sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Férias na praia



Para o Francisco Elias Simão Merçon






Chegamos à praia no primeiro dia de férias. Feito adolescentes, não queríamos desperdiçar sequer um raio de sol. Quanto mais tempo se tem, mais pressa se tem em gastá-lo, que o tempo que se gasta é o tempo que se ganha.
Para muitos de nós, a casa semelhava uma mansão, o nosso sonho de infância transformado em realidade por vinte dias seguidos, e já na vida adulta, o que amplia a dimensão do desejo e como que grita aos ouvidos: - Aproveita!


Não faltavam ali nem mesmo as mangueiras de fundo de quintal ou a onírica piscina das crianças pobres que tínhamos sido. A aparência de lar, porém, findava mesmo no quintal: bastava entrar na casa para descobrir o falso daquela nossa efêmera vida de rei neste efêmero paraíso alugado ao sul da Bahia: o locador não deixara mobília, exceto aquela que ele não podia retirar, por serem armários chumbados à parede, e que, por outro lado, nenhum locatário sentiria a tentação inútil de afanar... Mas o que importa nos sonhos são os invólucros, porque os sonhos são os próprios invólucros...


E como não bastasse viajar no primeiro dia das férias escolares, fizemos questão também de apanhar o primeiro ônibus, que, por sair de madrugada, tinha valores bastante razoáveis. Além de tudo, era confortável: tinha ar condicionado, na verdade inútil na primeira metade da viagem, e pequenos televisores dependurados acima dos sofás, e que exibiram um único filme durante todo o percurso.


A expectativa de passar um mês e meio sem ter de cumprir horários e distante da gritaria dos alunos injetou em cada um de nós uma dose extra de alegria, e os colegas, mesmo os mais velhos e já marcados na pele pelas agruras da profissão, exibiam agora umas bochechas rosadas de excitação, lembravam bebês recém-lavados, algo que só a perspectiva de férias na praia (ou no campo) é capaz de dar.


Ao chegar ao casarão, distava da praia dois quarteirões, antes mesmo de escolhermos os nossos quartos, fomos logo espalhando pelo chão os colchonetes, alguns dos quais traziam o cheiro e a memória de remotos acampamentos, de festivais de rock, de amores esquecidos no pó da estrada...


As roupas que trazíamos me pareciam, naquele dia, um espetáculo à parte, algo mesmo curioso a se notar: por mais que, no dia a dia da escola, nos vestíssemos todos sempre muito simplesmente,  e de fato um tanto relaxados, como se o nosso uniforme fossem o jeans surrado e a camiseta desbotada, exceção para a colega de artes, que tinha poucos anos de profissão e ainda arranjava ânimo, entre pautas e pontos, para amarrar ao pescoço os vestidos indianos coloridos, retocando a cada intervalo a maquiagem. À exceção dela, que reinava como um ponto colorido na tela pastel da sala dos professores, estávamos todos, naquele primeiro dia de férias, incrivelmente mais desbotados que de costume.


Se às nossas faces subia um sangue de ânsia por liberdade, as roupas que escolhemos para o passeio pareciam querer provar que, diante da liberdade de azul céu e de mar, qualquer outra cor era supérflua e mesmo dispensável. Sem qualquer tipo de combinação prévia, cada um abriu a sua gaveta secreta de jeans malhados demais, bermudas de bainhas desfeitas, camisas que mudaram de cor, tênis gastos de caminhadas e pares de sandálias de ir à feira... O ônibus interestadual era uma espécie de nau dos loucos, conduzindo ao paraíso de Dante o exército de Brancaleone.


Um outro detalhe me soou curioso: na perspectiva de catorze horas de viagem pela estrada, das sete pessoas que ali iam, nenhuma se lembrou de apanhar um livro para ler entre uma e outra cochiladas mais longas ou durante a passagem por pontos mais homogêneos e tediosos da paisagem... Durante a noite, eu, que viajava insone numa das primeiras cadeiras, atravessei o ônibus para ir ao banheiro, e imaginei, na volta, poder apanhar emprestado com um dos colegas qualquer romance de férias que fosse, aquele número atrasado da revista ou mesmo um gibi...


