sábado, 30 de junho de 2012

AVISO AOS LEITORES

Queridos amigos leitores,

Em breve este blog será tripartido, para que eu possa organizar melhor a minha produção e para que os leitores que frequentam um tipo específico de textos possam se situar com mais facilidade.

Aboio de fantasmas continuará sendo aquele que contém os textos em prosa (crônicas e minicontos), porque foi assim que comecei a tanger a minha boiada.

Um segundo blog será criado para abarcar a poesia, essa vereda em que acebei me metendo por acidente.

Num terceiro serão registrados os pequenos diálogos com as crianças.

Aceito sugestões de títulos para os novos blogs.

Abraços. Agradeço pela visita.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Pesadelos intermitentes ou Oração de ateu

Clarice Lispector.


Para Carol, Clarice e Célia Ribeiro.

She don't lie,
me gritam ao telefone.
Não reconheço
a voz de trovão,
mas suspeito que
o homem invisível
saiu do passado para me mentir
dentro do sonho...

É madrugada.
Ao fundo eu posso escutar
o som das correntes
que ele arrasta...

Deitada numa canga indiana
intuo sua incisiva orfandade.
É assim que o rosto me surge,
incrustado na roda-gigante de um coqueiro...

É ele: o fauno da ilha escaldante,
o fantoche manipulador
que um dia, num poema,
esmaguei.

Sua voz agora se faz angelical,
porém, ao contrário de Clarice,
não adotarei esse homem
- decreto ainda dormindo -,
tenho medo de tudo que me arrasta:
discurso, silêncio, vendaval...

Sem mais,
a artista Célia Ribeiro
me envolve o rosto em papel-manteiga:
sorte:
um pouco mais e
ninguém se lembra de mim.

Resolvo que não morrerei
até que cresçam as crianças
e nunca antes de lhes esticar a fita,
que de doce já basta a vida.

Terei de convencer a maquiagem
e todo dia inventariar um signo:
meu touro meu sagitário
meu aquário meu escorpião...

Prometo não dizer seu nome em vão
e atentar na BR-101.

Os amigos riscam floriscos nas barras do lençol,
belíssima mortalha
em que a canga se transforma.

Do nada surge Carol,
declamando a nova cartilha:
nem eu te ligo, nem você me telefona.

Fi-la crescer para me tomar a tabuada!,
penso que penso,
um tanto já engessada...

Por certo estou fora do meu tempo.
Afinal, tudo tem passado.
Cansei de brincar de mim.

Enquanto isso, em Bento Ferreira,
o senhor Marinho espalha seus chocolates:
as crianças engordam a olhos vistos.

No vaso, a orquídea-bambu
testemunha a minha pior humanidade.

Chove muito lá fora,
o céu semelha um grande melanoma:
Vitória do Espírito Santo.
Amém!



Melanoma

A dermatologista:
- Fica tranquila, não é nem um melanoma! Isso foi uma lágrima que secou.
- !?

Homem-criança

- Mamãe, você é muito linda, hem!
- Você acha isso mesmo, Francisco? Ou está falando só pra me agradar?
- Só pra te agradar.
- Rs.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Fila pra Arca


Nelson Leirner: Jogo de Futebol. Foto: Andréia Delmaschio.
 
A quem tem memória de elefante
faz falta até um abraço de urso,
uma lágrima de crocodilo...

Mas isso não é um erro incorrigível,
pior que o espírito de porco
do lobo em pele de cordeiro.

É sempre possível trocar a lebre por um gato
sem fazer disso um bicho de sete cabeças.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Facebook


Um Facebook
criei enfim:
só para mim!

domingo, 24 de junho de 2012

Cuidado

Flora:
- Pai, tomar cuidado é igual a tomar água?

Avental

Francisco:
- Mãe, na minha idade eu já posso usar avental?
- Avental? Pra quê, meu filho?
- Pra passar nos dentes, antes da escova.

sábado, 23 de junho de 2012

Vingança

Foto: Angelo Delmaschio.

Vingança é um prato que se come...
e vomita.

A mentira, parte 3

Elin Bogomolnik: Triângulo amoureux. Fonte: http://pt.artscad.com/A.nsf/Opra/SRVV-8P6TZM


Ele mentia a ela sobre mim
e a mim sobre ela
- descobrimos depois.

Mentia ainda sobre nós para as outras,
e sobre as outras para nós -
e assim sucessivamente...

Mas ela também mentiu tanto sobre ele
que é provável que tenha mentido sobre mim
e sobre as outras -
e assim sucessivamente...

Enfim, unidos mentem tanto - e tão bem -
que as suas mentiras, somadas,
formam praticamente uma verdade.

A única pessoa que diz a mentira,
aqui,
sou eu.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Balada do perdedor insone

Põe um, dois, três cavalinhos...
Quatro, cinco, seis cavalinhos...
Sete, oito, nove cavalinhos...
Põe dez cavalinhos na chuva!

Tira um, dois, três cavalinhos...
Quatro, cinco, seis cavalinhos...
Sete, oito, nove cavalinhos...
Tira todos os cavalinhos da chuva!

