sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Férias na praia



Para o Francisco Elias Simão Merçon






Chegamos à praia no primeiro dia de férias. Feito adolescentes, não queríamos desperdiçar sequer um raio de sol. Quanto mais tempo se tem, mais pressa se tem em gastá-lo, que o tempo que se gasta é o tempo que se ganha.
Para muitos de nós, a casa semelhava uma mansão, o nosso sonho de infância transformado em realidade por vinte dias seguidos, e já na vida adulta, o que amplia a dimensão do desejo e como que grita aos ouvidos: - Aproveita!


Não faltavam ali nem mesmo as mangueiras de fundo de quintal ou a onírica piscina das crianças pobres que tínhamos sido. A aparência de lar, porém, findava mesmo no quintal: bastava entrar na casa para descobrir o falso daquela nossa efêmera vida de rei neste efêmero paraíso alugado ao sul da Bahia: o locador não deixara mobília, exceto aquela que ele não podia retirar, por serem armários chumbados à parede, e que, por outro lado, nenhum locatário sentiria a tentação inútil de afanar... Mas o que importa nos sonhos são os invólucros, porque os sonhos são os próprios invólucros...


E como não bastasse viajar no primeiro dia das férias escolares, fizemos questão também de apanhar o primeiro ônibus, que, por sair de madrugada, tinha valores bastante razoáveis. Além de tudo, era confortável: tinha ar condicionado, na verdade inútil na primeira metade da viagem, e pequenos televisores dependurados acima dos sofás, e que exibiram um único filme durante todo o percurso.


A expectativa de passar um mês e meio sem ter de cumprir horários e distante da gritaria dos alunos injetou em cada um de nós uma dose extra de alegria, e os colegas, mesmo os mais velhos e já marcados na pele pelas agruras da profissão, exibiam agora umas bochechas rosadas de excitação, lembravam bebês recém-lavados, algo que só a perspectiva de férias na praia (ou no campo) é capaz de dar.


Ao chegar ao casarão, distava da praia dois quarteirões, antes mesmo de escolhermos os nossos quartos, fomos logo espalhando pelo chão os colchonetes, alguns dos quais traziam o cheiro e a memória de remotos acampamentos, de festivais de rock, de amores esquecidos no pó da estrada...


As roupas que trazíamos me pareciam, naquele dia, um espetáculo à parte, algo mesmo curioso a se notar: por mais que, no dia a dia da escola, nos vestíssemos todos sempre muito simplesmente,  e de fato um tanto relaxados, como se o nosso uniforme fossem o jeans surrado e a camiseta desbotada, exceção para a colega de artes, que tinha poucos anos de profissão e ainda arranjava ânimo, entre pautas e pontos, para amarrar ao pescoço os vestidos indianos coloridos, retocando a cada intervalo a maquiagem. À exceção dela, que reinava como um ponto colorido na tela pastel da sala dos professores, estávamos todos, naquele primeiro dia de férias, incrivelmente mais desbotados que de costume.


Se às nossas faces subia um sangue de ânsia por liberdade, as roupas que escolhemos para o passeio pareciam querer provar que, diante da liberdade de azul céu e de mar, qualquer outra cor era supérflua e mesmo dispensável. Sem qualquer tipo de combinação prévia, cada um abriu a sua gaveta secreta de jeans malhados demais, bermudas de bainhas desfeitas, camisas que mudaram de cor, tênis gastos de caminhadas e pares de sandálias de ir à feira... O ônibus interestadual era uma espécie de nau dos loucos, conduzindo ao paraíso de Dante o exército de Brancaleone.


Um outro detalhe me soou curioso: na perspectiva de catorze horas de viagem pela estrada, das sete pessoas que ali iam, nenhuma se lembrou de apanhar um livro para ler entre uma e outra cochiladas mais longas ou durante a passagem por pontos mais homogêneos e tediosos da paisagem... Durante a noite, eu, que viajava insone numa das primeiras cadeiras, atravessei o ônibus para ir ao banheiro, e imaginei, na volta, poder apanhar emprestado com um dos colegas qualquer romance de férias que fosse, aquele número atrasado da revista ou mesmo um gibi...


Que nada! Tudo o que notei foi que se iniciava um romance anunciado entre os dois colegas linguistas: um ônibus escuro e em movimento, sobre uma estrada que segue, assim, na direção oposta, vale o carro de Apolo. Nada como um entrelugar para libertar as mentes e os corpos. Notei também que, dos demais, apenas um dormia; os outros três, espalhados pelas janelas, pareciam perdidos em dispersas conjeturas, eram pessoas a toa e bebiam a lua, que ia alta e clara feito... feito uma lua.


