A ignorância tem seu preço. Pode até ser auxílio para a conquista da felicidade o nada conhecer sobre certos assuntos, mas, a depender das circunstâncias, é melhor não erguermos a nossa ignorância numa taça, não fazermos dela tanto alarde.
Algum tempo atrás, se não me engano as pessoas tinham pudor de emitir certas opiniões sem qualquer embasamento em áreas do saber das quais nada conheciam. Agora, falar em áreas do saber é que soa arrogante. Buscar e ter esclarecimento sobre certos assuntos também se transformou num mau sinal. Numa conversa, as pessoas costumavam ouvir um pouco, antes de falar, ao menos para ter um tempo de escolher as palavras para a resposta - ou para outra pergunta. Paradoxalmente, parecia não haver tanto pudor de demonstrar desconhecimento, se havia ali alguém disposto a nos esclarecer... Assim, entre perguntas e respostas, o diálogo acontecia. E era comum acreditar-se que os mais velhos, os mais sábios, os que tinham vivido, lido, viajado ou estudado mais tinham algo a nos ensinar.
Hoje já fica difícil. A gente quer conversar, mas fica a cada dia mais difícil. Eu quero muito saber de onde veio esse delírio coletivo. Qual a origem dessa arrogância sem limite e sem fundamentos que vem virando de cabeça para baixo o mundo do diálogo possível, nas redes sociais virtuais e nas não virtuais.
E olhem que eu consigo conceber, teoricamente, muitas condições contraditórias ou paradoxais, mas como entender, por exemplo, o homossexual homofóbico? Freud explica, alguém dirá. Um outro acrescenta que é um jeito de quebrar o espelho na porrada... Pode ser, mas, e aquela experienciazinha mínima de alteridade, o famoso colocar-se no lugar do outro? Lembra com que frequência usávamos essa expressão, uns tempos atrás? Pois é, virou a maior caretice, coisa de cristão, deve ser. Mas por que razão foram dispensar logo a melhor parte do cristianismo, e salvar as piores?
Agora tem um monte de gente se arrogando por títulos (vou omitir alguns exemplos de títulos que não deveriam ser exibidos, suspeitando contudo que pode ter sido essa omissão - não de títulos, mas de "autoridade" (espero que essa expressão se aproxime ao máximo, aqui, de "autoria", porque traz a ideia de assunção, de responsabilidade sobre o dito e sabido) que, em contrapartida, gerou a falta de vergonha a que me referi antes).
Tem gente se arrogando por pensar que "fala bem" ou "escreve bem", muitas vezes agarrado a uma estrutura e um vocabulário inadequados ao contexto, e, mesmo se dizendo "da área" específica de estudos da linguagem, nada acompanhando das atualizações do estudo do próprio idioma, a que tantos pesquisadores dedicam suas vidas. Aliás, nesse caso, quanto maior a limitação, maior o delírio de saber. Foi assim com a condenação inquisitorial, alguns anos atrás, do livro didático que trazia como exemplo uma frase do falar popular. Assim é com o endeusamento ridículo de figuras públicas que desenterram fórmulas arcaicas do idioma em seus discursos ocos de conteúdo, pobres de significação, carentes de ideias e ainda por cima descontextualizados. São arrogantes estes, e aqueles que aplaudem, sem condições muitas vezes de dizer o quê e por que é que apreciam aquele modo de falar. Tem gente que gosta de ser enganado.
Porque pessoas arrogantes são até engraçadas em determinadas situações. A gente percebe que elas sabem que têm um certo brilho, ou que encontraram uma pequena pérola que muitos gostariam de possuir... Às vezes foi só um livro mesmo que a pessoa publicou, gravou um disco, passou num concurso, recebeu um elogio público, sei lá...
Às vezes a origem do delírio me parece mais clara: há pais que endossam em excesso (resquício tardio de um psicologismo paternalista e de um pedagogismo do reforço que já teve o seu momento, e deve ter tido as suas razões) e a criança cresce cercada da sensação de que ela é única, melhor, especial, perde a referência. Depois, quando vem o tombo, é aquele trauma... Lá vai a família para o psicólogo, tentar resolver o que um pouquinho só de choque de realidade teria resolvido logo no início. Elogio é uma droga pesada. Devíamos andar com um espelho de bolso para nos olharmos nessas horas. Fotografias sem photoshop também ajudam.
Há amigos que pensam estar ajudando (por vezes só querem se livrar mais rápido da figura intragável, e lançam a loa). Outros pensam auxiliar na solução daquela fragilidade e insegurança ululantes, e lá se vão mais uns elogios exagerados... Enfim fazem o camarada se sentir um prodígio, sendo que a sua atuação é apenas medíocre - ou seria, pouco tempo atrás...
