuras bem sucedidas e de cujo contexto já não consigo me lembrar: "Se alguém lhe pede ajuda, não importa quem, pode ser o seu pior inimigo, você tem a obrigação de ajudar".

Poderia, obviamente, ser apenas mais uma frase, dessas que dizemos quando queremos impressionar alguém com nossa vasta bondade ou sapiência. Mas não! O que impressiona no meu irmão, matemático mecânico pescador, é a incomensurável capacidade de, dando conta de um cotidiano próprio repleto de obrigações enfadonhas, tarefas difíceis e resoluções por vezes dolorosas, encontrar condições para auxiliar aqueles que lhe estão no entorno, sempre que lhe estendem a mão. (Porque também, convenhamos, saber pedir ajuda é necessário, embora ninguém precise dizer isso a quem está realmente necessitado, o aprendizado é automático. Não vale é ressentir-se de não ter recebido ajuda se o orgulho ou outra coisa qualquer foi maior que a coragem de solicitá-la).

Foi assim quando afundei o carro nas areias de Manguinhos... Em minutos, lá estava o Superalex (deve ter sido algum namorado invejoso ou enciumado que primeiro o apelidou assim, mas, quando os valores reais superam as mesquinhas intenções, mesmo a ironia se torna verdadeiro - e fraco - elogio).

E também quando o mesmo velho carro deu defeito nas profundas de Accioly. Às sete da manhã, lá estava ele com peças novas, delicadeza de modos... e sorriso!

E foi sempre do mesmo modo, todas as vezes em que a tarefa parecia (e era) demasiada para seres humanos comuns: algo como, por exemplo, fazer mudanças, transportar grandes volumes (ou então encomendas delicadas demais), criar soluções artesanais para impossíveis espaços, resguardar para sempre segredos tacitamente relatados, socorrer crianças, apagar incêndios... E outras coisas que não ficaria bem relatar aqui. 

Porém o que impressiona (e alegra, vitaliza, faz crer na vida) são menos a pronta atitude e a enorme competência para nos desenredar das nossas armadilhas de tempo e de lata. O que vale mais, de verdade, e alcança na gente um centro também irradiador de grande boa vontade, é ver nos seus olhos verde-paris primeiro a leitura atenta do nosso estado de alma (ao qual ele lança, antes de tudo, a sua corda, porque à sua sensibilidade não escapa que atolar um carro, tanto quanto terminar um namoro, podem significar grande sofrimento para alguém. Nunca vi Alex menosprezar a dor alheia). E depois a real satisfação que se nota nele por ter conseguido, simplesmente, ajudar.

Talvez tenha advindo daí, desse seu modo de ver a vida e as relações interpessoais, a enorme gratidão que fez questão de demonstrar publicamente aos profissionais que o salvaram após o seu mais grave acidente de trânsito, quando tinha ainda dezoito anos...

A lembrança de cada uma dessas ocasiões (e foram tantas que muitas se perderam na corredeira do esquecimento) retorna quando passo por grandes apuros. E também cada vez que penso nele: Quando será que ele precisa de ajuda? Por que será que ele mesmo não aparenta nunca necessitar-nos?


terça-feira, 10 de maio de 2011

Dia das mães II

- Crianças, hoje é dia de cantar parabéns para a mamãe, sabia? Tia Célia insuflou, de manhã, a caminho da praia.

- É!? Perguntou o Francisco, interessado.

Depois veio uma manhã inteira de banhos "piscinais" (assim dizem eles) nas prainhas infectadas da Ilha do Boi. E a tia Célia explicou a origem do nome etc.

Chegando em casa, banho, álcool nas periferias e o prato predileto: macarrão com linguiça. E tomate.

Shrek de sobremesa.

Certa hora fugi para o computador à cata de notícias, mas notei que o silêncio era demasiado. E essa percepção é uma que nunca falha. Se houver grunhidos ou choro ou risos ou palavrinhas soltas ou sussurradas, vá lá, mas silêncio total... Aí não! Pode correr que, no mínimo, um sofá está entrando na caneta!

Aproximei-me silenciosa feito uma alma, amparando-me no benefício da dúvida e já com medo de estragar alguma deliciosa brincadeira inofensiva. Apenas pisei no quarto e eles iniciaram os Parabéns, numa alegria semelhante à de quem dá de presente o primeiro carro. Claro que me emocionei. Em volta de toda a cama, sobre o lençol, foram enfileiradas coloridas peças de lego. "Esses são os docinhos", me disseram. Comi vários. Bem no centro, numa organização surpreendente pela geometria harmoniosa, fora emborcada uma panelinha de plástico: "Esse é o bolo!".

Quando já me dava por satisfeita com a comemoração do meu terceiro dia das mães, agachada perto de uma série ainda intacta de brigadeiros de plástico, os dois se aproximaram de mim num só abraço. E ainda anunciaram: "E esse é o parabéns!"

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Porquinho rosa

- Olha, mãe, aquele porquinho é rosa, igual eu.
- Igual a mim!
- Igual a eu!
- Não, meu bem, não é assim que se diz. O certo é: O porquinho é igual a mim.
Contrariada:
- Tá bom, mãe! Igual a você!

Torcicolo

Francisco, com torcicolo:

-Mãe, eu pareço o Quasímodo?

domingo, 8 de maio de 2011

Resposta difícil

Candido Portinari: Fuga para o Egito.

Filme nacional: a história do nascimento do Cristo.
Na estrebaria, Maria sorri, perto de dar à luz. José avisa que sairá para "procurar ajuda".
Em meio ao enorme deserto, ele se senta numa pedra e, com os olhos perdidos no nada, intenta uma negociação:
- Deus, ajuda Maria nesta hora. É o teu filho!...
Flora e Francisco estranham a cena. Acostumados que estão a diálogos entre dois personagens, perscrutam o céu sem nuvens ao qual se dirige o carpinteiro desesperado e me lançam, em uníssono:
- Com quem ele está falando?