Já na casa, entramos a analisar os quartos, a iluminação, as cortinas, duchas e torneiras, que era tudo o que restara de mobília.


O aluguel foi dividido em sete parcelas iguais entre os sete colegas professores, porém os de maior salário, que eram os mais antigos de cátedra, pagariam as primeiras dentre elas. Os dois linguistas, porém, deram as suas parcelas para cobrir o adiantamento exigido pelo locador, por isso lhes foi concedido o direito de escolherem primeiro, entre os cinco quartos que havia. Para surpresa geral, escolheram ficar em apenas um quarto, abrindo mão assim, cada um deles, da sua própria privacidade em prol de um de nós, e, imaginei, em nome da série de deliciosas intimidades que somente a aura do início do amor pode proporcionar.


Num relance pensei em quantas águas rolariam sob aquelas quatro paredes nos próximos dias - águas que, ao que tudo indicava, rolariam mais rápidas para aqueles dois que para nós outros, entre os quais nenhuma ameaça de românticas relações sequer se insinuava.


Ao pensar nisso, notei, com uma pontada de inveja, que em mim também a memória da adolescência era mais que um resquício quase apagado; era antes um borrão de aquarela ao qual ainda não se aplicou a água, semente adormecida à espera das chuvas...


E íamos todos meio embalados pelo romantismo disperso de ter entre nós, de repente, um casal, íamos todos começando a acostumar os corpos à arrumação de coisas simples, como colchão e lençol, seguíamos abrindo as inocentes primeiras garrafas de água e cerveja, providenciadas com um apuro quase desesperado entre a rodoviária e a casa da praia...


O mais calado de todos, aquele cujas aulas até então eram a única ocasião em que se podia ouvir-lhe a voz, que imaginávamos ele guardasse toda inteira para as suas explanações sobre a história da humanidade, tirou de um saco preto um berimbau, e agora, ao som da pedra que batia mágica no arame, já íamos todos nos esquecendo de fato para quê ali estávamos, que coisas faríamos naquele lugar...


A cerveja estava menos gelada do que esperávamos, mas caía tão bem, e uma leveza foi tomando conta dos corpos, anestesiando aos poucos as mentes, descia pelos ombros antes tão tensos e por fim tocava as pontas dos pés descalços. Aos poucos um ou outro foi ouvindo o som e anunciando o cheiro do mar. Alguém acendeu um cigarro que rodou de mão em mão, batizando a grande sala vazia com uma aura de fumaça e paz.


O tempo ia longe... era dia, era noite, era tarde...
Os linguistas, a essa hora, se achegavam um ao outro feito siameses, semelhavam a nossa reserva de delicadeza, e, apesar de não poderem procriar, eram o nosso investimento amoroso para um futuro... de amor. Assim parecia o tácito acordo, tamanho o zelo com que todos, até mesmo o professor atleta, passaram a cercar aquele amor de férias que florescia sob os nossos olhos, belo e feminino na sua dupla masculinidade.


De repente toca a campainha. O matemático, de um salto, encaminhou-se para a porta já com divertidos ares de proprietário. Prometia ser aquele que nos traria os bons momentos de riso solto. Ao abrir a porta, pareceu a nós, que assistíamos, que ele ia mesmo dizer a frase que abriria uma cena engraçada, mas não teve tempo. Foi rendido por dois homens encapuzados e armados, aos quais se seguiram outros dois, sem capuzes, porém com armas de longos canos, feias, feios.


Minha única reação foi esmagar entre os dedos o cigarro aceso que tinha parado justo na minha mão. O matemático foi arrastado para junto de nós e amarrado ao historiador, que permaneceu calado, parado, lívido. Os dois linguistas se abraçaram e foram empurrados, em meio a socos e pontapés, para o banheiro social, onde foram trancados.


Enquanto os dois mascarados faziam o serviço sujo, o atleta teve a infeliz ideia tentar imobilizar um dos chefes desmascarados, logo os mais fortemente armados da quadrilha. Levou muitos socos e pontapés, diante dos quais eu e a colega de artes fechamos os olhos instintivamente. Um dos homens olhava muito de perto para os seios da colega. Temi por sua cobiçada juventude, mas o homem logo se concentrou de volta no seu trabalho e enfim foi anunciado, em alto e bom som, a que vieram:

- Armas! Onde estão as armas?
- Não temos armas!


Enquanto isso os mascarados reviravam as poucas gavetas que havia nos armários.

- Joias! Cadê as joias?
- Não temos joias!
- Onde fica o cofre?
- Não tem cofre!


