domingo, 26 de dezembro de 2010

Sobras

Quando criança, vivia num casebre onde funcionava uma espécie de internato interiorano. E era sempre o último a chegar, à noite, por isso não fazia as refeições à mesa, junto com os demais. Servia-se diretamente no fogão, onde ficavam, frias, as grandes panelas.

Naquela noite a mesa de madeira sustentava numa das cabeceiras uma florzinha roxa, murcha e enigmática.

Tendo chegado faminto, foi até o fogão e destampou a frigideira, pensando em aquecer o feijão. Lá estava a ratazana, afoita e barulhenta, devorando as sobras do jantar. Era tão grande e nojenta. A tampa mal parava sobre ela, devido ao seu movimento frenético. No mesmo instante foi entendendo em si certos sintomas até então inexplicáveis e descobriu-lhes, de repente, a causa: ele vinha, há tempos, comendo as sobras da ratazana.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Noite feliz!

Uma estranha sensação me toma quando ouço pessoas adultas falando em menino jesus e anjo da guarda. Penso que no fundo devem estar caçoando. Não é possível que invistam sérios afetos em contos de fadas sem fadas e, principalmente, sem um enredo bem contado. (Deus)
 
O espírito natalino baixou ontem no morro aqui atrás. À meia-noite um manto de luz cobriu a todos e, como num passe de mágica, os casais em crise se reencontraram, os irmãos afastados se perdoaram, os vizinhos indispostos se abraçaram e cearam juntos, e logo fumaram o seu baseado na santa paz de deus e foram ouvir o funk do senhor gravado pela Facção de Jesus!

Só um tempo depois percebi que eram os primeiros relâmpagos do temporal que se formava e que inundou a avenida, cujo sistema de escoamento há muito anda comprometido.

Até a dona Conceição, que tinha sido espancada pelo companheiro anteontem mesmo, perdoou. Quase pude vê-la apanhando (perdão pelo verbo e pelo nome dela) na estante da sala o vinil da Simone, para ouvir novamente, depois de um ano: "Então é Natal!...".

Mas a sua cara não está nada boa. Lógico, ninguém se desdeprime antes que o roxo desapareça do olho.

Por falar nisso, na arara do supermercado vi a capa de uma revista: "Reapaixone-se: a solução para o tédio do casal em uma semana". Nessa série, o último de que ouvi falar era o livro Transforme seu marido em seis dias, cuja promessa da sinopse não lembro bem, mas acho que era sexo, amor, companheirismo e cumplicidade de volta - como na lua-de-mel.

Aguardarei um pouco mais. Dado o atual avanço da ciência e da tecnologia, não demora essas coisas se solucionarão muito rapidamente e, assim como tínhamos até há pouco Excel em 24 horas e Derrida em 90 minutos, em breve teremos Salve seu casamento em meia hora ou Descubra se ele é o homem ideal em 15 minutos.

Retornando à Natividade... Todas as mazelas, as dores, as desgraças, toda mentira e traição, a violência, o desamor, o abandono, a miséria, a cobiça, a doença, o desespero, a inveja, os ciúmes, as dúvidas, as dívidas, tudo desaparece como num toque de mágica nesse dia especial. Especialmente quando coincide de a virada do Natal cair na noite de sexta para sábado.

Claro que lamentavelmente há exceções. Conheço duas senhoras hipercatólicas que deixaram de se falar há quinze anos, e justo por ocasião do Natal, sob o som do Jingle Bells e o entrechocar das nozes!

Mas isso é porque o catecismo não lhes foi bem inculcado, ou então elas teriam aprendido que o valor maior para um cristão é o amor ao próximo, e que o ato do perdão é a sua grande demonstração.

Enfim, não se falam. Mas com certeza se lembram uma da outra nas suas orações, porque ambas eu sei que rezam para comer. Quero dizer: as duas realizam em voz alta os seus votos a todos os necessitados do mundo, diante do peru assado, antes de darem, altivas, o sinal para o ataque da família famélica, à meia-noite.

Se eu mendigasse, chegaria a um desses lares enfeitados de luzes coloridas justo à hora da virada, na noite de Natal, a ver se garantia o meu quinhão da fina iguaria! Pode ser que, diante do constrangimento e dos olhares perplexos de crianças e meio-estranhos recém-agregados, deixassem mesmo que entrasse.

