domingo, 25 de dezembro de 2016

A vida

- Mãe, você viu aquela senhora que chegou perto de mim no supermercado?
- Vi, sim, e fiquei curiosa. Vocês estavam conversando sobre o quê?
- Foi assim: do nada, ela chegou perto e perguntou se Jesus era a coisa mais importante da minha vida.
- Ah, tá... E você respondeu o quê?
- Que não! Que a coisa mais importante da minha vida é a própria vida!

domingo, 11 de dezembro de 2016

Intraduzível

O inconsciente é multimídia. (Jacques Derrida)


- Eu tive um pesadelo horrível, mãe!
- Sério? Com quê?
- Sonhei com a professora de Inglês.
- Como foi?
- Ela trancava a gente na sala de aula, tirava a nossa roupa, apontava o dedo para nós e ficava rindo da nossa bunda.
- Nossa! E você, como se sentia?
- Eu tinha vergonha. E raiva. A turma toda tinha.
- Claro! Não é pra menos! Isso seria mais que abusivo!
- E o pior de tudo: ela ria em Inglês!
- !?

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Sempre

- Mãe, eu adoro falar. Será que eu sempre fui cagarela?

sábado, 5 de novembro de 2016

O rejeitado

Francisco: Zumbi.


"...dar uma dentada no coração de Cristo" (Raduan Nassar: Lavoura arcaica)


O rejeitado é uma invenção própria. É uma categoria psíquica que talvez não existisse se não houvesse o egocêntrico, o excessivamente vaidoso.


A sua dificuldade é entender que não foi preterido. Ele simplesmente não foi escolhido. Por que teria de sê-lo, entre tantos bilhões? Simplesmente porque um dia foi amamentado na teta da exclusividade. Porque o leite que sorvia dizia que seria ele o eleito. E não foi, não é. Não foi eleito sequer para ser o rejeitado.


O rejeitado distorce tanto a realidade que chega a acusar no rejeitador um desejo que é seu, sendo que aquele por vezes nem chega a existir, a ter presença ou importância no universo deste.


Sim, é triste. Menos triste porém que a eterna auto-ilusão. E menos injusto que culpar as pessoas pelos seus dramas mais íntimos. O cristianismo prega o amor, mas amor não é cristianismo!


Portanto a categoria dos rejeitados, autocriada, não precisava, não deveria existir. Quem cria a categoria dos rejeitados é o próprio rejeitado. Nunca soube de alguém que escolhesse simplesmente preterir. Não é assim que a coisa se dá.


E é ridículo, porque o rejeitado arrasta um andrajo feio, pelo qual tenta culpar o outro, que já segue numa outra viagem, que talvez nunca esteve mesmo naquela.


A rejeição faz mal. Ao rejeitado. Engorda, dá espinha, ataca o fígado e os joelhos. Dá dor de cabeça, nas costas, alcoolismo, depressão, miopia e câncer.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Obama vai passar


Vamos festejar,

a tocha vai passar.

Com esse fogo no rabo

o país vai levantar.

 

O Brasil é campeão,

vai ter taça e rabecão.

Nosso ladrão é cristão,

rouba com a Bíblia na mão.

 

Cantando o Hino Nacional,

defende a arara e mostra o pau.

Enquanto isso o grão-tucano

vai cheirando nosso pré-sal.

 

Não somos o país do futuro,

não somos o país do passado.

Somos do eterno retorno

e novo golpe vamos tolerar.

 

A terra firme vai tremer

quando o Serra leiloar

Cada centímetro do nosso subsolo.

Bora, Obama, comemorar!

 

Obama foi a Cuba.

Ele foi pra liberar.

Nenhuma ilha escapará.

O fim enfim vai começar.

 

Todos livres para escravizar,

comprar, poluir, explorar.

Oba oba, abram alas

que Obama vai passar.

 

O Grupo Globo vai exumar

Olavo Bilac e de Carvalho,

o papai-e-mamãe, a mesóclise.

Nada além aceitar-se-á.

 

A bandeirinha do Brasil

vamos todos retocar

com as cores da Fifa!

Viva! Fifa! Rifa!

 

Vamos comemorar, é Copa, opa!

É Olimpíada, piada!

É Campeonato, nato!

Sou eu que pago o pato.

 

É a época do quanta...

É Temer, Cunha, Usher, que Frota!

Feliciano e Bolsonaro...

Quanta gente imoral!

 

Viva o país do eterno retorno!

Onde os gênios são boçais:

Chico, Chávez e Chauí

O fascismo quer desancar.

 

Basta ligar a tevê

e a alegria se amplia

Como é linda a classe média!

Vamos todos ostentar!

 

A ciência vai avançar

à base de orações

e graças a uma mordaça

a educação vai deslindar.

 

Se o passado não vem cá,

a gente é que vai até lá

e desenterra nazi, fascista e torturador

Salve, salve! Obama vai passar!

 

 

 

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A fenda sexista no coração da infância



Algumas vezes eu chego à escola mais cedo, para apanhar as crianças, e posso ver a turma subindo de volta para a sala de aula, retornando da educação física ou da biblioteca.


Entedia vê-las seguir separadas em duas filas indianas que, na altura do terceiro ano escolar, depois de quase meia vida de treinamento, já formam espontaneamente, ao se deslocarem de um ambiente para outro, como imagino que seja a rotina num colégio militar.


Para além de entediar, revolta ver que as meninas seguem em uma fila, e os meninos em outra. Olhando-os assim separados, eu me pergunto se existe alguma justificativa razoável para afastar meninos de meninas desde a mais tenra idade.


Será que, se perguntar à professora, à pedagoga, à coordenadora ou ao diretor da escola qual a razão da separação, algum deles saberá responder com um argumento para além do da mera organização do deslocamento pelo espaço? E, se assim for, já não está suficientemente provado que a segregação, ao invés de prevenir, antes reforça o desejo de perverter? Não seria organização suficiente se as crianças andassem em filas, mas sem a separação por gênero? Saberão esses gestores dizer por que promovem essa fenda sexista no coração da infância? Suponho que não haja uma resposta clara e convincente.


Creio mesmo que fazem isso com a maior naturalidade. E um problema que se naturalizou e arraigou como hábito é o pior dos problemas. É algo cuja solução terá de passar primeiro por uma tomada de consciência da sua existência, por ser óbvio para quem olha de fora, porém invisível como o ar para aquele que o respira. Com essa mesma naturalidade perversa se cometem, em sociedade, tantos outros atos cuja razão se desconhece, cujos objetivos simplesmente não existem. Por que é então que se faz algo que não tem um porquê? Não se sabe, se faz porque sempre se fez. Porque sempre, antes, foi assim.


E é justo daí que surge a necessidade - diria mesmo a urgência - de se tocar nesse ponto, do sexismo nas escolas de ensino fundamental. Se não cuidarmos disso nesse momento da socialização, de nada adiantará discursarmos, posteriormente, contra o machismo, o preconceito contra a mulher, contra a cultura do estupro e o feminicídio, problemas graves e gritantes em sociedades como a brasileira de 2016. Se o problema não é notado e se não se toca no assunto justo nos espaços onde se tem a possibilidade, tanto quanto a responsabilidade de tocar nele, que é o ambiente educacional, então não haverá saída. Afinal se trata, de fato, de um ambiente educacional? Ou de um mero lugar de reprodução de ideologias e comportamentos? No caso, ideologias inconscientemente interiorizadas e comportamentos extremamente discriminatórios.


Creio que, para as crianças que ali estão, seria talvez menos nefasto separá-las por peso ou altura. Propor uma fila de distraídos e outra de hiperativos. A comparação absurda que estabeleço pretende alertar para essa outra separação, também absurda, das filas de gêneros, que de algum modo acompanhará e guiará o comportamento dessas pessoas por todos os outros ambientes, vida afora.


É preciso insistir num ponto: a discriminação que dispensa explicações é a pior que pode haver, é a mais sutil e penetrante, e, ao mesmo tempo, a mais difícil de contestar.


