domingo, 29 de maio de 2016

Príncipe

- Nossa, mãe! Que príncipe cara-de-pau... A Branca de Neve estava bem tranquila, cantando lá no poço com os passarinhos... Ele chegou sem avisar e começou a cantar alto, no meio da música. Até assustou a menina. Que cara chato!

Deus e Homem

- Mamãe, será que o mundo é machista porque o deus é homem?
- Não, meu bem. É o contrário!

sábado, 28 de maio de 2016

Retornando ao tema da normalidade...

O segundo caso foi na conversa com uma colega, professora das séries iniciais. Relatou que a maioria das crianças é muito agitada:



“- Não querem ficar sentados!”

“- Aos seis anos é difícil mesmo, a energia do corpo pede mais.”

“- Nada disso! Existe o normal.”

“- Ah, é verdade... eu tinha me esquecido!”

Pronto, resolvido o impasse. Basta que eu me cale: a maioria não é normal, nem mesmo sendo a maioria. A crise de pensamento e de argumentos é tão geral que atropela inclusive as razões mais óbvias, a própria tautologia. Na verdade eu acho que a colega nem notou a ironia na minha fala final. Continuou:

“- Pois é! Você ainda entende, mas muitos pais não entendem, não!”

Dei corda então, no melhor estilo burocrata, que constitui a feição e a função do professor hoje, para ver aonde chegaríamos:

“- Você já comunicou à direção?”

“- Já falei. Todo dia eu mando uns três pra coordenação, mas nada adianta.”

“- Ritalina!”

“- Ahn?”

“- Ritalina! É excelente! Meus vizinhos dão pro filho deles. Eu nunca mais ouvi a risada do menino.”

“- Ah, é ótimo mesmo! Se a gente pudesse colocar na merenda!”

Dois parágrafos sem conexão

Brasil, 2016, ano do golpe.

Enquanto os piratas de Brasília dividem o butim, registro dois curtos parágrafos sem conexão entre si, a não ser a coincidência da data:

25 de maio: o vídeo do estupro coletivo sofrido por uma menina de 16 anos na Zona Oeste do Rio de Janeiro se torna viral na rede. Um dos mais de 30 homens que a estupraram filmou com o celular e divulgou.

25 de maio: o ministro da Educação do governo pirata recebe propostas de Alexandre Frota (ator pornô que um ano atrás narrou com detalhes, em rede nacional e sob aplausos, como estuprou uma mulher).



domingo, 22 de maio de 2016

Normal (parte 1)


“Mães zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas...” (Gilberto Gil)
As palavras estão à nossa disposição. Ao que parece, podemos nos servir delas ao bel prazer. Algumas vezes chegamos a crer que realizamos plenamente esse direito, como um macaco realiza o seu desejo diante de um cacho de bananas. Algumas palavras atraem feito ímãs, outras nos saltam de dentro como se tivessem nos causado uma indigestão. Acontece que, como as bananas, as palavras têm casca. Parece um exagero dizer que, em prol da vida, é preciso remover a casca das palavras.
Durante esta semana chamou-me à atenção o uso da palavra “normal”, que ouvi três vezes, pronunciada por pessoas diferentes, em diferentes ocasiões.
A primeira foi numa loja. Um homem bastante jovem se aproximou e pediu uma dica sobre que roupa deveria comprar para a filha pequena. Enquanto eu fazia os cálculos divinatórios sobre a numeração, cujo tamanho, no Brasil, sempre esteve em defasagem com relação à idade das crianças reais, o rapaz, talvez para quebrar o silêncio insuportável de vinte segundos, me veio com esta: “Antes era mais fácil comprar, porque menina gostava de princesa, e menino de super-herói, que é o normal!”
Nessas ocasiões vem à tona aquela vontade de argumentar, de dizer que, ainda que fosse ele mesmo quem quisesse variar ou fugir à norma, em todas aquelas centenas de araras à nossa disposição, por mais que lhe parecesse que sim, ele jamais conseguiria fugir à normalidade, porque cada gravura daquelas, cada cor, cada botão, cada sutil diferença nos desenhos das golas, cada detalhe já tinha sido pensado e desenhado sobre uma prancheta, planejado por meses a fio para nos colocar a todos dentro de uma norma, ainda que a intenção fosse justamente nos dar a ideia contrária, a de que somos livres para escolher e de que as possibilidades ao nosso alcance são infinitas.
Claro que enquanto eu olhava as roupinhas à minha frente e pensava sobre isso o homem já tinha mudado de ideia. Quando me voltei para ele, vi que caminhava em direção às prateleiras de acessórios. Mas a última palavra dele ficou comigo: normal. Era o que ele desejava para sua pequena filha: que fosse uma criança normal, com uma vida normal, vestindo roupas normais.
A mim parece triste um tempo em que o desejo se reduza a tão pouco.
Esse foi o primeiro caso.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Não basta golpear, tem de escarnecer


