Pela manhã, logo depois de me levantar, fui ao fundo do quintal para ver se havia alguma manga caída.
Ao passar pela porta, notei que algo no chão brilhava e lançava um prisma colorido entre o verde e o azul. Abaixei-me, olhei de perto e percebi que era uma tampinha de sprite. Coloquei-a no bolso da jaqueta e voltei ao quarto para apanhar os óculos, que havia esquecido.
Quando abri a gaveta da cômoda, uma barata correu em direção ao meu braço e gritei asperamente, interrompendo pela segunda vez a sua ceia de Natal.
Pensei então poder amassá-la, como na boa literatura, se fechasse rapidamente a gaveta, mas percebi logo que nem isso seria boa literatura nem teria ali o meu momento epifânico, porque ela caiu, e caiu inteira sobre meu pé esquerdo, ao qual cada vez mais se grudava, quanto maior a força que imprimia para livrar-me dela.
E estava aos coices, ligada a uma barata cuja privacidade invadira inescrupulosamente, quando notei que alguém se aproximava. Poderia ser um louva-a-deus chegado num cavalo branco para livrar a barata de mim, ou um rei mago trazendo ouro, incenso ou mirra, guiado por uma manga cadente... Mas era só meu pai, Noel, gordo, a barba por fazer, camuflado sob os ramos laminados de uma árvore, de onde retirou delicadamente uma bolinha vermelha, com a qual se aproximou da barata, que já se encaminhava para a ponta do dedo maior, aproveitando a trégua que lhe dei à chegada do velho.
Ele foi chegando lentamente, até quase encostar a bolinha no inseto. Eu a via de costas para mim e refletida convexa naquele globo lisíssimo. Como que hipnotizada, foi erguendo uma por uma as perninhas e equilibrando-se vagarosamente sobre o seu novo mundo, no qual agora reinava soberana.
Naquele instante o velho Noel pareceu-me o mesmo que tempos atrás apanhava libélulas para atar-lhes as levíssimas fitas coloridas... Olhava fixamente a barata, que o olhava, por sua vez, quando um vento mais forte soprou da janela e derrubou a nossa nave-árvore de Natal.
Com o susto, a barata lançou-se ao cortinado, abandonando o universo reflexivo que havia sido criado especialmente para ela e Noel espancou-a até a morte com meu próprio chinelo.
O som das lâmpadas coloridas se quebrando contra o assoalho alternava-se - e alterna-se ainda - com as pancadas do chinelo sobre o inseto inerte.
Muito bom!
ResponderExcluirUm grande abraço.