Por que as escolas não separam, por exemplo, por etnia (embora nessa escola, uma escola particular brasileira, quase não haja negros; praticamente só haveria uma fila, ou seja, a separação foi feita antes)? Por que a minha pergunta é tão chocante hoje, se sabemos que em outros tempos e lugares (nos EUA de 50 anos atrás, por exemplo) a segregação era a regra? Por que a mera colocação da questão soa hoje criminosa? Porque os gestores educacionais são todos plenamente conscientes dos direitos humanos e contrários a todo tipo de discriminação? Não. Tanto é que a segregação prévia, de base econômica, resultante do nosso histórico de país escravagista, parece não incomodar em demasia. A resposta certa é: a pergunta assustaria hoje porque, apesar de o Brasil ser um país excludente e que repete cotidianamente, mais de 500 anos depois, a história da colônia escravocrata, ao menos no campo discursivo, há décadas já se acusa a necessidade de não discriminar o negro e mesmo de enquadrar o racismo como crime. Ou seja, somente da luta cotidiana e do clamor da nossa revolta diante do que parece o mais óbvio e natural é que pode advir uma sociedade verdadeiramente igualitária.



quarta-feira, 26 de outubro de 2016

amor ao nada

os melhores amores foram os impossíveis

cê, áureo rancho irretocável
gê, herói astuto estratosférico
pê, peregrino entre planetas

desses, nada a declarar
nenhum erro a refazer
nem perdão a pedir

só a memória do amor imaginário
a sombra da rua não cruzada
o olhar cortado

o leve o perfeito o polido o lindo nada

sábado, 22 de outubro de 2016

O Nada


Francisco, ao retornar da anestesia:


- Cadê meu nariz? Cadê meus lábios?

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A ERA NADIR

O ex-vice comendo um porco. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr. http://brasileiros.com.br/2016/04/oposicao-ja-admite-compor-eventual-governo-temer/




- Bom dia, querido!

- Bom dia!

- Já chega de falar de política, não é mesmo? Ninguém aguenta mais isso. Que foi que deu no brasileiro? Esse povo tão alegre e festivo resolveu agora acompanhar os acontecimentos do mundo político! Que é, afinal, que essas coisas têm a ver com a vida do cidadão comum? Por que é que importam as ações desse governo que, de repente, aí está? 

- Não sei... É PEC, É MP... Acho que não têm nada a ver com a minha vida, não!

- Pois é! Vamos mudar de assunto, então! Qual o seu nome?

- Nadir.

- Ah, então você é o Nadir? Bom dia, querido Nadir! Ser tratado por querido é muito bom, não é mesmo?

- É, sim.

- Agora, por outro lado, já pensou, você acordar de manhã, abrir a janela, olhar para o outro lado da rua e ver escrito no muro "FORA NADIR"?

- Rs.

- Imagine se as pessoas, ao se encontrarem nas redes sociais e nos locais de trabalho, antes mesmo de se cumprimentarem, passassem a ter por hábito dizerem umas às outras "FORA NADIR"! 

- Rsrs.

- E toda vez que alguém fosse dar início a uma palestra ou a qualquer manifestação em público, diria assim: "Primeiramente, FORA NADIR". 

- Rsrsrs.

- Já imaginou pegar o carro, dar uma volta pelo bairro, depois pela cidade, e em quase todos os muros encontrar a inscrição "FORA NADIR"? Imagine só, as pessoas espalhando cartazes e bandeiras com seu nome estampado, e diante dele o "FORA"... "FORA NADIR". As pessoas promovendo festas com seu nome depois do "FORA", já pensou? Imagine então saber que cantores, bandas, corais, orquestras de todo o país estão gravando canções populares, heavy metal e sinfonias em que entoam a frase com seu nome: "FORA NADIR"! A Nona, de Beethoven, o Carmina Burana... Como num pesadelo, tudo clama, tudo grita: "FORA NADIR". Nos viadutos, nas pontes, nas pistas, nas placas... em todo canto um verdadeiro exorcismo em nível nacional: "FOOORA NADIR". O seu filho acorda de manhã, vai à escola e vê as pessoas com adesivos no peito em que figura o nome do pai: "FORA NADIR", "FORA NADIR", "FORA NADIR". Considere então chegar a um outro país e, como numa revelação confirmatória, ter o seu nome trocado, lá, pela pessoa que o recebe no aeroporto: "Welcome, Mr. FORA NADIR". E mesmo lá pequenas multidões passam diante de você carregando faixas de "FORA NADIR".

- Rsrsrsrs.

- Fique tranquilo que é só um pesadelo, do qual em breve você irá acordar. Afinal, que tipo de gente suportaria uma agonia tão lenta, ligada ao esfacelamento da identidade (afinal se trata do próprio nome), pela ideia de expulsão e escárnio expressa no "FORA"? Que tipo de interesse poderia mover alguém a aguentar a vivência cotidiana de tamanho horror ontológico, presente no suprassumo do indesejado, bem marcado no nome diante do seu: "FOOORA NADIR"?

- Rsrsrsrsrs.

- No futuro, os livros de História vão se referir a você como "Nadir, o Grande Traidor", ou simplesmente "Fora Nadir". Você será descrito como um canalha entre canalhas, quando valores como a lealdade tiverem restabelecido o seu sentido, depois de uma era de extrema depravação moral, individualismo doentio e limitação intelectual que terão levado o planeta ao esgotamento de muitos de seus recursos naturais e humanos - e que no Brasil ficou conhecida como a Era Nadir.

- Rsrsrsrsrsrs.

- Você ri? Acha graça? Jura mesmo que não se importa? Não parece uma reação normal. Você não é uma personagem verossímil. Procedi muito mal ao te criar. Sem qualquer sombra de dúvida. Você é um engodo, uma mácula, um erro que eu quero esquecer.

- Rsrsrsrsrsrsrs.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

CHORE!


CHORE!
VOCÊ ESTÁ SENDO
FILMADO.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A PEC, a arrogância, o diálogo, a ironia

A ignorância tem seu preço. Pode até ser auxílio para a conquista da felicidade o nada conhecer sobre certos assuntos, mas, a depender das circunstâncias, é melhor não erguermos a nossa ignorância numa taça, não fazermos dela tanto alarde.


Algum tempo atrás, se não me engano as pessoas tinham pudor de emitir certas opiniões sem qualquer embasamento em áreas do saber das quais nada conheciam. Agora, falar em áreas do saber é que soa arrogante. Buscar e ter esclarecimento sobre certos assuntos também se transformou num mau sinal. Numa conversa, as pessoas costumavam ouvir um pouco, antes de falar, ao menos para ter um tempo de escolher as palavras para a resposta - ou para outra pergunta. Paradoxalmente, parecia não haver tanto pudor de demonstrar desconhecimento, se havia ali alguém disposto a nos esclarecer... Assim, entre perguntas e respostas, o diálogo acontecia. E era comum acreditar-se que os mais velhos, os mais sábios, os que tinham vivido, lido, viajado ou estudado mais tinham algo a nos ensinar.


Hoje já fica difícil. A gente quer conversar, mas fica a cada dia mais difícil. Eu quero muito saber de onde veio esse delírio coletivo. Qual a origem dessa arrogância sem limite e sem fundamentos que vem virando de cabeça para baixo o mundo do diálogo possível, nas redes sociais virtuais e nas não virtuais.


E olhem que eu consigo conceber, teoricamente, muitas condições contraditórias ou paradoxais, mas como entender, por exemplo, o homossexual homofóbico? Freud explica, alguém dirá. Um outro acrescenta que é um jeito de quebrar o espelho na porrada... Pode ser, mas, e aquela experienciazinha mínima de alteridade, o famoso colocar-se no lugar do outro? Lembra com que frequência usávamos essa expressão, uns tempos atrás? Pois é, virou a maior caretice, coisa de cristão, deve ser. Mas por que razão foram dispensar logo a melhor parte do cristianismo, e salvar as piores?


Agora tem um monte de gente se arrogando por títulos (vou omitir alguns exemplos de títulos que não deveriam ser exibidos, suspeitando contudo que pode ter sido essa omissão - não de títulos, mas de "autoridade" (espero que essa expressão se aproxime ao máximo, aqui, de "autoria", porque traz a ideia de assunção, de responsabilidade sobre o dito e sabido) que, em contrapartida, gerou a falta de vergonha a que me referi antes).