Nesse instante os dois mascarados retornavam, irados, de uma grossa revista pela casa vazia. Apertaram os travesseiros que tínhamos espalhado sobre os colchões. Com esgares de ódio, os quatro agora nos sacudiam um por um, queriam joias e dinheiro.

- Não temos joias e nem dinheiro!


Arrancaram violentamente um cordão e uma pulseira dourados da colega de artes, que em seguida reconheceram como fraca bijuteria e lançaram ao chão, pisoteando-os com raiva.


Agora já revistavam todas as bolsas, onde encontraram basicamente cartões de crédito, um ou outro talão de cheques e pouquíssimo dinheiro. Aparentemente surpresos, foram lançando ao chão, num montinho de mais ou menos dois dedos, todas as notas que conseguiram recolher. A essa altura o atleta amarrado chorava alto e o historiador silencioso tentava acalmá-lo, mostrando, pelo contraste, um autocontrole surpreendente.


Tendo uma arma apontada para a minha cabeça, fui empurrada até o saco ao qual o colega tinha há pouco devolvido o berimbau. O homem gritou que abrisse a sacola. A embira que a amarrava custava a ceder sob os comandos trêmulos dos meus dedos e eu consegui dizer apenas "berimbau", o que parece ter soado como um palavrão, e o homem me desferiu um chute agudo nas costelas, que me fez cair de borco sobre a sacola do berimbau.


Felizmente a persistência não era o forte deles.


O professor de filosofia, que tinha saído para comprar cerveja, chegou à cena justo na hora em que a quadrilha, irada pela decepção com a fraca coleta, abria a porta a chutes, para sair. Os homens quase derrubam o colega que chegava no patamar da porta. O mais fático deles ainda lhe fez uma revista e deu nele gratuitos tabefes. Os dez reais que trazia no bolso, troco da cerveja, e o seu cordão de miçangas parecem tê-lo irritado ainda mais. Ouvi apenas quando já gritava:

- Pra que serve isso? Pra que serve isso? Quem são vocês? Vocês são hippies ou o quê?


De dentro, com o canto da boca latejando, ouvi quando o colega respondeu:

- Somos professores.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Diálogo sobre o lixo

- How how how!
Very well, very well,
very well, Papai Noel!
Mas quanto lixo dormindo nas ruas!


- Sete lixos sob a marquise.
Sete lixos revirando-te o lixo
em plena enchente de Natal,
que tudo lava, tudo leva, tudo livra...


- Casa arrumada, ruas limpas, consciência lavada
e o lixo revirando minhas latas de bicho.


- Não é lixo; é bicho!


- Não, não é um bicho; é o lixo!


- Pou pou pou!
Empresário bom é empresário morto!


A culpa foi da chuva.



segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O vampiro

Montagem anônima feita com foto do presidente golpista ilegítimo Michel Temer


- Mãe, essa noite eu tive um pesadelo!
- É? E como foi?
- Eu sonhei que o Temer era um vampiro e ele transformava todo mundo em pato ou em tucano!
- Nossa! Que horror!

Células

- Pára de pular! Vai acabar quebrando esses copos! O que é que você tem que não consegue ficar quieta?
- Células!

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A ditadura do amor

- Mãe, na minha sala, agora, vários meninos estão "gostando" de algumas meninas, e praticamente todas as meninas estão "gostando" de meninos.
- É mesmo, meu filho? E como é esse "gostar"?
- Eu ainda não entendi direito, só sei que alguns ficam ciumentos e não querem que a pessoa de quem eles "gostam" fique amiga de mais ninguém. Outros ficam bravos e dão puxão de cabelo. É tipo assim, a ditadura do amor.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Últimos dias em Havana ou Chupa piruli!



Goya: El sueño de la razón produce monstruos.


Últimos dias em Havana ou Chupa piruli![1]


Últimos dias em Havana não é o único filme, nos últimos tempos, a tentar retratar um pouco do que é, hoje, a vida na capital cubana. Porém é um dos mais sensíveis e argutos.

Sobrevivendo a um bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto pelos EUA há mais de cinco décadas, o país ainda mantém o afamado nível de excelência em áreas prioritárias, como a educação e a saúde, cujo acesso é público, universal e gratuito.

Para permanecer apenas nesse setor, é preciso notar: Cuba foi o único país da América Latina a erradicar a desnutrição infantil e a não registrar, nas últimas décadas, nenhuma ocorrência de doenças que ainda fazem vítimas mundo afora, como sarampo, rubéola e febre amarela.