Ao Grupo Globo de Telecomunicações não satisfaz promover o golpe de estado. À Rede Globo de Televisão não basta emburrecer a audiência; tem também de chamar de burra, em alto e bom som, no ato mesmo em que a emburrece, sendo em geral aplaudida por ela.
O que vai aqui é óbvio para qualquer pessoa que não ignore a existência da superestrutura, mas nem por isso é menos revoltante, e não devemos nos iludir acreditando que a maioria o note e não precisamos mais falar sobre isso. Porque, é claro, em 2016 ainda há quem não creia que o homem chegou à Lua, e há também quem rechace a teoria da evolução das espécies.
Mas eu estou falando do Grupo Globo, e ele não duvida; ele sabe.
Na sexta-feira 13, um dia após a possessão de Temer (maio de 2016, ano do golpe), ia ao ar mais um capítulo da série “Liberdade, liberdade”. Durante grande parte do episódio, a personagem Alexandra (Juliana Carneiro da Cunha), uma idosa com os cabelos incrivelmente curtos para o século XIX, perambula perdida por ruas e praças, mendigando e recebendo na face o escárnio do povo que passa, casais que passeiam de braços dados, famílias que saem da igreja. Ah, a igreja! A mulher está trajada com roupas que, embora sujas e rasgadas, não escondem a nobreza da sua condição anterior. O golpe que recebeu no pescoço, em close, ainda sangra.
Na cena anterior, no meio da mata, Xavier (Bruno Ferrari) havia se aproximado e perguntado seu nome, que ela já não lembrava. No resumo prévio desse capítulo, publicado dias antes no site da série, assim que Xavier a encontra, a mulher desmaia e é amparada por ele. Na edição final porém o rapaz estranhamente deixa que a senhora idosa e ferida parta sozinha pelo meio da mata.
Enquanto isso, Joaquina, a filha do Tiradentes, recebe o famigerado livro do pai. Numa atuação de fazer inveja a qualquer vendedor de feira livre, a atriz Andreia Horta lê, se emociona com a dedicatória “para Joaquina, que herdará um país livre”, e chora. E chora. A personagem de Lília Cabral secunda: “um país livre, é esta a sua herança”.
E se resume a isso, por enquanto, a genialidade dos profissionais dessa grande empresa produtora de arte e cultura (profissionais que, em massa, apoiaram o golpe de estado que resultou, já nas suas primeiras horas, na extinção do Ministério da Cultura): transformar num meme fútil e leviano um dos eventos mais importantes da história do Brasil e da luta do seu povo pela liberdade: a Inconfidência mineira.
Ora, todos sabemos que essa empresa tem capital suficiente para manter o aparato tecnológico necessário à criação e à propagação diuturnas de um conjunto de ideias que já foi capaz inclusive de eleger um candidato a presidente da república, embora esse tempo já nos parecesse um pouco distante, antes do último capítulo do golpe.
Também sabemos que a Globo pode comprar profissionais competentes, tecnicamente falando. Só que técnica não é tudo, e o que não nos parece muito inteligente é justo a ostentação ostensiva, por assim dizer sobeja, desse mesmo poder de manipulação e desse ódio de classe mal dissimulado.
Dissimulado? Até que ponto tem sido necessária a dissimulação? Até quando a classe trabalhadora do país aguentará calada? Foucault afirmou um dia que ninguém suportaria o poder totalmente cínico ou como mero impositor de censura. E aí quase ouço a resposta, sempre cínica, dessa empresa que domina a nossa mídia golpista, racista, fascista, reacionária, corrupta e sonegadora: - Que é isso, companheiro petralha? Não ostentamos quase nada! Nós somos capazes de muito mais!
E assim esfregam esse poder de manipulação, de modo debochado, bem na cara daquele que lhe dá audiência, ou seja, daquele mesmo que lhe dá esse poder. Um poder que no fundo resulta do valor produzido justamente pela classe trabalhadora de que essa elite empresarial depende, para ter aos seus pés produtos e serviços.
Mas o problema do poder sempre foi o perder a mão, e, para que saibam a dose certa a aplicar para a sua desejada propagação, é preciso que conheçam melhor o paciente!
O escárnio é a arma dos que não têm argumentos, e é a um verdadeiro show de zombaria e cinismo que temos assistido ultimamente no país, em todos os níveis do raciocínio e da produção do espetáculo, da feira livre ao Senado.
Mas não nos enganemos: não há quem ria de dentro da sua própria ignorância que não receba de volta seus frutos estragados, mais cedo ou mais tarde.
Vamos à luta para que seja mais cedo!