Inclusive porque percorre o imaginário a idéia de que na noite de Natal o Cristo em pessoa, disfarçado de mendigo...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Advérbios

- Mãe, senta aqui no meu perto.
- Sento!
- Assim você fica na minha atrás!
- Na minha frente.
- Na sua frente!?

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Cemitério familiar

Gustav Klimt: Danae.


Recebíamos os mortos em nossa própria casa, trazidos pelos seus parentes próximos. Uns vinham empalhados e devidamente encolhidos, como o boneco de papelão de uns poucos centímetros, de um índio americano, que pendurei provisoriamente na fechadura, enquanto recebia uma remessa já bastante condensada, recém-chegada de uma chacina na casa de detenção. Toda a família trabalhava igualmente no recebimento e na organização dos cadáveres. Orgulhávamo-nos de podermos trabalhar juntos e em nossa própria casa, que transformamos num cemitério ultramoderno. Alguns mortos chegavam em urnas minúsculas e outros já em DVDs, que distribuíamos por ordem alfabética nas prateleiras. Os DVDs eram minha forma preferida para armazenamento: ocupavam pouco espaço e não pesavam quase nada.

Eu havia acabado de receber as vítimas do atentado e arrumava-as nas estantes quando fui surpreendida com o modo antiquado como me trouxeram um novo defunto, dificultando a locomoção: numa caixa grande, feita de ripas de madeira, dessas em que se transportam legumes: pensei em como seria incômodo lidar com aquilo, mas sabia que era norma não rejeitarmos nenhum cadáver.

Aproximei-me, então, calculando como faria, e vi que se tratava de uma mulher jovem, esquartejada, com alguns membros separados do corpo. Olhei bem e notei que tinha a minha estatura. Também o tom da pele se assemelhava ao meu - só que estava mais branca, considerei, porque tinha perdido muito sangue. Quando virei o rosto para vê-lo melhor, percebi assustada que era eu mesma, com um batom vermelho que nunca usei. As formas exalavam sensualidade.


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Mortos vivos

Frida Kahlo. Sem esperança.

Andei pelo cemitério, contemplando: os mortos eram todos enterrados da cintura para baixo, de pé ou sentados, apenas o tronco e a cabeça apareciam sobre as lápides.  Tive a impressão de que alguns mexiam o dorso, e a certeza de que os cabelos continuavam a crescer após a morte, porque todos os traziam demasiado longos e bastante empoeirados. No momento seguinte reconheci, a partir da cabeleira densa e longa, eu mesma, em uma das tumbas, e passei a sentir a angústia profunda de não estar mais viva, mas de também não estar completamente morta, podendo movimentar apenas parte do corpo, e ter de estar assim para sempre. Olhei na tumba ao lado e reconheci a cabeça do Cristo, como a que aparece em muitas gravuras medievais. Virou-se para mim e piscou-me o olho, num sinal de cumplicidade que antes me encheu de pavor.



sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O asco

Emerge do ventre salobro chafariz.

Encontra o temido e desejado fim.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O caos

Desastre: por um segundo o prisma lacrimal apaga sol e lua.

E num piscar de olhos a paisagem renasce luminosa.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O caso

Cada canto da boca sorve uma gota salgada:

antídoto longamente destilado.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ocaso

Duas lágrimas - foi o que verti.

Não é pouco, nem sinal de insensibilidade.

Quem já olhou de perto uma gota sabe que nela se reflete inteiro um universo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Sutiã

Flora, solidária, estreando a miniblusa rosa que ganhou da avó:
-Mãe, menino pode zuar sutiã?
-Usar?
-É!
-Poder, pode. Por quê?
-Eu vou comprar um sutiã azul pro Francisco, tá?

Presente de Deus


Michelangelo: A criação de Adão (detalhe).

O motorista do carro da frente não precisou comprá-lo, ganhou direto de Deus, está escrito no adesivo.

Será por isso que ele me deu uma fechada, quase me jogando sob a scânia para ser escaneada?

E será pela mesma razão que, quase incontinenti, lançou pela janela uma lata vazia de refrigerante?

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

História natural




Achava dificuldades em perceber o óbvio: cobras cegas são notívagas; o orangotango é profundamente solitário; ratos de laboratório vivem em média dois anos; macacos também preferem o isolamento.