Graças a um aparato complexo, que envolve pesquisa e aplicação, ligando a medicina preventiva e familiar a uma formação voltada antes para os aspectos científico e humanitário que para o lucro, o governo cubano conseguiu reduzir drasticamente a taxa de mortalidade infantil, que hoje é a menor do mundo, perdendo apenas para o Canadá. Graças ao conjunto dessas e de outras medidas, a longevidade em Cuba supera a do Japão.

O país é também um centro de referência para médicos de todas as partes do planeta no que toca ao desenvolvimento de pesquisas de ponta, tendo descoberto o tratamento para distúrbios como o vitiligo, e a cura ou controle para doenças como a hepatite, o mal de Alzheimer e a esclerose múltipla. Além disso, Cuba é o país que mais envia ajuda humanitária a regiões necessitadas de médicos, em guerra ou sob o efeito de catástrofes naturais.

Também os números da educação, se comparados aos de países como o Brasil, mostram que a revolução socialista deu bons frutos nessas duas frentes básicas ao funcionamento de qualquer sociedade. Basta dizer que Cuba é, hoje, um país cujo número de pessoas não letradas é menor que um por cento. Em 2015 a ONU anunciou-o como o único país de América Latina e Caribe a alcançar as metas determinadas para a educação, atingidas por apenas um a cada três países no mundo.

Apesar dessas importantes conquistas feitas pelo povo cubano, é inegável que o país vive hoje uma crise que se relaciona, grosso modo, por um lado ao embargo e à relativa pobreza de recursos naturais, resultando, por outro lado, numa crise simbólica, de imagem e, inevitavelmente, de valores. Sem um aprofundamento da análise, nem as fogueiras antissocialistas, nem os simpatizantes mais idealizadores do regime compreenderão uma realidade tão complexa, que faz parte de uma história singular como é a da revolução cubana.

Não é difícil reconhecer que, para um país de recursos naturais assim limitados, a pior sanção possível foi a do bloqueio, escolhida a dedo pelo tio Sam (ou pelo Grande Irmão), no uso da mesma precisão cruel e sádica com que os irados deuses gregos enviavam, do Olimpo, o castigo para a ousadia dos mortais que tivessem se atrevido a ir além da sua insignificância.

Por outro lado, talvez não seja de muita utilidade perguntar-se, por exemplo, qual seria hoje a situação de Cuba sem o embargo econômico que lhe foi imposto ou sem os diversos lançamentos aéreos de pragas sobre as lavouras, perpetrados pelos EUA em diferentes momentos. Isso também já entra, lamentavelmente, no cômputo da sua história.

Mas o filme de Fernando Pérez não teria o mesmo efeito se intentasse apenas registrar os momentos agônicos de um povo que há décadas luta pelo ideal de uma sociedade mais igualitária e pelo direito à autodeterminação.

Últimos dias em Havana já traz no título – talvez pelo eco involuntário do romance Os últimos dias de Pompeia, de Bulwer-Lytton –, o jogo em que, além de denotar os últimos dias, na cidade, de vários personagens, um que morre e outros que emigram, também indica, de modo muito sutil, os últimos dias da cidade, ao menos daquela cidade que foi, para algumas gerações, a prova da possibilidade de realização do sonho socialista. A partir da estrutura humanamente abrangente de uma tragédia grega, escolhida para o filme, a expressão “últimos dias” em Havana alcança, simbolicamente, uma proporção em que pode bem representar os últimos dias do socialismo no mundo, ou, por que não dizer, os últimos dias do mundo.

É a mais jovem das personagens quem resume: “Não me importa que o mundo se acabe neste instante. Me importa pensar que continue como está.” Realmente, poder-se-ia dizer, fazendo-lhe eco, o mundo vai muito mal. Porém, é preciso lembrar que, entre o que temos agora e o seu final, o mundo pode ainda ficar bem pior. De uma vontade férrea de salvá-lo do fim depende talvez a possibilidade de que ele venha a ser um lugar melhor do que esse em que vivemos hoje. De onde virá essa vontade, se não da juventude, já que é ela quem anuncia e aguarda o fim?, o filme de Pérez parece nos questionar.

A derrocada de Cuba, hoje, sinalizaria e deixaria, no seu rastro, uma grande crise – talvez sem saída – para os ideais de diversos conjuntos ideológicos de orientação esquerdista que ainda acalentam um sonho de justiça, mesmo – ou principalmente – contra a onda de retrocessos sociais e ameaças neonazifascistas que cada dia mais se acercam e se acirram, em pontos espalhados pelo globo.