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Linguagem (do sonho)

Do mel dos teus cabelos
escorre um fio
que com a (ponta
da minha) língua
- é tudo de que disponho -
recolho.

Enfim sem palavras,
nas pontas das línguas
nos entendemos.

Presentinho


- Mãe, no meu aniversário você compra uma coisa?
- Compro. O que é?
- Aquele navio verde que passou embaixo da Terceira Ponte.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

No restaurante

Chateou-me a fila para que eu pudesse me servir. Irritou-me a falta de educação das pessoas revirando a comida nas bandejas. Incomodou-me a demora na nova fila, para pesar o prato e, por fim, a qualidade da comida. Tive vontade de me levantar e deixar tudo ali mesmo, mas corri os olhos em volta para avaliar se o descontentamento era geral ou se era eu que...

Foi quando vi o garotinho na mesa ao lado. Devia ter uns três anos. Enquanto ele mastigava pacientemente a beterraba que o pai lhe punha na boca em pequenos pedaços, brincava com uma borrachinha dessas que se diz "de amarrar dinheiro", esticando-a entre os dedos.

De cada uma das suas fossas nasais saía um pequeno dreno que subia por detrás das orelhas e que não consegui imaginar aonde chegaria; parecia descer pelas costas, sob a blusa. Obviamente incomodava, o que se notava pelas marcas fundas que deixava na pele. Sua cabeça tinha sido raspada, ao que tudo indica, naquele mesmo dia.

Depois da beterraba, ele mastigou vagarosamente o brócolis e a couve-flor que lhe foram oferecidos, mas, de meio em meio minuto, erguia na mão o guardanapo rude do restaurante barato para secar uma gotícula rósea que lhe escorria do nariz, mas que podia também ser só impressão sua - ou minha.

Sua serenidade me fez enrubescer.

Almocemos!

terça-feira, 19 de junho de 2012

Brincando com fogo

Não é que eu me sinto mal
Eu posso fazer igual
Não é que eu vou fazer igual
Eu vou fazer pior

(Titãs)

Aguarde, meu bem,
que arde ainda um pouco...
Não foi esta a última fagulha.

A beatitude fica restrita
ao seu budismo de manual.

Enquanto pira a pira,
sigo no mais completo silêncio,
realizando assim o desejo seu
e o meu.

Mas não se esqueça
de que libertei
(uma asa apenas d)
o meu cisne negro.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

O palhaço




Para Adolfo Oleare


Lutar contra o Acaso
é luta perdida.
Ele tudo disse e tudo traça
do que a nós não acontecerá.

Relaxemos, então...

Mas sobrou talvez
o Destino:
aquele mesmo maltrapilho,
de horrenda dentição,
que enxotamos de casa.

É provável que justo o Destino,
com suas tramas de Tróia
e seus Édipos electrizados,
nos sirva ele próprio
na bandeja de João Batista.

Quem sabe não seja o Destino
esse palhaço
que nós
enfeitamos todo de Acaso?

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Enriquecimento ilícito

Teus olhos
- diamantes -
me riscaram a blusa.

Da noite para o dia,
enriqueci.

Maquiagem

Andrea, no salão:
- Por favor, querida, me deixe parecida comigo mesma!

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Historinha retrocessa

O seu nome é uma faca, lâmina afiada
 enterrada no peito até o fim.
O segredo é uma faca de dois gumes.
(Fátima Guedes)


Ponto final.

Longo silêncio.

Cada persona segue o seu caminho, como se houvesse aquilo que se chama o seu caminho.

Daqui para a frente - digo, para trás - não se sabe mais que de corpos, nem de como se atraem. Porque é natural que se dêem encontros, tropeços, topadas, esbarrões... 

Neste exato momento, por exemplo, palavras são as pontas dos meus dedos deslizando pela tua face, iluminada apenas pela camada de pixels, enquanto os teus olhos me decifram e retalham em postas.

Preparaste a armadilha na qual eu ansiava por cair. Devolvo-a como um enigma, para além da falha, da queda, dos segredos.

Início de conversa: nós dois, nunca mais, estaremos tão próximos quanto neste exato momento.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Na pousada, 2



Flora: autorretrato involuntário.

Depois de três dias na pousada, com direito a entradas na mata e a piscininhas de pedra, principiei a preparar-lhe o espírito (e que espírito!):
- Minha filha, amanhã a gente vai para casa e volta à nossa vida normal, está bem?
- Mas, mãe, a minha vida é mais normal aqui!

A coisa


Sísifo. Vincenzo Pellegrino.