Tem gente se arrogando por pensar que "fala bem" ou "escreve bem", muitas vezes agarrado a uma estrutura e um vocabulário inadequados ao contexto, e, mesmo se dizendo "da área" específica de estudos da linguagem, nada acompanhando das atualizações do estudo do próprio idioma, a que tantos pesquisadores dedicam suas vidas. Aliás, nesse caso, quanto maior a limitação, maior o delírio de saber. Foi assim com a condenação inquisitorial, alguns anos atrás, do livro didático que trazia como exemplo uma frase do falar popular. Assim é com o endeusamento ridículo de figuras públicas que desenterram fórmulas arcaicas do idioma em seus discursos ocos de conteúdo, pobres de significação, carentes de ideias e ainda por cima descontextualizados. São arrogantes estes, e aqueles que aplaudem, sem condições muitas vezes de dizer o quê e por que é que apreciam aquele modo de falar. Tem gente que gosta de ser enganado.


Porque pessoas arrogantes são até engraçadas em determinadas situações. A gente percebe que elas sabem que têm um certo brilho, ou que encontraram uma pequena pérola que muitos gostariam de possuir... Às vezes foi só um livro mesmo que a pessoa publicou, gravou um disco, passou num concurso, recebeu um elogio público, sei lá...


Às vezes a origem do delírio me parece mais clara: há pais que endossam em excesso (resquício tardio de um psicologismo paternalista e de um pedagogismo do reforço que já teve o seu momento, e deve ter tido as suas razões) e a criança cresce cercada da sensação de que ela é única, melhor, especial, perde a referência. Depois, quando vem o tombo, é aquele trauma... Lá vai a família para o psicólogo, tentar resolver o que um pouquinho só de choque de realidade teria resolvido logo no início. Elogio é uma droga pesada. Devíamos andar com um espelho de bolso para nos olharmos nessas horas. Fotografias sem photoshop também ajudam.


Há amigos que pensam estar ajudando (por vezes só querem se livrar mais rápido da figura intragável, e lançam a loa). Outros pensam auxiliar na solução daquela fragilidade e insegurança ululantes, e lá se vão mais uns elogios exagerados... Enfim fazem o camarada se sentir um prodígio, sendo que a sua atuação é apenas medíocre - ou seria, pouco tempo atrás...


O espetáculo pode ser acachapante. Ainda mais quando os elogios são trocados por duas ou mais pessoas reconhecidamente fracas numa determinada área do saber (com o perdão da expressão, tão arrogante!). Não estranha que se juntem em grupos coesos de auto-ilusão e auxílio mútuo, para manutenção e propagação do delírio coletivo. E têm todo o direito de fazê-lo, afinal, dizem que a união faz a força - é o lema fascista. Mas esse tipo de união só faz a força bruta (nas duas acepções do termo), e é um desserviço que lhes prestamos fazer de conta que para nós está tudo bem e que a ignorância deve dominar o mundo.


Não! É preciso falar, e talvez com mais veemência, ampliada na medida mesma da ignorância gritalhona. Um conteúdo forte contra um volume alto.


É um terreno confuso, sem dúvida, e nem dá para acusar a caretização politicamente correta que há algum tempo se generalizou e que já vinha entediando e isolando a geração que foi jovem na década de oitenta. Não é possível mais pôr a responsabilidade naquela caretice porque metade dela é, hoje, ao contrário do patrulhamento ideológico dos primeiros anos pós-ditadura, politicamente incorreta quando se trata dos problemas dos outros, dos filhos dos outros, do sofrimento dos outros, da morte dos outros...


É aí que entra a ignorância com sua via de cobrança: não precisa ser cristão para entender que o sofrimento do outro ser humano (com o perdão da expressão) também é meu. Não estou falando de solidariedade (eu não chegaria a tanto), mas, se nós vivemos em comunidade (tribo, bairro, cidade, facebook), é mais que provável, é fato que quem não tem, mais cedo ou mais tarde, dê um jeito de buscar. Isso para permanecer num argumento epidérmico, quase cínico.


Até há algum tempo era difícil explicar o óbvio sem recorrer à ironia, esse recurso em plena transformação no nosso idioma. Teremos (já começamos) de recorrer a um hiperdidatismo, ou então não sairemos mais deste lugar terrível de ausência de diálogo a que chegamos ultimamente.


Vamos de novo, escolhendo um exemplo só: se o número de assaltos aumentou no seu bairro, não é carro de polícia passando na rua que vai resolver. O problema começa antes. Por menos que você queira encarar, aquele que assalta é uma pessoa. Então vamos por partes: ele nasceu e viveu, foi criado (ou não), educado (ou não) por determinadas pessoas e em dadas circunstâncias. Essas circunstâncias envolvem ter ou não o que comer (desde bebês, eles também precisam comer, e todo assaltante um dia foi um bebê), ir ou não à escola. Etcétera. As circunstâncias a que me refiro dependem também do que encontram na escola, e ainda do nível de desigualdade que são capazes de perceber entre o que receberam e ainda recebem (primeiro dos pais, se houve, e depois do Estado, se sabem que ele existe e para que existe).


Essas variantes e outras mais podem ter maior ou menor influência, mas todas elas contam. E não é crente nem cristã ou espírita quem está falando. É fato. Assim, se você quer ou precisa continuar vivendo em comunidade, vai ter que dividir espaço com essas pessoas, porque elas existem.


Agora vem o ponto importante: para que elas não existissem - como assaltantes, bem entendido -, o processo teria de ser brecado lá atrás, ok? Carro de polícia passando na rua, prendendo, torturando e matando, não resolve o problema delas. E nem resolve o seu, porque, no fundo, vocês são duas faces de um mesmo problema: o da desigualdade social, que é de base e origem econômica. Isso mesmo: estou falando de ter produtos à disposição, poder de compra, poder consumir. Estou falando de distribuição de renda e de acesso a serviços. Sim, eles não nasceram pobres por determinação do destino - não no sentido grego. O destino deles (e o seu) dependem do mercado capitalista e das políticas públicas existentes. Por isso também não resolve não votar, votar nulo ou em branco. Continuaremos tendo de ter "representantes"(permitam-me as aspas) na presidência, no congresso, na câmara dos deputados, no governo do estado, na prefeitura...


O Estado tem de prover meios de melhoria das condições de vida, desde o início. É por isso que uma Proposta de Emenda Constitucional com a PEC 241, lançada agora pelo governo Temer e apoiada por maioria dos deputados é contra o futuro do país. Congelar o investimento público em saúde e educação não é economizar; é empurrar a conta para o futuro. Um futuro menos doente, menos miserável, menos drogado e prostituído é tudo o que desejamos e que vínhamos, a duras penas, conquistando neste país.


É por isso que você, que fala contra quem defende os direitos humanos, é mais obtuso do que quem os defende, e sem ser mais cristão. Note: a insegurança da sua família para ir ao shopping comer hambúrguer depende diretamente de uma melhor distribuição de renda, programas sociais (saneamento básico, educação, saúde, moradia) para essas pessoas. Fique tranquilo: você não estará sendo bonzinho pensando assim. Isso não fará de você um petista, nem um socialista, e muito menos um comunista. Ainda não. Só te declararia menos obtuso. Ligue os pontos aí e você verá que só tenho insistido no óbvio.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A lógica do absurdo e o Governo Satanás

Enquanto o MPF dá um novo show de lógica do absurdo e anuncia a "convicção" de que o apartamento do Guarujá é, sim, de Lula, alardeando como prova o fato de o apartamento não estar no nome dele...

Espera aí, eu explico melhor: enquanto o MPF, provando que, quando se quer desgraçar alguém, a maior prova é não haver provas... Ou seja, se o apartamento não é dele, só pode ser dele, e o fato de não ser dele é sinal de dissimulação...