Sobrevivendo a humanidade a mais esta fase da sua trajetória sempre tão repleta de altos e baixos, os livros de história, se ainda existirem, registrarão um período de intensas transformações, das quais não se pode saber, hoje, que saldo restará. O que se sabe é que cada um de nós é sempre mais que mera testemunha. Na escala que individualmente nos cabe, cada um carrega nas mãos, nos atos, a sua centelha de responsabilidade.

Eis talvez o choque maior (e benéfico) que Últimos dias em Havana nos proporciona: no Brasil, por exemplo, num tempo como este, em que a palavra “Cuba” foi transformada em palavrão, como na frase “Vai para Cuba!”, o enredo conduz o espectador por panoramas sociais que em nada, absolutamente nada divergem daqueles em que vivem os moradores das periferias das nossas capitais. As cenas que se desenrolam ali são idênticas às de quaisquer entornos das grandes cidades brasileiras; a diferença é o funcionamento eficiente, lá, do já citado sistema público de saúde, pelo qual o personagem central do filme, soropositivo, é prontamente socorrido nos momentos de crise.

A pobreza e a feiura das moradias mostradas no filme são capazes de nos impressionar, mas isso é só porque pensamos, contra todas as evidências, que elas estão muito longe de nós, de preferência num lugar em que possamos colocá-las na conta dos “comunistas” – e sem considerar que, lá, não é preciso pagar aluguel.

Graças a algum tipo escandaloso de bovarismo, não nos choca ter diante dos olhos situações de penúria piores que aquelas por que passam hoje os moradores de Havana, acrescidas, aqui, de uma gritante falta de consciência política e de classe.  Desde que vivamos sob uma “democracia”, a desigualdade não gera nem mesmo a má-consciência; gera talvez algum medo, muita insegurança e, principalmente, violência sobre violência. No mais, é possível conviver com ela; a desigualdade não é nada a que não estejamos acostumados há mais de cinco séculos. A não ser, é claro, que quem fala esteja incluído ali, do lado da pobreza; e não do lado dos que detêm os privilégios. Dizendo ainda mais claramente: nós desejamos mesmo é a desigualdade, afinal é ela que mantém os privilégios meritocráticos de classe. Só não aceitamos a miséria no seio da nossa própria família.

Com maior clareza ainda, é preciso dizer: aquém de esquerda e direita, de socialismo e capitalismo como conceitos, é a diferença de classes que está  no cerne da disputa entre essas duas concepções de modos de produção. Há no mundo essa divisão inegável, invisível como tudo que é óbvio, porém crucial para a distribuição das doses de felicidade: a separação entre o explorado e o explorador, os interesses inconciliáveis de empregado e empregador, de trabalhador e empresário. No pensamento de Marx e Engels: "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, seu ser social determina sua consciência."

É falando do lugar de alguém que possui essa desejada consciência de classe que se identifica, no filme, a personagem da mulher policial, diante do deboche da jovem rebelde sobre a condição e os rendimentos da representante do estado: “Soy una proletária del mundo.” A afirmação soa mesmo fora de moda, mas o percurso do personagem Miguel, que sonha sair de Cuba e ir viver nos EUA, confirma que, apesar de démodé, ela representa a realidade do capital: Miguel é amigo de Diego, o protagonista soropositivo com quem mora fundamentalmente por laços de amizade e solidariedade vincados desde a infância, laços que hoje se manifestam no cuidado que dispensa ao amigo acamado, lavando-o, alimentando-o e dando-lhe o coquetel de medicamentos nas horas certas. Ao final do filme, Miguel realiza o seu sonho de emigrar, e, ao invés de lavar pratos em Havana, passa a lavar pratos nos EUA. Eis mais um proletário do mundo, só que sem a consciência de sê-lo.

Alguns flashes do mundo fora de Havana vão sendo assim trazidos ao enredo a partir do retrato de imigrantes, especialmente africanos, que aparecem como personagens secundários, tanto quanto na figura do cubano que sai do país para tentar a vida em outros continentes. Um personagem que mostra a faceta paradoxal dessa terra, de onde querem fugir alguns, e para onde fogem tantos outros, é o taxista que aparece numa das cenas de mais requintado humor trágico do filme. O homem perdeu uma das pernas numa mina em Angola, onde, segundo relata, passou quatro meses.

Ao final dessa tomada, o olhar melancólico de Miguel para a perna protética do motorista, até mesmo pelo contraste com o ânimo vital do outro, revela com mais força a sua depressão, que o tempo todo nos perguntamos se é resultado de uma não integração à vida comunitária, ou se, ao contrário, será a personalidade angustiada a causa do seu isolamento. Mas aquele olhar eloquente (já que o personagem fala basicamente com os olhos) destaca algo mais, para o espectador: que o motorista é o único deficiente físico das redondezas; a deficiência, adquirida fora de Cuba, marca mais uma diferença entre o país em que vivem e aquele outro, na África, com seu histórico de guerra civil.