Amanheci com um pequeno orifício do lado esquerdo. Espinhas aparecem muito mesmo nessa área do colo. Seria melhor não mexer, para não contaminar, mas assim que me levantei escorreu um incômodo fio bege e rosa que manchou a camisola. Acabo de notar que alguma coisa ali se mexe, num movimento tão ritmado e constante que parece involuntário. E é grande, meu Deus, é enorme! Não é espinha. Nem se trata apenas de uma larva, como imaginei no começo. Se eu permanecer inerte, percebo que se mexe inteiro o seio esquerdo, sob a batida do invasor. Não suporto a persistência do incômodo movimento que há muitas noites não me deixa dormir. Preciso eliminá-lo. No armário tenho uma pequena bisnaga de anestesia, mas prefiro arrancá-lo às cruas, sozinha, e à mão. Com o pequeno estilete de apontar lápis abro um pouco mais o buraco e confirma-se o que eu já esperava: a coisa está arraigada ao meu corpo. Amplio o corte um pouco mais e vejo que se liga a mim por todos os lados. Além de peles e pequenas camadas de músculos, será preciso romper nervos, veias grossas e delgadas. Apanho a faca de jardinagem, esfrego-a um pouco na pedra de amolar e puxo, de um só lance, a coisa inteira para fora do peito, a fim de que o golpe seja certeiro. Em menos de meio minuto, ela está inteira na minha mão, pulsando ainda, e sangrando muito. Lanço-a à lata de lixo. Lavo as mãos cuidadosamente. Enxugo-as. Volto para a cama e enfim dormirei tranquila.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O eterno marido retorna ao divã

Paula Rego: O príncipe porco e a primeira noiva.

- Convenhamos, doutor: eu também sou mentiroso e egoísta, além de traiçoeiro, covarde, complexado, arrogante e manipulador. O senhor acha possível que minha mulher me ame?

O eterno marido, no divã

Paula Rego: Dog woman.

- Doutor, minha esposa é fria e calculista. Maquiavélica, mentirosa, egoísta, interesseira e cruel. Será possível que ela me ame?

O eterno marido, com seus botões

Paula Rego: Casamento à moda de Paul Hoghart.

O casamento é eterno;
as vizinhas é que vivem mudando!

O eterno marido, no consultório

Paula Rego: Estudo para A Noiva.

- Por favor, doutor, amplie minhas expectativas ao menos até os cinquenta! É que eu jurei que o meu casamento seria eterno.

O eterno marido, na igreja

Paula Rego: Bride.

- Padre, quanto dura um casamento eterno?

Na pousada, 1

 
Pousada Vila Suíça. Foto: Andréia Delmaschio.

Chegando à pousada interiorana, casinha à moda da do "Sítio", Francisco perscruta, muito sério, os cantos todos do quintal. De repente:
- Mamãe, cadê o Pedrinho?

Insight

Descobri
o doce
do seu cheiro:
é diabetes!

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Confissão

René Magritte: La reproduction interdite, 1937.

A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo. (Caetano Veloso)

Eu quero um leitor como você.
E se, gritando em silêncio,
algo em mim já o sabia,
que é que agora viceja,
se não o desejo do desejo seu?
Porque,
antes do querer
e antes mesmo de eu saber querer
- você bem sabe -
foi o seu desejo que leu em mim o querer meu,
fazendo de você, do mesmo modo
(e sem os freudianos subterfúgios)
o desejante da minha leitura
do seu querer.
E agora sou leitora - como você.







terça-feira, 5 de junho de 2012

fábio & vilma

O que me encanta não é o elo,
casamento belo
das diferenças -
é como sabem a ser:
em si mesmo cada um
e dispostos um para o outro.

Como dança que evolui,
são espelhos de corredores de labirintos.
Os corredores têm tapetes
que se refletem formando telas
e no fundo dessas telas
rodam cenas de cinema...

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Eu bem que avisei...



O beijo sem paixão
não chega nem aos pés,
jamais alcançará o umbigo
do auto-erotismo.
Ele é um estupro da alma.

sábado, 2 de junho de 2012

Novíssimo país de Oz


Eis que a pequena Dorothy, com os pezinhos lanhados de tanto caminhar com aquela turma, realiza os sonhos de todos os seus amigos: o Espantalho consegue um cérebro todo seu, o Homem de Lata ganha enfim um coração e o Leão Covarde passa a ter a desejada coragem. Depois de ter esmagado, ainda que involuntariamente, a Bruxa Má sob a incrível casa levada pelos ares por um ciclone, a doce menina consegue, contente, retornar ao lar, cantando "Over the Rainbow". Esquecida contudo de que era ainda uma primeira pessoa narrativa, ela não contava com um defeito histórico e sintomático de qualquer escrita: quem conta um conto, aumenta um ponto. Assim sendo, na nova versão misturam-se as personagens em suas idiossincrasias. O Espantalho é premiado com um cérebro magnífico, mas que lhe é inserido no lado esquerdo do peito; o Homem de Lata, que ansiava por um coração, passa a senti-lo latejando na cabeça, e o Leão Covarde, por medo, não aceita a valentia que lhe é ofertada de graça.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A mentira, parte 2

Michelangelo: Capela Sistina (detalhe).

A mentira tem pernas longas,
gestos elegantes e dulcíssimas palavras.
O seu problema nunca foi a longevidade
mas antes a inveja que ela nutre da verdade.
A mentira almeja ser a verdade,
quer ser digna, e nobre, e justa.
Mal sabe ela que a verdade,
pobrezinha,
daria tudo para ser, um dia,
muito, mas muito bem coitada!