O espetáculo pode ser acachapante. Ainda mais quando os elogios são trocados por duas ou mais pessoas reconhecidamente fracas numa determinada área do saber (com o perdão da expressão, tão arrogante!). Não estranha que se juntem em grupos coesos de auto-ilusão e auxílio mútuo, para manutenção e propagação do delírio coletivo. E têm todo o direito de fazê-lo, afinal, dizem que a união faz a força - é o lema fascista. Mas esse tipo de união só faz a força bruta (nas duas acepções do termo), e é um desserviço que lhes prestamos fazer de conta que para nós está tudo bem e que a ignorância deve dominar o mundo.
Não! É preciso falar, e talvez com mais veemência, ampliada na medida mesma da ignorância gritalhona. Um conteúdo forte contra um volume alto.
É um terreno confuso, sem dúvida, e nem dá para acusar a caretização politicamente correta que há algum tempo se generalizou e que já vinha entediando e isolando a geração que foi jovem na década de oitenta. Não é possível mais pôr a responsabilidade naquela caretice porque metade dela é, hoje, ao contrário do patrulhamento ideológico dos primeiros anos pós-ditadura, politicamente incorreta quando se trata dos problemas dos outros, dos filhos dos outros, do sofrimento dos outros, da morte dos outros...
É aí que entra a ignorância com sua via de cobrança: não precisa ser cristão para entender que o sofrimento do outro ser humano (com o perdão da expressão) também é meu. Não estou falando de solidariedade (eu não chegaria a tanto), mas, se nós vivemos em comunidade (tribo, bairro, cidade, facebook), é mais que provável, é fato que quem não tem, mais cedo ou mais tarde, dê um jeito de buscar. Isso para permanecer num argumento epidérmico, quase cínico.
Até há algum tempo era difícil explicar o óbvio sem recorrer à ironia, esse recurso em plena transformação no nosso idioma. Teremos (já começamos) de recorrer a um hiperdidatismo, ou então não sairemos mais deste lugar terrível de ausência de diálogo a que chegamos ultimamente.
Vamos de novo, escolhendo um exemplo só: se o número de assaltos aumentou no seu bairro, não é carro de polícia passando na rua que vai resolver. O problema começa antes. Por menos que você queira encarar, aquele que assalta é uma pessoa. Então vamos por partes: ele nasceu e viveu, foi criado (ou não), educado (ou não) por determinadas pessoas e em dadas circunstâncias. Essas circunstâncias envolvem ter ou não o que comer (desde bebês, eles também precisam comer, e todo assaltante um dia foi um bebê), ir ou não à escola. Etcétera. As circunstâncias a que me refiro dependem também do que encontram na escola, e ainda do nível de desigualdade que são capazes de perceber entre o que receberam e ainda recebem (primeiro dos pais, se houve, e depois do Estado, se sabem que ele existe e para que existe).
Essas variantes e outras mais podem ter maior ou menor influência, mas todas elas contam. E não é crente nem cristã ou espírita quem está falando. É fato. Assim, se você quer ou precisa continuar vivendo em comunidade, vai ter que dividir espaço com essas pessoas, porque elas existem.
Agora vem o ponto importante: para que elas não existissem - como assaltantes, bem entendido -, o processo teria de ser brecado lá atrás, ok? Carro de polícia passando na rua, prendendo, torturando e matando, não resolve o problema delas. E nem resolve o seu, porque, no fundo, vocês são duas faces de um mesmo problema: o da desigualdade social, que é de base e origem econômica. Isso mesmo: estou falando de ter produtos à disposição, poder de compra, poder consumir. Estou falando de distribuição de renda e de acesso a serviços. Sim, eles não nasceram pobres por determinação do destino - não no sentido grego. O destino deles (e o seu) dependem do mercado capitalista e das políticas públicas existentes. Por isso também não resolve não votar, votar nulo ou em branco. Continuaremos tendo de ter "representantes"(permitam-me as aspas) na presidência, no congresso, na câmara dos deputados, no governo do estado, na prefeitura...
O Estado tem de prover meios de melhoria das condições de vida, desde o início. É por isso que uma Proposta de Emenda Constitucional com a PEC 241, lançada agora pelo governo Temer e apoiada por maioria dos deputados é contra o futuro do país. Congelar o investimento público em saúde e educação não é economizar; é empurrar a conta para o futuro. Um futuro menos doente, menos miserável, menos drogado e prostituído é tudo o que desejamos e que vínhamos, a duras penas, conquistando neste país.
É por isso que você, que fala contra quem defende os direitos humanos, é mais obtuso do que quem os defende, e sem ser mais cristão. Note: a insegurança da sua família para ir ao shopping comer hambúrguer depende diretamente de uma melhor distribuição de renda, programas sociais (saneamento básico, educação, saúde, moradia) para essas pessoas. Fique tranquilo: você não estará sendo bonzinho pensando assim. Isso não fará de você um petista, nem um socialista, e muito menos um comunista. Ainda não. Só te declararia menos obtuso. Ligue os pontos aí e você verá que só tenho insistido no óbvio.