Até que um dia hospedou no quarto de cima um caranguejo. Sempre pensou que o bicho andasse para trás. Mas agora não cabia mais pensar; ali estava ele, o casco reluzente, os olhos compridos, descendo as escadas para o almoço na copa. À mesa, triturava lentamente cada folha de alface, as pernas peludas exalando um odor de lama não de todo desagradável. Dia após dia, crescia.

Às vezes ela se fechava no quarto a imaginar o lugar de onde ele vinha, a superfície fria da lama negra, o brilho das folhas polpudas das árvores do manguezal, suas sementes verdes em formato de pincel, os troncos apinhados de ostras... Subitamente, porém, outras tonalidades tingiam os quadros que criava, e eram os tapetes puindo, a vizinhança curiosa, a feira por fazer e alguns pequenos flocos de lama a se fixarem no rodapé. Nesses momentos, esforçava-se por firmar o pensamento sobre a própria capacidade de compreensão, sobre como ela era humana em trazer para o seu asseado convívio aquele crustáceo. Não podia esquecer que conservá-lo ali era a forma que havia de ter consigo todo o mangue, de vivê-lo ainda uma vez, mesmo que em devaneios.

Quando criança, ouvia contar as histórias do homem-caranguejo, que vivia dos excrementos lançados no manguezal. Naquele tempo o mangue era uma faixa limpa e menos conhecida do mar. Excremento era menos tóxico e o homem-caranguejo era um pernambucano ou um capixaba que tinha vizinhos que lhe apinhavam a palafita para vê-lo comer excrementos, por vezes o próprio excremento.

Crescer o bicho sabia, e ela o notava. Era tanto o espaço que já ocupava que tiveram de ser retirados alguns móveis. Os tapetes da escada, embora favorecessem sua escalada diária da copa ao quarto, também foram discretamente recolhidos, antes que puíssem de todo com a constância das pontas das suas pernas traseiras.

A parte mais proveitosa da hospedagem eram mesmo os devaneios que o hóspede sem saber lhe proporcionava. Também lhe parecia útil a descoberta de que caranguejos andam de lado, e não para trás, como sempre ouvira falar.

Sentada num sofá azul fechava os olhos levemente maquiados - também de azul - e se deliciava com o odor de mangue buscado na memória da imaginação da infância. Suas narinas se dilatavam sorvendo aquele pretume. Podia vislumbrar muitos deles a entrar e sair de seus buracos na crosta semi-dura. Fêmeas prenhes arrastando os ventres dilatados, recheados de ovos cor de abóbora, os olhos compridos em expressão de penúria. Quando se achava já em meio a eles, sendo quase uma delas, correndo também em busca do seu buraco, a sua mãozinha delicada escorregou do sofá e tocou o companheiro, que se chegara silenciosamente, como de costume, em busca de sua ração diária.

Assustada com o contato de seu casco duro e seco, tentou refazer-se, aparentando naturalidade, e exibiu-lhe um sorriso suave, que quase o acariciava. Naquela manhã seu casco parecia mais azul. No almoço, enriqueceu a sua folha de alface com pedacinhos de cenoura, tudo tão fresco e apetitoso que ela mesma resolveu provar. Queria sentir o gosto exato do que o amigo ingeria. Mas era inútil, pensava quando o olhava fixamente. Via o formato quadrado de sua mandíbula peluda e imaginava o que lhe ia por dentro.

Chegou a dedicar-se à Zoologia, na tentativa de penetrar aquele mundo insólito. Comprou alguns livros ilustrados, mas chorava de desespero perante as gravuras, porque todos os caranguejos que via eram diferentes daquele seu hóspede, e pareciam todos tão integrados ao seu habitat natural que passou a sentir-se culpada pela expressão sempre ríspida na face do bicho e até pela dureza do seu casco. Lembrou-se de que, quando ele viera, havia do lado esquerdo um furo de bala, resultado do péssimo costume que têm alguns de usar armas de fogo para a cata de caranguejos. Alguns emplastros ajudaram a recuperá-lo inteiramente; porém, no local do antigo orifício o casco dobrara em espessura, deixando à mostra um calo ainda mais duro que o resto da superfície.