Enquanto isso, o presidente desinterino do Brasil, Senhor Michel Fora Temer, mais conhecido como Zé Mesóclise, se pronuncia sobre a ameaça - que fez - de supressão dos direitos dos trabalhadores e sobre o anúncio - que fez - de congelamento dos investimentos na saúde e na educação pelas próximas duas décadas:

(Voz de garfo arranhando fundo de prato. Transcrição literal.) "- Não é o que se alardeia e não é o que se divulga, portanto não é o que se deixa de reproduzir a verdade dos fatos (Socorro, Dilma! Vem ensinar sintaxe a esse senhor!) e isso cria problemas para nós (Poxa! Estão criando problemas pra vocês, Michel?), porque, convenhamos, é muito desagradável (Desagradável é quando mijam na tampa do vaso!) imaginar que um governo seja tão - se me permite a expressão um pouco mais forte... - tão estupidificado, tão idiota (Conheço expressões mais fortes para designar o seu governo, mocinho recatado! Pensei que fosse dizer algo como "Satanás!") que chegue ao poder pra restringir direitos dos trabalhadores, pra acabar com saúde, pra acabar com educação (Não fui eu. Foi o Temerário, o Incompetemer quem disse, em rede nacional, com todas as letras, por que é que não vai suprimir os direitos dos trabalhadores, por enquanto - se é que não vai: porque ele não é idiota de fazê-lo, ou seja, é preciso enganar o bobo por mais um tempo, pelo menos até o Lula ir preso e acabarem de vez com o Partido dos Trabalhadores - isso é o que eles pensam. A preocupação do governo desinterino não é, nunca foi o trabalhador brasileiro e os direitos que conquistou. A preocupação dele é, primeiro: não parecer idiota; segundo: manter-se no governo. Aliás, notem como ele engole os artigos antes de saúde, de educação e de direitos dos trabalhadores. A ausência do artigo definido denota um descaso indisfarçável: saúde, educação, direitos... ele joga tudo num mesmo saco, essas coisas de pobre que oneram os cofres públicos, larga esse troço pra lá!). É preciso que nós tenhamos consciência disso (Consciência de quê? De que neste país não importam mais os direitos? De que as elites, a mídia e os poderes mancomunados fazem o que bem entendem?). Que os senhores deputados e senadores vão pra tribuna e contestem aqueles que possam eventualmente vilipendiar os fatos." (Satanás!)

domingo, 4 de setembro de 2016

Aquarius primeiramente

httpcinezencultural.com.brsite20160512sonia-braga-o-retorno-do-mito-e-a-admiracao-de-um-fa



Acerca do filme Aquarius pode-se dizer muita coisa, mas vou me centrar em um ponto que, segundo o amigo Luciano Valin, explica o porquê de ele ter tido a censura elevada, inicialmente, para 18 anos: Aquarius é um retrato do Brasil atual, este vasto território confuso em que o diálogo se torna, muitas vezes, impossível. Os desdobramentos da imagem revelada agora pelo cineasta Kleber Mendonça Filho são de se temer, mas muita gente não quer enxergar.


O título Aquarius, nome de um edifício situado em frente à praia de Boa viagem, no Recife, onde se passa a trama, se for entendido pela ótica da personagem Clara (Sônia Braga), pode denotar otimismo quanto ao futuro, porque prenuncia a multiplicação pelo mundo, de agora por diante, de pessoas íntegras, sinceras e sensíveis como ela, ainda que a boa nova demore 600 anos - são as previsões astrológicas. A Era de Aquarius seria um período de grande desenvolvimento intelectual e espiritual para a humanidade, tempo em que a mentira e a ganância perderiam o sentido e as pessoas exerceriam os seus afetos com tranquilidade e altruísmo.


"Age of Aquarius" é também a canção que acompanha a trajetória do musical Hair, que fez sucesso nos EUA na década de sessenta, espalhando-se rapidamente por todo o mundo. Os personagens são um grupo hippie e a peça anuncia a Era de Aquarius. No Brasil, foi encenada pela primeira vez em 1969.  O elenco contou então com a atuação de Sônia Braga aos 18 anos ("uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel", cantaria, depois, Caetano). A atriz iniciante sustentou diante da plateia um nu de um minuto, negociado com os censores da ditadura militar pelo diretor Ademar Guerra, que se esmerou no tratamento estético da cena. Os atores todos, sob imposição da censura, deveriam permanecer imóveis no palco. Sônia Braga protagonizou assim aquela que muitos afirmam ter sido uma das mais belas cenas do teatro brasileiro até hoje.


No filme Aquarius, como uma referência que se reitera, "O cabelo de Clara", que também nomeia um dos episódios, brinda, de uma só vez, ao futuro, à liberdade e à sensualidade, remetendo ao musical de teor revolucionário e à história da própria atriz brasileira (para pensar o futuro é preciso conhecer o passado). Além disso, os cabelos, símbolo da sensualidade e da beleza, são, no filme, constantemente exibidos, tocados e cuidados pela personagem escritora, que, além de tê-los, anteriormente, perdido, devido à quimioterapia, teve também um outro signo tradicional da sensualidade amputado: a mama.


Se visto a partir da ótica do jovem engenheiro dublê de corretor de imóveis Diego Bonfim (Humberto Carrão), formado em "Business" nos Estados Unidos, aí então o título do filme deve ser considerado na sua carga irônica. Logicamente não temos que resolver por uma das duas opções de leitura do título, afinal, a história (no filme e fora dele) continua se fazendo e a sua recepção por parte de cada espectador, a leitura particular, depende de um conjunto de fatores que não pode ser considerado de maneira simples, entre eles o próprio contexto imediato em que a pessoa está inserida, a sua sensibilidade, a capacidade de ouvir, o modo como se informa e é afetado no contato com aqueles que o cercam e cujas opiniões divergem da sua opinião inicial. Etcétera.


Esse retrato do Brasil nos aponta, primeiro, o esquecimento, a curta memória que temos, no país, de eventos da nossa história pregressa, mesmo os mais próximos, e de suas consequências para a nossa vida, individual e socialmente falando.


Depois, o moralismo e o recalque, um bom-mocismo e uma seriedade de fachada que nada mais são que a casca oca de uma madeira que vai sendo roída, por dentro, pelos cupins. E nunca é demais lembrar que cupim não escolhe madeira, e que pau que dá em Chico, dá em Francisco. Mais cedo ou mais tarde. É só uma questão de tempo.


Aliás, é longa já a atuação do cupim na história da arte e da literatura como sinal da passagem do tempo e das transformações históricas. Talvez porque ele tem de corroer por dentro, trabalha escondido, sutil, silenciosa e incansavelmente, vindo à tona apenas e tão-somente quando o edifício todo já está minado na sua própria estrutura - para o bem e para o mal.


Uma outra faceta desse perfil que o filme expõe é o hoje já indisfarçável preconceito: o brasileiro é racista e machista, embora, até onde a habilidade discursiva permitiu, alguns conseguiram, por um tempo, escamotear; outros, mais cínicos, continuam a negar com veemência que no Brasil convivemos com a discriminação das minorias (aliás, é algo a se confirmar: se são mesmo minorias): "- Daqui de onde eu posso ver - diz Diego a Clara - dá para notar que a sua família teve que lutar muito para conseguir chegar a algum lugar, essa pele meio morena..." É nessa hora, esgotados os argumentos racionais, que Clara desiste do diálogo e sai, em silêncio, porém sempre com a cabeça erguida. A aparente polidez do homem de negócios, a "educação" exibida até ali nada mais é que uma estratégia de marketing. "Business". Por meio da palavrinha inglesa e declarando a nação a que se encaminhou para os estudos, o rapaz define e exibe o seu poderoso "saber" e a inconteste fonte cultural do seu modo de agir: "- A senhora não me conhece. Eu estudei Business nos EUA". Durante o tempo que dura a tentativa de adquirir o apartamento de Clara, enormes matrizes de cupins de demolição são transportadas clandestinamente por Diego para o prédio, com o objetivo de enfim minar sua resistência à negociação. "Business".


E é assim que, em circunstâncias diferentes, ligadas embora pelo "argumento" comum do lucro, dois personagens homens e jovens lhe lançam na cara, em tom acintoso de intimidação, essa conhecida pérola da retórica nacional, de origens patriarcais, coronelísticas e proprietárias,  de gosto policialesco e autoritário: "- Você sabe com quem está falando?"


Ali se junta, à ameaça velada e por isso mesmo covarde, em que é patente a insinuação de que o próximo passo é a violência física, a tentativa de subjugá-la com base numa suposta superioridade de macho branco e endinheirado, uma superioridade sem fundo que lhes concede o poder de esbravejar incólumes, sobretudo porque se trata de uma mulher e porque ela resiste a jogar o seu jogo. É preciso destacar que o seu desejo é simplesmente exercer o direito de continuar morando no apartamento em que criou os filhos, que fica de frente para a praia em que mergulha todos os dias, ainda que - sutil ponto de confluência entre ficção e realidade -, os tubarões volta e meia ataquem os banhistas.