A Miguel porém nenhuma visão da realidade é capaz de demover do sonho de emigrar, nem mesmo as notícias de atentados terroristas nos EUA, que vê cotidianamente pela televisão. Como cada um de nós, Miguel também tende a achar que os seus sonhos são mesmo sonhados por ele.

De modo curioso, é principalmente nos momentos de alegria e descontração (como quando uns rapazes discutem animadamente futebol, numa barbearia) que Miguel (como o nome indica, um anjo na vida de Diego) se sente mais deprimido. Ele não quer estar ali, é um outsider em sua própria terra. Resta saber se uma personalidade como essa se sentiria do mesmo modo em qualquer outro lugar.

Há algo de cômico na obsessão desse homem maduro que dedica suas horas de folga a soletrar o idioma inglês diante de um mapa dos EUA, preparando-se, dia após dia, para o grande evento da saída de Cuba, ele que já estivera próximo de aportar nos EUA, tentativa que se frustrara, após um naufrágio, por não saber nadar.

A frustração por ter sido deportado comparece numa cena que se repete no filme: aos domingos, o seu programa preferido é mergulhar o corpo até o peito nas águas do mar, sempre protegido pelas ruínas de um forte (as marcas da história local estão presentes dentro e fora dele, mesmo que ele não as perceba), enquanto ali perto grupos de rapazes saltam de cabeça, mergulham e nadam, livres e eufóricos, diretamente no mar. Esta cena é como uma metáfora da prisão interna em que vive Miguel, a quem o regime supostamente fechado do país pode servir, inclusive, como desculpa para o autoisolamento.

Devido ao seu recolhimento ressentido da comunidade, tanto quanto ao desejo de emigrar, Miguel é tido como contrarrevolucionário. Personagem enigmática, jamais sorri. Seu semblante sempre cerrado se transforma porém quando lhe chega a esperada correspondência admitindo a sua entrada nos EUA. Mais uma vez, de modo curioso, não é a “ditadura cubana”, aberta a todos os imigrantes que lá estão, que o impede de ir embora; é a “maior democracia” do mundo que reluta em aceitá-lo.

Na cena final do filme, antológica, Miguel aparece de costas e sozinho, lavando os pratos de uma rede de fast food imitação do Mc Donald’s. O seu sonho dourado enfim se realiza, com a diferença de que agora ele trabalha à noite e não conta com os laços de solidariedade que tivera um dia, em Havana: fora da janela do restaurante vazio, desponta o deserto nevado, e ele nem parece mais triste, porque a sua tristeza e solidão lhe pertencem, são o seu habitat natural, que ele levará para onde for. Arriscaria mesmo dizer que, lá, uma personalidade com a sua se encontre mesmo muito mais em casa.

Ressalta, no filme, mais esse embate: entre os conceitos de liberdade e de responsabilidade, representados ali, sutilmente, em torno dos usos do termo “política”, outro que, em tempos de idolatria da obtusidade, também foi relegado, em vários meios discursivos brasileiros, ao status de “palavra feia”: trata-se de um sintoma, tanto da falta de memória e conhecimento da história, quanto de ignorância dos rastros etimológicas da própria palavra. El sueño de la razón produce monstruos, afirmou um dia Francisco Goya.

Yosisleide,[2] a menina que protagoniza a parte final do filme, e que de certo modo encarna uma espécie de consciência coletiva, é alguém que não aceita determinações, não obedece a regras, faz apenas o que quer e diz tudo o que pensa. Ou seja, é uma espécie de hybris ambulante, uma ótima alegoria da ideia mais vulgar que o senso comum faz da liberdade.

Uma ideia (eidos) de liberdade com base na qual países pseudodemocráticos (como o são, cada um a seu modo, Brasil e EUA) acusam o governo castrista de ser um regime que proíbe a livre expressão, como se essa defesa do livre-arbítrio (outro conceito ilusório, diga-se de passagem), fosse o máximo que alguém pudesse almejar. Como se essa “liberdade” (a priori um valor abstrato como a “paz” que volta e meia enche as nossas avenidas de bandeiras brancas) constituísse um valor por si só. Como se fosse possível garantir algo como paz e liberdade, isoladamente de outras condições, básicas à sobrevivência humana, todas elas necessariamente atadas ao plano material, como saúde e educação. Os que defendem a paz e a liberdade como valores supremos, ignorando a suma metafísica em que recaem, desvinculando essas abstrações do mundo material, político e econômico, esquecem-se, contudo, de que nem sempre quem diz o que quer, tem, de fato, o que dizer. Dizer-se o que se quer também não nos dá o que comer, além de demandar responsabilidade – condição sine qua non da tão almejada liberdade.

