sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Conto de Natal

Pela manhã, logo depois de me levantar, fui ao fundo do quintal para ver se havia alguma manga caída.

Ao passar pela porta, notei que algo no chão brilhava e lançava um prisma colorido entre o verde e o azul. Abaixei-me, olhei de perto e percebi que era uma tampinha de sprite. Coloquei-a no bolso da jaqueta e voltei ao quarto para apanhar os óculos, que havia esquecido.

Quando abri a gaveta da cômoda, uma barata correu em direção ao meu braço e gritei asperamente, interrompendo pela segunda vez a sua ceia de Natal.

Pensei então poder amassá-la, como na boa literatura, se fechasse rapidamente a gaveta, mas percebi logo que nem isso seria boa literatura nem teria ali o meu momento epifânico, porque ela caiu, e caiu inteira sobre meu pé esquerdo, ao qual cada vez mais se grudava, quanto maior a força que imprimia para livrar-me dela.

E estava aos coices, ligada a uma barata cuja privacidade invadira inescrupulosamente, quando notei que alguém se aproximava. Poderia ser um louva-a-deus chegado num cavalo branco para livrar a barata de mim, ou um rei mago trazendo ouro, incenso ou mirra, guiado por uma manga cadente... Mas era só meu pai, Noel, gordo, a barba por fazer, camuflado sob os ramos laminados de uma árvore, de onde retirou delicadamente uma bolinha vermelha, com a qual se aproximou da barata, que já se encaminhava para a ponta do dedo maior, aproveitando a trégua que lhe dei à chegada do velho.

Ele foi chegando lentamente, até quase encostar a bolinha no inseto. Eu a via de costas para mim e refletida convexa naquele globo lisíssimo. Como que hipnotizada, foi erguendo uma por uma as perninhas e equilibrando-se vagarosamente sobre o seu novo mundo, no qual agora reinava soberana.

Naquele instante o velho Noel pareceu-me o mesmo que tempos atrás apanhava libélulas para atar-lhes as levíssimas fitas coloridas... Olhava fixamente a barata, que o olhava, por sua vez, quando um vento mais forte soprou da janela e derrubou a nossa nave-árvore de Natal.

Com o susto, a barata lançou-se ao cortinado, abandonando o universo reflexivo que havia sido criado especialmente para ela e Noel espancou-a até a morte com meu próprio chinelo.

O som das lâmpadas coloridas se quebrando contra o assoalho alternava-se - e alterna-se ainda - com as pancadas do chinelo sobre o inseto inerte.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Amanhecer enfermo


Frida Kahlo. A coluna quebrada.

Amanhecer enfermo é como entrar no pesadelo de outrem. E como a doença só surge quando estamos sãos, o que é plenóbvio, nos apanha sempre de surpresa - como uma topada na calçada, um dedo preso na porta do carro, uma tempestade. Não temos tempo de nos despedir da saúde, sua saída é a própria entrada da doença. Não há vaga ou espaçamento entre os estágios, o que os transforma quase que em um mesmo estado, sequenciado. É possível que haja alguém meio doente ou meio são? Apenas em rara abstração conceitual. E a doença? Podemos nos despedir dela, estando ainda dentro dos seus domínios? Ou será a doença - como a saúde - um estado do qual só é possível despedir-se a posteriori, estando ela já distante? Podemos ainda nos perguntar: será isso, ainda, uma despedida? Pensamos que as mesmas interseções que ora percebemos na relação entre saúde e doença também se aplicam à dupla vida-morte.