Lá fora, a devoração geral provém da ganância dos empresários do ramo da construção, que a tratam como louca por não aceitar as propostas feitas pela venda do apartamento. Todos os demais proprietários do Edifício Aquarius já venderam os seus, o que configura Clara como uma pedra no sapato. O poder do dinheiro é tão incontestável que os direitos dos cidadãos podem ser, um por um, ignorados, suplantados, sumariamente suprimidos. É assim no Brasil de hoje: aquele que não se rende às razões do capital é tratado como louco - e todos os conceitos se agudizam quando se trata de uma mulher.


Clara ouve diversas vezes, inclusive da própria filha, que a "coisa certa" a fazer é vender. No entanto ninguém se esforça por se colocar no lugar daquela que não aceita apagar a própria história em troca daquilo que para ela pouco ou nada significa. Assim como não houve interesse em substituir a mama perdida por uma prótese, não há interesse em substituir as paredes e móveis, que trazem a marca do tempo, por um apartamento novo e anódino, no prédio de instalações uniformes que se pretende construir sobre os escombros do Edifício Aquarius.


A nova moradia dessa era anti-Aquarius em que ainda vivemos tem de ter espaços "gourmet" e "lazer" que talvez nem venham a ser usados de fato. Não, o enclausuramento burguês não se contenta mais com isolar-se juntamente com outras famílias que possuem a mesma faixa de renda, que frequentam o mesmo clube e assistem ao mesmo telejornal. Essa prótese de sociedade é apenas mais um delírio, uma ilusão. Na verdade, o enclausuramento é ainda maior e mais doentio: é uma prisão entre quatro paredes, que também já não são mais as paredes da casa ou do "lar". Embora o negue desesperadamente no seu discurso, essa mesma família já não existe com o sentido de laços afetivos reais e comprometidos: os pais há muito transferiram a educação dos filhos: primeiro para os avós, depois para a escola, mais adiante para a babá, por fim para a televisão e o computador, e, agora, para o tablet. As quatro paredes do tablet é que se abrem na mão desse novo ser humano, física e socialmente isolado, ou seja, politicamente alienado, porque as relações (afetivas, sexuais, culturais, políticas) necessitam de corpos. É de corpos materiais que - ainda - se trata.


Assim é a nova morada ideal no Brasil: verdadeiros shopping centers feudais que se alastram pelas nossas cidades, sonho da sagrada família pequeno-burguesa, consumidora inculta que se acha bem informada, depredadora anti-ética que se supõe portadora de muito bom gosto e que vai se defender, ali dentro, de toda a insegurança que nasce do fato de ainda haver pobres.


Só que não entenderam o bê-á-bá: para que se eliminem os pobres, é preciso eliminar-se a pobreza. O ponto seguinte de um silogismo tão óbvio, aquele que trata de como se erradica a pobreza, esse ponto já não querem nem mesmo ouvir. Para isso, eles têm uma palavra de quatro sílabas. Isso, para eles, é dou-tri-na-ção.


A única doutrinação que aceitam é a que ouvem do padre ou do pastor na igreja. O sagrado casal hétero de idade média vai ao cinema, assiste ao Ben Hur, se emociona e chora diante da tela com as palavras revolucionárias do Cristo. Ao sair dali, acelera o carro e lança-o com violência sobre "pobres, nordestinos, mulheres, negros, homossexuais, petistas, feministas e comunistas" que ousem cruzar o seu caminho. O caminho de volta para o feudo, se o feudo não tiver a sua própria sala para exibição de filmes - de preferência filmes que não lhes ameace com o desafio desagradável de ter de refletir, que não lhes ofereça um retrato da sua própria condição.


No Brasil brincamos de máquina do tempo. Temos saltado para trás de vinte em vinte anos, e não sei ao certo onde aportamos agora, se em 1964 ou em 1984. Tudo indica que teremos de lutar simultaneamente pelo retorno à liberdade de expressão e por eleições diretas já.
No próximo salto podemos cair direto num momento anterior às conquistas da CLT, quando, quem sabe, teremos de trabalhar literalmente até a morte. Enquanto isso, outros realizarão enfim um velho sonho: possuir escravos que entregarão o seu trabalho, quando muito, em troca de comida.


A parada seguinte pode ser o Brasil colônia e escravagista.











sábado, 3 de setembro de 2016

190 - vitorianos

- 190. Boa noite! Em que posso ajudar?
- Boa noite! Para quem eu devo ligar quando o bandido for a polícia?








(Aceito fotos para ilustrar este post.)

domingo, 28 de agosto de 2016

Problemas


- Mãe, eu estou desconfiada de uma coisa...
- De quê?
- Eu acho que descobri por que os pais de vez em quando ficam tristes e os filhos não sabem por quê.
- É? Por quê?
- É porque quando as crianças têm um problema, elas contam para os pais e eles ajudam a resolver. Os pais, quando têm um problema, têm que resolver por si mesmos.

Tênis rasgados

- Esses tênis já estão rasgados, meu bem. Vamos ter de jogar fora.
- Ah, mãe... Não dá pra ficar pelo menos mais uns dias, pra eu me despedir deles!?

sábado, 13 de agosto de 2016

DNA

Jogando Imagem & Ação, sai para Flora a cartela que solicita uma mímica que explique DNA.
- Isso aqui eu nem sei o que é. O que é DNA, tio?
- Hum... lembra das células?
- Sim.
- Pois é... o DNA é um composto que fica dentro das células.
- E ele serve pra quê?
- Pra várias coisas, mas ele é que determina a cor dos seus olhos, do seu cabelo...
- Entendi.
(Silêncio pensativo.)
- E quando a mamãe pinta o cabelo, o DNA dela muda?

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Alcaparras

- Você disse que não tinha azeitonas! Então o quê que é isso aqui, mãe?
- Nesse potinho aí, Flora? Parecem alcaparras...
- Ah... Poxa! Você não mente nunca, mãe?
- Minto sim. Agora mesmo eu estou mentindo.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Ruga

- Mamãe, a ruga dá no corpo todo ou é só pra enfeitar o rosto?

Cômico

- Francisco, cômico!
- Já comi!

terça-feira, 19 de julho de 2016

Amigas imaginárias

- Mãe, você tem uma melhor amiga imaginária?
- Não, eu tenho uma melhor amiga real, mas às vezes nós nos vemos tão pouco que parecemos amigas imaginárias.
- Não. Não é assim não, mãe. Amigas imaginárias se veem na hora que querem!

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Primeira dentição

- Até que enfim os meus dentes da frente caíram! Eu não via a hora de o meu sorriso ficar bonito igual aos das minhas colegas!

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Sem direção


- Mãe, quem é que dirige o filme do meu sonho?

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Chaves no céu




Assim que morreu o ator mexicano Roberto Bolaños, recebi pelo Whatsapp essa ilustração comovente e graciosa em que o Chaves, alado e coroado feito anjo, com seu suspensório mal ajambrado e levando ao ombro a trouxinha de roupas na ponta de uma vara, chega aos céus no seu passo inseguro.

Um certo punctum, como aquele pelo qual Roland Barthes declara ser atraído em certos registros fotográficos, imediatamente me sequestra. O bracinho torto, findando na mão curiosamente afastada para longe do corpo, imita o ângulo típico das crianças muito magras.

Num semigesto que à primeira vista parece antinatural, a mão pende para o lado inverso daquele em que costuma descansar, opondo-se portanto ao repouso e ao recolhimento do eu, que por sua vez se liga à quietude, às necessidades satisfeitas e à vida contemplativa.

O gesto revela a inquietude do insatisfeito, do que necessita e solicita, mas, de maneira curiosa, também sinaliza o ato de voltar-se para o outro, de percebê-lo e, por fim, revelá-lo, no instante mesmo em que se revela.

Esse outro, já do lado, envolto pelas nuvens do desconhecido, é o senhor Madruga, a cujo gesto chamativo, como num balé involuntário, o contra-gesto do Chaves parece, sutil, ritmada e inescapavelmente, tentar resistir, num apego talvez a esta  miséria de cá, que, apesar da indignidade, ao menos já é sua conhecida.