Por meses viveu entre a alface e o devaneio. Até que um dia dormiu no sofá azul e amanheceu com a barriga enorme, repleta de ovos cor de abóbora. A lama cobria o tapete que restava.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Kim Phuc


Estava olhando as famigeradas quarenta e cinco fotos históricas que alguém me enviou quando Flora e Francisco entraram no escritório atrás de papéis para desenhar.

Aparecia justo a menina vietnamita queimada por napalm e os dois foram abduzidos pela imagem. Vivemos numa época em que ver fotos se tornou algo um pouco mais público do que era algum tempo atrás. E o movimento de clicar às vezes é menos rápido que o de fechar um álbum, para mãos acostumadas a lançar juntos mais de um dedo.

Claro que, tendo filhos pequenos, eu também penso sobre a tênue distância entre o quarto cor de rosa e o canivete da esquina, sobre o rápido intervalo entre a bela adormecida e a bala perdida, e o pêndulo oscila sempre entre o que esconder e o que apresentar, o que introduzir agora e o que deixar para mais tarde. É uma rotina de responsabilidade desumana, porque demasiada para o humano, se a tomamos a sério.

Mesmo porque temos, no mínimo, uma história inteira, um idioma inteiro, uma cultura inteira dentro dos quais nos perder para tentar nos encontrar. Das migalhas do que pensamos conhecer temos de fazer uma colcha de retalhos apresentável e coerente, por ora, enquanto as crianças não aprendem a costurar a sua, sabendo contudo que somente o aprenderão a partir dessa pequena mostra que lhes damos no começo.

O fato é que a menina, em choque, chora de dor e desespero, braços estendidos em cruz e a pele a se soltar, correndo nua pela estrada juntamente com outras crianças vietnamitas, seguidas de perto por soldados...

Lembrei-me imediatamente de que irrompi aos prantos ao ver a cena no cinema, a menina em completo desamparo e procurando por ar para respirar, num documentário exibido no antigo cine Carmélia, quando eu ainda era adolescente.

Flora comtemplou a imagem em preto e branco por um largo minuto: "- Por que ela está chorando, mamãe?" Ia responder que era porque estava triste, mas em tempo percebi que não a convenceria. A tristeza ela já conhece. De início fiquei assim, sem resposta, tentando eu mesma entender a dimensão daquilo, enquanto ela já se distraía, espalhando pelo chão as suas canetinhas.

Mas Francisco não. Pediu para ficar no meu colo, como quando aparece no dvd a bruxa má, e não era mais capaz de tirar os olhos da tela. Via apenas a menina e perguntava seguidamente, como num eco da fala da irmã: "- Por que ela está chorando?" "- Porque ela está triste." "- Por que ela está triste?" "- Porque ela está sofrendo." "- Por que ela está sofrendo?" "- Porque ela sente dor." "- Por que ela sente dor?" "- Porque ela foi queimada." "- É? Por quê?" "- Porque os Estados Unidos..."

"E por que ela está chorando?", voltou a perguntar depois de meio minuto. Penso que perguntou doze ou quinze vezes, não importava mais que tipo de resposta eu lhe desse. Fiz menção de fechar a página, ao que ele, sério, num gesto assustadoramente além de sua idade e ainda sem tirar os olhos da menina, empurrou com seu braço o meu, tirando-me assim a posse do mouse. Depois quis saber o que o garoto tinha na perna, uma mancha que não aparece em todas as versões da imagem.

Tentei atraí-lo para uma Challenger que estourava nos céus, um John Kennedy sendo assassinado, um papa a ponto de levar um tiro... não houve modo.

Temo que sofra dessa mesma necessidade que tenho de diluição. Distante de qualquer suposto sadismo ou masoquismo, trata-se de uma estratégia de disseminar o incômodo por meio da palavra, de sua pungente repetição, um modo de desgastar a imagem dolorosa através do olhar, até que se canse de ver.

Junho de 1972. O exército americano ataca Trang Bang, Vietnam do Sul. Foto: Nick Ut.

P.S.: Finda a postagem, percebo que a imagem inutiliza a narrativa, torna-a desnecessária diante da força óbvia que o horror aciona. Mas ela deve permanecer ali, a pedido da própria Kim Phuc. Sobrevivente, hoje ela afirma bastar a qualquer pessoa ver a foto para que entenda a que ponto pode chegar o pavor de uma criança durante uma guerra.