Que nada! Tudo o que notei foi que se iniciava um romance anunciado entre os dois colegas linguistas: um ônibus escuro e em movimento, sobre uma estrada que segue, assim, na direção oposta, vale o carro de Apolo. Nada como um entrelugar para libertar as mentes e os corpos. Notei também que, dos demais, apenas um dormia; os outros três, espalhados pelas janelas, pareciam perdidos em dispersas conjeturas, eram pessoas a toa e bebiam a lua, que ia alta e clara feito... feito uma lua.


Já na casa, entramos a analisar os quartos, a iluminação, as cortinas, duchas e torneiras, que era tudo o que restara de mobília.


O aluguel foi dividido em sete parcelas iguais entre os sete colegas professores, porém os de maior salário, que eram os mais antigos de cátedra, pagariam as primeiras dentre elas. Os dois linguistas, porém, deram as suas parcelas para cobrir o adiantamento exigido pelo locador, por isso lhes foi concedido o direito de escolherem primeiro, entre os cinco quartos que havia. Para surpresa geral, escolheram ficar em apenas um quarto, abrindo mão assim, cada um deles, da sua própria privacidade em prol de um de nós, e, imaginei, em nome da série de deliciosas intimidades que somente a aura do início do amor pode proporcionar.


Num relance pensei em quantas águas rolariam sob aquelas quatro paredes nos próximos dias - águas que, ao que tudo indicava, rolariam mais rápidas para aqueles dois que para nós outros, entre os quais nenhuma ameaça de românticas relações sequer se insinuava.


Ao pensar nisso, notei, com uma pontada de inveja, que em mim também a memória da adolescência era mais que um resquício quase apagado; era antes um borrão de aquarela ao qual ainda não se aplicou a água, semente adormecida à espera das chuvas...


E íamos todos meio embalados pelo romantismo disperso de ter entre nós, de repente, um casal, íamos todos começando a acostumar os corpos à arrumação de coisas simples, como colchão e lençol, seguíamos abrindo as inocentes primeiras garrafas de água e cerveja, providenciadas com um apuro quase desesperado entre a rodoviária e a casa da praia...


O mais calado de todos, aquele cujas aulas até então eram a única ocasião em que se podia ouvir-lhe a voz, que imaginávamos ele guardasse toda inteira para as suas explanações sobre a história da humanidade, tirou de um saco preto um berimbau, e agora, ao som da pedra que batia mágica no arame, já íamos todos nos esquecendo de fato para quê ali estávamos, que coisas faríamos naquele lugar...


A cerveja estava menos gelada do que esperávamos, mas caía tão bem, e uma leveza foi tomando conta dos corpos, anestesiando aos poucos as mentes, descia pelos ombros antes tão tensos e por fim tocava as pontas dos pés descalços. Aos poucos um ou outro foi ouvindo o som e anunciando o cheiro do mar. Alguém acendeu um cigarro que rodou de mão em mão, batizando a grande sala vazia com uma aura de fumaça e paz.


O tempo ia longe... era dia, era noite, era tarde...
Os linguistas, a essa hora, se achegavam um ao outro feito siameses, semelhavam a nossa reserva de delicadeza, e, apesar de não poderem procriar, eram o nosso investimento amoroso para um futuro... de amor. Assim parecia o tácito acordo, tamanho o zelo com que todos, até mesmo o professor atleta, passaram a cercar aquele amor de férias que florescia sob os nossos olhos, belo e feminino na sua dupla masculinidade.


De repente toca a campainha. O matemático, de um salto, encaminhou-se para a porta já com divertidos ares de proprietário. Prometia ser aquele que nos traria os bons momentos de riso solto. Ao abrir a porta, pareceu a nós, que assistíamos, que ele ia mesmo dizer a frase que abriria uma cena engraçada, mas não teve tempo. Foi rendido por dois homens encapuzados e armados, aos quais se seguiram outros dois, sem capuzes, porém com armas de longos canos, feias, feios.