Mesmo para quem não crê no céu como estágio futuro, e sabe ainda estar distante o tempo em que a possibilidade de habitar outras partes do universo nos livrará da nossa atual condição humana de habitantes da Terra, conforme a previsão de Hannah Arendt, mesmo e principalmente para nós, que desejamos a redenção para os pobres, tanto quanto para aqueles que foram abandonados pelos pais e/ou pelo Estado, para nós mesmos a imagem é reveladora, já que, ao fundo, espera pelo Chaves o Senhor Madruga, o que, de maneira ambivalente, se por um lado dá a ideia de companhia e proteção àquela criança desamparada, também ameaça com a clara continuidade da situação de incompreensão e violência representada no seriado pelo próprio Madruga, esse outro exemplar da escória humana, quase tão miserável quanto o menino que dorme no barril, contudo portador de duas qualidades que este não tem: a casa (alugada, é verdade, e sempre em débito) e o poder de adulto (embora desempregado, mal alfabetizado e por isso mesmo menos respeitado que o Senhor Barriga e o Professor Girafales, aquele dono do cortiço e este último um propagador de conteúdos que, a um tempo em que os propaga, da maneira mais tradicional e tediosa possível, o que torna seu conhecimento pouco significativo e mesmo motivo de zombaria, reproduz também, dentro da sala de aula, todos os degraus hierárquicos que de maneira mais, ou menos sutil, informam, lá fora, as relações entre aquelas crianças e aqueles adultos).

Ao fundo das nuvens sobre as quais se encontram as personagens, surge uma luz verdadeiramente terrível, e que se torna tanto mais terrível porque é atraente e promissora. Porém o fato de ser o Senhor Madruga, mais uma vez, o “guardião” do Chaves, enche a cena de um atavismo que beira o cinismo desesperado – ou o desespero cínico. O braço do Senhor Madruga acena, literalmente, com a ameaça de continuidade, com a supressão da única saída que a saída para/pela morte ainda prometia proporcionar.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Cafuné

- Mamãe, eu vou gastar as minhas unhas, de tanto te fazer cafuné!

domingo, 3 de julho de 2016

Anagramática

- Ih, meu filho, não lembro onde deixei o carro!
- Sério, mãe?
- Sério!
- Nossa! Tomara que você não esteja com Amy Winehouse!

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Nesse mundo


- Mãe, onde nós vamos encontrar uma bandeira vermelha, nesse mundo sem comunistas?

sábado, 25 de junho de 2016

O óbvio em La belle saison













http://vivre-en-thailande.com/10560-2/10560/


Provavelmente por ser professora, eu acho importante, vez ou outra, lembrar que o mais difícil de perceber – e de tentar explicar – é o óbvio. Lembro isso a mim mesma com frequência. É como uma profissão de fé. Não resolve tudo, mas ajuda a evitar longos monólogos que muitas vezes parecem diálogos.

E se, nesse campo, fujo ao monológico, por outro lado, gosto de ir sozinha ao cinema. É um prazer que me reservo sempre que possível. Gosto de imaginar que entro na fila, e depois na sala, como entrarei na tela: inteira. E não é para evitar o risco de ser desviada, durante a exibição, por comentários sobre o filme; eu mesma sou tentada a fazê-lo todo o tempo. É que, nessa hora, quero estar apenas com o povo que habita lá dentro da tela. Nesses instantes mágicos, salve Clarice, “a solidão é um luxo”.

Todavia se ao lado eu tenho um amigo, fatalmente, além de fazer a minha própria leitura do filme, não escapo a imaginar o que ele lê na tela, embasado no que conheço da sua personalidade, seus gostos e preconceitos. Bem sei que mesmo vendo e ouvindo o mesmo, vemos e ouvimos diferente. A tentação, nesse caso, é a de ver dois filmes ao mesmo tempo: o meu e o dele. Obrigada. Prefiro não.

É por isso que, quando tenho de ir ao cinema acompanhada, em geral escolho filmes que considero ruins, secundários na minha lista, filmes aos quais dedicar mais, ou menos atenção, realmente não faz diferença. Inúmeras vezes, é claro, eu me engano nesse prévio julgamento de qualidade.

Esta semana porém fui com WF, que respirava do fluxo da sua escrita sobre o diário de EN. Tendo lido algumas resenhas, nem ele nem eu dávamos muito por “La belle saison”, filme de 2015, da diretora francesa Catherine Corsini, e ambos estranhamos a tradução do título por “Um belo verão”, que ao final concordamos ser simplificadora. “A bela estação” é, no mínimo, uma parte da vida, enquanto a opção por “verão” (que todavia comparece na metáfora do título original) reduz tudo a um caso de amor, talvez devido a ecos inevitáveis na história do cinema. Ainda por cima, destaca apenas a estação em que se ambientam as tomadas feitas no campo, em detrimento das cenas parisienses, que contrastam – e não só climaticamente – com aquelas. O contraste entre as duas estações, no filme, reforça o aspecto simbólico – e mesmo onírico – de alguns elementos: na fazenda é sempre verão, enquanto em Paris invariavelmente faz frio.

O caso de amor entre as protagonistas – Carole (Cécile de France), a agitadora feminista parisiense, cujo nome remete a cabeça, e Delphine (Izïa Higelin), a filha de fazendeiros, cujo nome se liga à ideia de herança patriarcal – é apenas um detonador de diferentes expressões do preconceito machista que se espalha pelos dois ambientes, o campo e a cidade.

Delineia-se também um certo fundo de conto de fadas, borrado por pinceladas realistas, o que, expondo um jogo entre super e supraestrutura, pode inclusive passar despercebido – como tudo o que, de óbvio, grita, sem jamais ser ouvido. Aos poucos, a narrativa revela alguns tentáculos do gigantesco aparato ideológico que faz com que mulheres aceitem e reproduzam, desde cedo, a falsa ideia de sua inferioridade diante do homem.

E qual é a primeira e mais elaborada ferramenta de inculcamento a que são submetidas as crianças, ainda muito pequenas? Qual o primeiro grande dedo a delinear para as mulheres o seu papel, a apontar o lugar que lhes cabe num mundo dominado por homens, senão o conto de fadas? Logicamente não seria justo reduzir um gênero literário a isto, nem responsabilizar a ele somente, mesmo porque, no mundo capitalista, o conto de fadas não está presente apenas nos livros e filmes, mas em todas as demais mercadorias, da mamadeira ao signo de status do Facebook.

O conto de fadas porém continua tendo grande parte na construção desse sentimento que incita homens e mulheres a uma espécie de delírio sob o domínio do qual chegam a desejar ou mesmo a acreditar serem príncipes e princesas. Caberiam aqui, para começo de conversa, duas questões básicas: o que é ser homem ou mulher, e o que vem a ser príncipe ou princesa. Deixamos ambas para outro momento, evitando um desvio do assunto.

Parte das cenas de amor entre as protagonistas de “La belle saison” se passa na mata. A mata simboliza o inconsciente e é o lugar onde comumente “se perde” – ou para onde é levada – a princesa (Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Bela adormecida), que ao final será resgatada da morte pela coragem do homem, pelo amor do príncipe encantado.

Na última dessas cenas, Carole e Delphine se deparam com um camponês da vizinhança, que tanto semelha um “caçador” quanto o “lobo mau”, do mesmo modo ambivalente que em algumas versões do conto dos irmãos Grimm. Ao flagrar as moças se tocando no caminho sob as árvores, o seu olhar não é o de quem simplesmente irá denunciá-las na comunidade, fazendo fofoca sobre a sua sexualidade. Para além do que Delphine imagina, a expressão do homem parece antes expor um desejo recôndito, o recalque cuja revelação pode auxiliar inclusive no entendimento do machismo e da misoginia generalizados, abrindo espaço para a reflexão sobre até que ponto se trata de dois sentimentos diferentes.

E se a mulher é tratada como um ser de segunda categoria, a quem são destinados o trabalho braçal e a procriação, o que lhe estará reservado na condição de mulher e homossexual? O olhar do caçador e os desdobramentos da ação nos levam a pensar que a homossexualidade passa mesmo a uma certa secundariedade na escala, se comparada à discriminação que a mulher ainda sofre, como algo já praticamente naturalizado.

E quem conhece algumas comunidades interioranas do Espírito Santo, por exemplo, sabe que o homossexual não é somente visto como alguém que, diferente do heterossexual, deseja um outro do mesmo sexo. Em diversas localidades, ainda hoje o homossexual é considerado, por alguns, um tipo monstruoso, um depravado ou alguém pronto a servir sexualmente a qualquer um. Para muitos, o homossexual revelado perde o status de pessoa, é um objeto simplesmente destinado para o sexo.