É o caso de Yosisleide, que afirma ao tio, do alto dos seus quinze anos de livre-arbítrio: “Funciona assim: não gosto de Gramática, então não a estudo; não gosto de Matemática, não estudo; não gosto de Política, estudo menos ainda.”

A rejeição da menina pelas disciplinas que compõem o currículo escolar é (sem que ela o saiba, claro – a condição primeira da ignorância é não se reconhecer como ignorante) uma louvação da “liberdade” para o desconhecimento. Trata-se de um comportamento comparável à “oportunidade de escolha” entre as disciplinas não obrigatórias, que o atual governo brasileiro usa como propaganda da polêmica contrarreforma do ensino médio. Yosisleide deixa de ir à escola porque não gosta do uniforme (e também já começa a não caber nele, porque engravida, aos quinze, de um garoto de dezesseis).

Ela nutre a paixão por animais e, de modo irônico, em especial pela coruja, símbolo da sabedoria cujo olhar “vazio” ela liga ao olhar de Miguel. Seu sonho é ter muitos filhos e animais, aos quais acaba “criando” no terraço deixado de herança pelo tio. Crianças e pombos aparecem, confinados em gaiolas de diferentes dimensões, postas lado a lado.

Para que não haja dúvidas de que os sonhos da menina carecem justo da autenticidade que ela apregoa aos quatro ventos, seus três filhos são batizados de Mowgli, Pocahontas e Avatar.

Não que se deva negar que haja algum novo tipo de “saber” em não saber, ou em não querer saber. Não é que não seja uma reação demasiado humana adaptar-se às circunstâncias e chorar (é a solução que ela mesma relata ao final), todavia, recolher-se, em plena juventude, aos metros quadrados de um terraço com animais e filhos em gaiolas... esse cenário não semelha, nem de longe, aquilo que um dia se almejou que a humanidade pudesse legar como herança aos seus descendentes, em pleno século XXI.

É a própria Yosisleide quem afirma, ao final: “Não me importa que o mundo se acabe neste instante. Me importa pensar que continue como está.” A afirmação é de uma complexidade maior do que parece à primeira vista. Não significa apenas o reconhecimento de que o mundo anda muito ruim, mas também um descaso e uma alienação indisfarçáveis com relação ao futuro do planeta. Que, aliás, é o perfeito complemento para o desejo de mudança a todo custo (o que significa, paradoxalmente, sem nenhum custo, nada que sacrifique a sua “liberdade” de gaiola).

É a eterna e famigerada insatisfação humana. Irrefreável, egoísta, e que poderá nos conduzir, globalmente, à destruição.



[1] “Chupa piruli” é o nome de uma canção do grupo cubano de hip hop SBS, que alcançou enorme sucesso na década de 1990, primeiramente em Cuba e em outros países de língua espanhola, e depois pela Europa e pela Ásia. A canção tem um ritmo dançante e letra de duplo sentido. Ao som dela, no dia da Nochebuena, dançam os clientes na fila do caixa do supermercado, lugar de toda alegria. A frase também surge em letras grandes na tela pouco antes do desfecho.
 
[2] Em consonância com a sua personalidade e, de modo curioso, com a paradoxalmente alienada “consciência coletiva” que a personagem encena, seu nome traz no radical a partícula “Yo” (eu, em espanhol), denotando assim um egotismo que se espraia por diversos outros nomes de personagens crianças e jovens, todos iniciados em “Yo”, que circulam ao redor da trama central do filme e como que nos ameaçam como uma futura yotização do mundo – embora, é preciso lembrar, seus nomes, educação e valores lhes foram dados pela geração anterior.
 


domingo, 3 de setembro de 2017

Domingo

- Mãe, nesse domingo eu queria fazer um esporte mais radical.
- É? Qual?
- Andar a pé pelo bairro.
- !

domingo, 27 de agosto de 2017

Terceira Guerra

- Mãe, numa Terceira Guerra, com bombas atômicas, o país que lançar a bomba primeiro ganha a guerra, sabia?
- Hum...
- O outro país é apagado do mapa e perde a guerra imediatamente, sabia?
- Bem... num caso desses, o mundo todo perde, não?
- É verdade! Eu esqueci o mundo!