Minha única reação foi esmagar entre os dedos o cigarro aceso que tinha parado justo na minha mão. O matemático foi arrastado para junto de nós e amarrado ao historiador, que permaneceu calado, parado, lívido. Os dois linguistas se abraçaram e foram empurrados, em meio a socos e pontapés, para o banheiro social, onde foram trancados.


Enquanto os dois mascarados faziam o serviço sujo, o atleta teve a infeliz ideia tentar imobilizar um dos chefes desmascarados, logo os mais fortemente armados da quadrilha. Levou muitos socos e pontapés, diante dos quais eu e a colega de artes fechamos os olhos instintivamente. Um dos homens olhava muito de perto para os seios da colega. Temi por sua cobiçada juventude, mas o homem logo se concentrou de volta no seu trabalho e enfim foi anunciado, em alto e bom som, a que vieram:

- Armas! Onde estão as armas?
- Não temos armas!


Enquanto isso os mascarados reviravam as poucas gavetas que havia nos armários.

- Joias! Cadê as joias?
- Não temos joias!
- Onde fica o cofre?
- Não tem cofre!


Nesse instante os dois mascarados retornavam, irados, de uma grossa revista pela casa vazia. Apertaram os travesseiros que tínhamos espalhado sobre os colchões. Com esgares de ódio, os quatro agora nos sacudiam um por um, queriam joias e dinheiro.

- Não temos joias e nem dinheiro!


Arrancaram violentamente um cordão e uma pulseira dourados da colega de artes, que em seguida reconheceram como fraca bijuteria e lançaram ao chão, pisoteando-os com raiva.


Agora já revistavam todas as bolsas, onde encontraram basicamente cartões de crédito, um ou outro talão de cheques e pouquíssimo dinheiro. Aparentemente surpresos, foram lançando ao chão, num montinho de mais ou menos dois dedos, todas as notas que conseguiram recolher. A essa altura o atleta amarrado chorava alto e o historiador silencioso tentava acalmá-lo, mostrando, pelo contraste, um autocontrole surpreendente.


Tendo uma arma apontada para a minha cabeça, fui empurrada até o saco ao qual o colega tinha há pouco devolvido o berimbau. O homem gritou que abrisse a sacola. A embira que a amarrava custava a ceder sob os comandos trêmulos dos meus dedos e eu consegui dizer apenas "berimbau", o que parece ter soado como um palavrão, e o homem me desferiu um chute agudo nas costelas, que me fez cair de borco sobre a sacola do berimbau.


Felizmente a persistência não era o forte deles.


O professor de filosofia, que tinha saído para comprar cerveja, chegou à cena justo na hora em que a quadrilha, irada pela decepção com a fraca coleta, abria a porta a chutes, para sair. Os homens quase derrubam o colega que chegava no patamar da porta. O mais fático deles ainda lhe fez uma revista e deu nele gratuitos tabefes. Os dez reais que trazia no bolso, troco da cerveja, e o seu cordão de miçangas parecem tê-lo irritado ainda mais. Ouvi apenas quando já gritava:

- Pra que serve isso? Pra que serve isso? Quem são vocês? Vocês são hippies ou o quê?


De dentro, com o canto da boca latejando, ouvi quando o colega respondeu:

- Somos professores.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Diálogo sobre o lixo

- How how how!
Very well, very well,
very well, Papai Noel!
Mas quanto lixo dormindo nas ruas!


- Sete lixos sob a marquise.
Sete lixos revirando-te o lixo
em plena enchente de Natal,
que tudo lava, tudo leva, tudo livra...


- Casa arrumada, ruas limpas, consciência lavada
e o lixo revirando minhas latas de bicho.


- Não é lixo; é bicho!


- Não, não é um bicho; é o lixo!


- Pou pou pou!
Empresário bom é empresário morto!


A culpa foi da chuva.