Nessas mesmas comunidades deparei-me, algum tempo atrás, com o uso da curiosa expressão “homem sexual”, em lugar de “homossexual”, o que parece duplamente revelador. Ainda que o uso do termo denote desconhecimento da forma correta da palavra, desvela também, e em primeiro lugar, a absurda reificação do outro por vias da sua sexualidade; segundo, mostra mais uma faceta da exclusão da mulher, já que não se usa ali, em contrapartida, a expressão “mulher sexual”. Algumas pessoas das que entrevistei, homens e mulheres, declaram não acreditar que “existe mulher que quer ficar com mulher; isso só acontece por falta de macho”.

Não falta, ao fundo de conto de fadas (ou mitológico) de “La belle saison”, nem mesmo o príncipe encantado, representado pelo personagem chamado Antoine (Kévin Azaïs), como o de Saint-Exupéry, autor do famigerado “O pequeno príncipe”. O rapaz, jovem, loiro e apaixonado por Delphine, é aquela presença que nos faz perguntar se não seria mais fácil a ela se contentar com a sua dedicação, ainda mais porque o "pequeno príncipe" reúne tantas qualidades desejáveis, é um vizinho que a conhece “desde sempre”, nas suas próprias palavras arquetípicas, e se faz presente nos momentos em que ela necessita da presença de um homem.

Mas é justo aí que se coloca a questão: de que é que, de fato, Delphine necessita? Para quê e por quê ela precisa de um homem?

Quando o patriarca da fazenda retorna do hospital, paralisado depois de ter sofrido um derrame, é Antoine quem ajuda Delphine no transporte do velho escada acima, ambos empregando igualmente a sua força física para removê-lo. Depois, quando uma vaca dá à luz um bezerro no meio da noite, Antoine é chamado para auxiliar, mas quem de fato põe a mão na massa, digo na carne, e auxilia para que nasça a o animal, é a própria Delphine. A cada um dos eventos, Antoine é instado a apoiar as duas mulheres, mas quem age de fato são elas.

Os acontecimentos descortinam o óbvio: naquelas situações, como em tantas outras, faz-se prescindível a presença do homem; ele está ali antes pela sua força simbólica que por uma força de outra ordem. A insegurança quanto a isso é ideológica e culturalmente internalizada nas mulheres, fazendo-as dependentes psíquicas de uma presença que, além de não ajudar – e por isso mesmo –, muitas vezes atrapalha.

As reações de Antoine indicam que ele ao menos o intui. Daí o ressentimento histérico (tradicionalmente tido como feminino) que demonstra ao ver as duas jovens se beijando, e o exagero expressivo com que orna os esforços físicos que, aparentemente, o fazem útil a Delphine e à manutenção do universo da fazenda, em que ambos desenvolvem o seu trabalho. Até que ponto o “amor” de Antoine se mescla aos desejos de ser o herdeiro daquelas terras é algo que apenas de modo secundário o romantismo que nos serve de base permite questionar, sob o risco de desmoronamento de todo o castelo construído até aqui, na terra mole da fazenda.

O pai inclusive, anteriormente ao acidente cerebral, já é, de modo perceptível, quem trabalha menos. Enquanto Delphine dirige a máquina, a mãe lança acima os fatos de feno, e ele, o patriarca, literalmente guia as mulheres, vai adiante indicando o caminho a percorrer naquele estranho trabalho repetitivo que é o de cortar e secar a grama para alimentar o gado. Aliás o fazendeiro nem mesmo traz no corpo as marcas de quem lida no campo, caracterização que foi primorosamente cuidada no que toca às atrizes que dão vida às duas camponesas.

Após a doença, fisicamente imobilizado, mesmo não tendo condições de dirigir ou ordenar, de ser portanto “o cabeça” da família, o homem tem preservado o seu aspecto simbólico, o que permite questionar a tese de que o domínio masculino se deva à proeminência intelectual e/ou à superioridade física.

A mãe de Delphine, mesmo com os pés fincados naquela estrutura heteropatriarcal, afirma que “mulheres e homens são iguais para o trabalho”, endossando, sem sequer o notar, que o poder do macho, nessa sociedade, é antes de tudo simbólico e a ele atribuído também pelas mulheres. Quando o marido é hospitalizado, é nos seguintes termos que ela descreve a si e à filha: “nós parecemos duas galinhas sem cabeça”. Porém, tendo apenas descoberto o envolvimento de Delphine com Carole, a velha camponesa, até então calada e submissa, repentinamente traz à tona o seu fascismo homofóbico. Reprodutora de um discurso falocêntrico e repressor, ela agora afronta a feminista com veemência, tachando-a de “a escória”.

No filme de Catherine Corsini, aproximam-se, fatalmente, mulher e vaca, como antes foram comparadas mulher e galinha. A procriação, explicitada no momento em que a vaca dá à luz, é um problema que permeia toda a trajetória de Carole, desde a sua militância contra a criminalização do aborto até o seu trabalho, uma década depois do caso com Delphine, divulgando métodos anticoncepcionais numa clínica que realiza o aborto.

A comparação com animais da fazenda, como vaca e galinha, que são grandes reprodutores e por isso mesmo valorados e criados também para a sua devoração, não simplesmente reduz a mulher ao estágio animal, mas lembra que, assim como o homem, ela é carne, tem desejos, ela pode e deve ser responsável pelo destino e pelos resultados de sê-lo e de tê-lo. A mulher como reprodutora – de seres e de ideologia – é um ponto importante em que o filme ousa tocar. Afinal, juntamente com as discriminações que sofre como trabalhadora, no mundo capitalista, a mulher tem de enfrentar também as reduções que sofre a sua expressão do desejo. Sexualidade, trabalho, vida, produção e reprodução, tudo se emaranha e, em grande parte, é dependente da mulher, ao contrário do que se costuma afirmar.

Por isso a liberta Carole, que põe Delphine em apuros ao dormir com ela na casa da fazenda e ao correr nua pelo pasto, num dado momento chega a dialogar com as vacas que mugem no pasto, pedindo, ironicamente, que não a condenem por seus atos. Quando enfim nos entranhamos e compreendemos o universo de Delphine, a liberdade de Carole chega a soar egoísta, por parecer que ela desconsidera o quanto a outra é emaranhada pelos fios daquela ideologia invisível e quase muda, que impõe as suas normas não apenas pelo que decreta, mas antes de tudo pelo que cala. O mais difícil de perceber é o óbvio.

Ao fim, é justo pelo trabalho que cada uma das personagens, tanto quanto possível, se liberta para ser: Carole passa a trabalhar na clínica ao lado da nova companheira, enquanto Delphine adquire sua própria fazenda. Ela vai para longe do domínio (e dos domínios) dos pais, porém permanece curiosamente ligada à terra, e realiza o mesmo tipo de trabalho para o qual fora treinada “desde sempre”.

domingo, 5 de junho de 2016

Cutuleb em Guananira





O órgão chamado coração é a mais suja maneira
que os seres inventaram
de sugar a vida em mim.
(Artaud)

re
-verte
tácito
é
cat
-ártico.
pior:
cat
-antártico.
incen
-deia
ma
-cer
-a
-foga
de
-gela
des
-penha
meu coração.







sábado, 4 de junho de 2016

O Sexto Século do Brasil Colônia

- Mamãe, por que os negros não têm jeito de donos?

quinta-feira, 2 de junho de 2016

domingo, 29 de maio de 2016

Príncipe

- Nossa, mãe! Que príncipe cara-de-pau... A Branca de Neve estava bem tranquila, cantando lá no poço com os passarinhos... Ele chegou sem avisar e começou a cantar alto, no meio da música. Até assustou a menina. Que cara chato!

Deus e Homem

- Mamãe, será que o mundo é machista porque o deus é homem?
- Não, meu bem. É o contrário!

sábado, 28 de maio de 2016

Retornando ao tema da normalidade...

O segundo caso foi na conversa com uma colega, professora das séries iniciais. Relatou que a maioria das crianças é muito agitada:



“- Não querem ficar sentados!”

“- Aos seis anos é difícil mesmo, a energia do corpo pede mais.”

“- Nada disso! Existe o normal.”

“- Ah, é verdade... eu tinha me esquecido!”