Casos de família

- Mãe, eu não entendo por que esse programa se chama Casos de Família. Se são casos de família, como podem mostrar na tevê, pra todo mundo ver? E, sendo casos de família, como é que alguém de fora da família vai resolver?

Presença

- Mãe, eu sonhei com você a noite toda!
- Sério? E como eu estava, no sonho?
- Não sei! Eu não cheguei a ver você!

segunda-feira, 17 de julho de 2017

No recreio


- Mãe, hoje, no recreio, eu chorei!
- Chorou? Por quê?
- Porque a tia me deu uma bronca.
- Te deu uma bronca? Por quê?
- Porque é injusto.
- O que é que é injusto?
- A gente ter recreio e não poder correr.
- Você estava correndo no recreio? Foi por isso que ela te deu uma bronca?
- Não. foi porque eu ficava dizendo aos meninos pra não pararem de correr não, que era injusto a gente ter recreio e não poder correr!

Dever de casa

Arme e efetue:


Júlia tem 10 anos e seu irmão Pedro tem 8. A idade do pai de Júlia e Pedro é o dobro da soma da idade dos dois filhos, mais 6.


R= O Velho escroto tem 42 anos!

quarta-feira, 19 de abril de 2017

A carta


- Mãe, essa noite eu sonhei que tinha chegado o dia de ir ao dentista pra mexer no aparelho e eu me matei.
- O quê? Se matou para não ir ao dentista?
- É. Me matei e deixei uma carta escrita.
- Sério? E a carta era para quem? Para mim?
- Pra qualquer pessoa que quisesse ler. Eu deixei no chão.
- Nossa! E o que estava escrito na carta?
- Espera um pouco que eu estou tentando lembrar. A carta era confusa até para mim mesmo. Eu vou tentar escrever, que aí eu lembro melhor.
- Certo. Faz isso.
- Aqui a carta, mamãe: "Não pense em mim como meus dentes. Pense em mim como eu."

segunda-feira, 27 de março de 2017

Coragem

- O que dá coragem é o medo, né?
- Como? Não entendi.
- É o medo que cria a coragem. Se a gente não sentisse medo, não ia ter coragem. Ia precisar de coragem pra quê?
- É verdade!

Michael Jackson não morreu

- Mãe, o Michael Jackson não morreu!
- Morreu sim, meu filho!
- Não, mãe! Eu senti agora, ouvindo o CD! Nenhum cantor morre, mãe! Quando a gente ouve a voz dele cantando, ele está vivo de novo!
- Ah, isso é verdade!

sábado, 18 de março de 2017

Infinito

- Mãe, eu não gosto da ideia de infinito!
- É? Por quê?
- Porque me incomoda. Eu não consigo imaginar uma coisa infinita.
- Como assim?
- O espaço, por exemplo... quando eu olho pro céu, me dá uma sensação muito estranha imaginar que isso aí não tem fim...
- Ah tá...
- É por isso que eu gosto tanto da Lua. Quando eu olho para ela, eu sei que pelo menos é alguma coisa na qual eu posso bater a testa, se eu sair voando.
- Entendo.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Percurso

- Nossa, meu filho! Que cheiroso você está! Com um rapaz assim a gente pode namorar e se casar.
- E ter filhos e se separar!

Os Castro


- Mamãe, você acha que o Raul Castro é melhor presidente que o Fidel?
- Não. Eu acho que não.

Faces

- Se não existisse polícia, será que existiria bandido?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Desapontado


- Olha: eu não posso fazer um desenho alegre com esse lápis! Ele está desapontado!

Ironia

Tentando ler um livro "de adulto" apanhado ao acaso na estante:
- Mãe, você não acha que devia haver uma pontuação específica pra indicar quando é ironia?

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Na bicicleta

- Nossa! Aquele rapaz passando na bicicleta não é a cara do Miguel?
- Não sei, não observi.

Cada dia


- Mãe, cada dia que amanhece é um dia a mais ou um dia a menos na vida da gente?
- As duas coisas. Depende do ponto de vista.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Pesadelos

- Mãe, esta noite eu tive aquele pesadelo de novo!
- Qual, meu filho?
- O do monstro horrível de cabelinho azul.
- Ah!
- Por que a gente tem mais pesadelos à medida que vai crescendo?
- Eu não sei, mas deve ser porque a gente vai conhecendo mais coisas, então a mente vai tendo mais material para produzir...
(Flora):
- Eu acho que não, hem! Eu acho que é para preparar a gente para as coisas difíceis que a gente vai ter de enfrentar na vida!

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Vitória, 40 graus

- Mamãe, a Flora está colocando gelo na perereca!
- Não faz mal, não, meu filho! Deixa ela!