Pronto, resolvido o impasse. Basta que eu me cale: a maioria não é normal, nem mesmo sendo a maioria. A crise de pensamento e de argumentos é tão geral que atropela inclusive as razões mais óbvias, a própria tautologia. Na verdade eu acho que a colega nem notou a ironia na minha fala final. Continuou:

“- Pois é! Você ainda entende, mas muitos pais não entendem, não!”

Dei corda então, no melhor estilo burocrata, que constitui a feição e a função do professor hoje, para ver aonde chegaríamos:

“- Você já comunicou à direção?”

“- Já falei. Todo dia eu mando uns três pra coordenação, mas nada adianta.”

“- Ritalina!”

“- Ahn?”

“- Ritalina! É excelente! Meus vizinhos dão pro filho deles. Eu nunca mais ouvi a risada do menino.”

“- Ah, é ótimo mesmo! Se a gente pudesse colocar na merenda!”

Dois parágrafos sem conexão

Brasil, 2016, ano do golpe.

Enquanto os piratas de Brasília dividem o butim, registro dois curtos parágrafos sem conexão entre si, a não ser a coincidência da data:

25 de maio: o vídeo do estupro coletivo sofrido por uma menina de 16 anos na Zona Oeste do Rio de Janeiro se torna viral na rede. Um dos mais de 30 homens que a estupraram filmou com o celular e divulgou.

25 de maio: o ministro da Educação do governo pirata recebe propostas de Alexandre Frota (ator pornô que um ano atrás narrou com detalhes, em rede nacional e sob aplausos, como estuprou uma mulher).



domingo, 22 de maio de 2016

Normal (parte 1)


“Mães zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas...” (Gilberto Gil)
As palavras estão à nossa disposição. Ao que parece, podemos nos servir delas ao bel prazer. Algumas vezes chegamos a crer que realizamos plenamente esse direito, como um macaco realiza o seu desejo diante de um cacho de bananas. Algumas palavras atraem feito ímãs, outras nos saltam de dentro como se tivessem nos causado uma indigestão. Acontece que, como as bananas, as palavras têm casca. Parece um exagero dizer que, em prol da vida, é preciso remover a casca das palavras.
Durante esta semana chamou-me à atenção o uso da palavra “normal”, que ouvi três vezes, pronunciada por pessoas diferentes, em diferentes ocasiões.
A primeira foi numa loja. Um homem bastante jovem se aproximou e pediu uma dica sobre que roupa deveria comprar para a filha pequena. Enquanto eu fazia os cálculos divinatórios sobre a numeração, cujo tamanho, no Brasil, sempre esteve em defasagem com relação à idade das crianças reais, o rapaz, talvez para quebrar o silêncio insuportável de vinte segundos, me veio com esta: “Antes era mais fácil comprar, porque menina gostava de princesa, e menino de super-herói, que é o normal!”
Nessas ocasiões vem à tona aquela vontade de argumentar, de dizer que, ainda que fosse ele mesmo quem quisesse variar ou fugir à norma, em todas aquelas centenas de araras à nossa disposição, por mais que lhe parecesse que sim, ele jamais conseguiria fugir à normalidade, porque cada gravura daquelas, cada cor, cada botão, cada sutil diferença nos desenhos das golas, cada detalhe já tinha sido pensado e desenhado sobre uma prancheta, planejado por meses a fio para nos colocar a todos dentro de uma norma, ainda que a intenção fosse justamente nos dar a ideia contrária, a de que somos livres para escolher e de que as possibilidades ao nosso alcance são infinitas.
Claro que enquanto eu olhava as roupinhas à minha frente e pensava sobre isso o homem já tinha mudado de ideia. Quando me voltei para ele, vi que caminhava em direção às prateleiras de acessórios. Mas a última palavra dele ficou comigo: normal. Era o que ele desejava para sua pequena filha: que fosse uma criança normal, com uma vida normal, vestindo roupas normais.
A mim parece triste um tempo em que o desejo se reduza a tão pouco.
Esse foi o primeiro caso.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Não basta golpear, tem de escarnecer


Ao Grupo Globo de Telecomunicações não satisfaz promover o golpe de estado. À Rede Globo de Televisão não basta emburrecer a audiência; tem também de chamar de burra, em alto e bom som, no ato mesmo em que a emburrece, sendo em geral aplaudida por ela.
O que vai aqui é óbvio para qualquer pessoa que não ignore a existência da superestrutura, mas nem por isso é menos revoltante, e não devemos nos iludir acreditando que a maioria o note e não precisamos mais falar sobre isso. Porque, é claro, em 2016 ainda há quem não creia que o homem chegou à Lua, e há também quem rechace a teoria da evolução das espécies.
Mas eu estou falando do Grupo Globo, e ele não duvida; ele sabe.
Na sexta-feira 13, um dia após a possessão de Temer (maio de 2016, ano do golpe), ia ao ar mais um capítulo da série “Liberdade, liberdade”. Durante grande parte do episódio, a personagem Alexandra (Juliana Carneiro da Cunha), uma idosa com os cabelos incrivelmente curtos para o século XIX, perambula perdida por ruas e praças, mendigando e recebendo na face o escárnio do povo que passa, casais que passeiam de braços dados, famílias que saem da igreja. Ah, a igreja! A mulher está trajada com roupas que, embora sujas e rasgadas, não escondem a nobreza da sua condição anterior. O golpe que recebeu no pescoço, em close, ainda sangra.
Na cena anterior, no meio da mata, Xavier (Bruno Ferrari) havia se aproximado e perguntado seu nome, que ela já não lembrava. No resumo prévio desse capítulo, publicado dias antes no site da série, assim que Xavier a encontra, a mulher desmaia e é amparada por ele. Na edição final porém o rapaz estranhamente deixa que a senhora idosa e ferida parta sozinha pelo meio da mata.
Enquanto isso, Joaquina, a filha do Tiradentes, recebe o famigerado livro do pai. Numa atuação de fazer inveja a qualquer vendedor de feira livre, a atriz Andreia Horta lê, se emociona com a dedicatória “para Joaquina, que herdará um país livre”, e chora. E chora. A personagem de Lília Cabral secunda: “um país livre, é esta a sua herança”.
E se resume a isso, por enquanto, a genialidade dos profissionais dessa grande empresa produtora de arte e cultura (profissionais que, em massa, apoiaram o golpe de estado que resultou, já nas suas primeiras horas, na extinção do Ministério da Cultura): transformar num meme fútil e leviano um dos eventos mais importantes da história do Brasil e da luta do seu povo pela liberdade: a Inconfidência mineira.
Ora, todos sabemos que essa empresa tem capital suficiente para manter o aparato tecnológico necessário à criação e à propagação diuturnas de um conjunto de ideias que já foi capaz inclusive de eleger um candidato a presidente da república, embora esse tempo já nos parecesse um pouco distante, antes do último capítulo do golpe.
Também sabemos que a Globo pode comprar profissionais competentes, tecnicamente falando. Só que técnica não é tudo, e o que não nos parece muito inteligente é justo a ostentação ostensiva, por assim dizer sobeja, desse mesmo poder de manipulação e desse ódio de classe mal dissimulado.
Dissimulado? Até que ponto tem sido necessária a dissimulação? Até quando a classe trabalhadora do país aguentará calada? Foucault afirmou um dia que ninguém suportaria o poder totalmente cínico ou como mero impositor de censura. E aí quase ouço a resposta, sempre cínica, dessa empresa que domina a nossa mídia golpista, racista, fascista, reacionária, corrupta e sonegadora: - Que é isso, companheiro petralha? Não ostentamos quase nada! Nós somos capazes de muito mais!
E assim esfregam esse poder de manipulação, de modo debochado, bem na cara daquele que lhe dá audiência, ou seja, daquele mesmo que lhe dá esse poder. Um poder que no fundo resulta do valor produzido justamente pela classe trabalhadora de que essa elite empresarial depende, para ter aos seus pés produtos e serviços.
Mas o problema do poder sempre foi o perder a mão, e, para que saibam a dose certa a aplicar para a sua desejada propagação, é preciso que conheçam melhor o paciente!
O escárnio é a arma dos que não têm argumentos, e é a um verdadeiro show de zombaria e cinismo que temos assistido ultimamente no país, em todos os níveis do raciocínio e da produção do espetáculo, da feira livre ao Senado.
Mas não nos enganemos: não há quem ria de dentro da sua própria ignorância que não receba de volta seus frutos estragados, mais cedo ou mais tarde.
Vamos à luta para que seja mais cedo!