Estava olhando as famigeradas quarenta e cinco fotos históricas que alguém me enviou quando Flora e Francisco entraram no escritório atrás de papéis para desenhar.
Aparecia justo a menina vietnamita queimada por napalm e os dois foram abduzidos pela imagem. Vivemos numa época em que ver fotos se tornou algo um pouco mais público do que era algum tempo atrás. E o movimento de clicar às vezes é menos rápido que o de fechar um álbum, para mãos acostumadas a lançar juntos mais de um dedo.
Claro que, tendo filhos pequenos, eu também penso sobre a tênue distância entre o quarto cor de rosa e o canivete da esquina, sobre o rápido intervalo entre a bela adormecida e a bala perdida, e o pêndulo oscila sempre entre o que esconder e o que apresentar, o que introduzir agora e o que deixar para mais tarde. É uma rotina de responsabilidade desumana, porque demasiada para o humano, se a tomamos a sério.
Mesmo porque temos, no mínimo, uma história inteira, um idioma inteiro, uma cultura inteira dentro dos quais nos perder para tentar nos encontrar. Das migalhas do que pensamos conhecer temos de fazer uma colcha de retalhos apresentável e coerente, por ora, enquanto as crianças não aprendem a costurar a sua, sabendo contudo que somente o aprenderão a partir dessa pequena mostra que lhes damos no começo.
O fato é que a menina, em choque, chora de dor e desespero, braços estendidos em cruz e a pele a se soltar, correndo nua pela estrada juntamente com outras crianças vietnamitas, seguidas de perto por soldados...
Lembrei-me imediatamente de que irrompi aos prantos ao ver a cena no cinema, a menina em completo desamparo e procurando por ar para respirar, num documentário exibido no antigo cine Carmélia, quando eu ainda era adolescente.
Flora comtemplou a imagem em preto e branco por um largo minuto: "- Por que ela está chorando, mamãe?" Ia responder que era porque estava triste, mas em tempo percebi que não a convenceria. A tristeza ela já conhece. De início fiquei assim, sem resposta, tentando eu mesma entender a dimensão daquilo, enquanto ela já se distraía, espalhando pelo chão as suas canetinhas.
Mas Francisco não. Pediu para ficar no meu colo, como quando aparece no dvd a bruxa má, e não era mais capaz de tirar os olhos da tela. Via apenas a menina e perguntava seguidamente, como num eco da fala da irmã: "- Por que ela está chorando?" "- Porque ela está triste." "- Por que ela está triste?" "- Porque ela está sofrendo." "- Por que ela está sofrendo?" "- Porque ela sente dor." "- Por que ela sente dor?" "- Porque ela foi queimada." "- É? Por quê?" "- Porque os Estados Unidos..."
"E por que ela está chorando?", voltou a perguntar depois de meio minuto. Penso que perguntou doze ou quinze vezes, não importava mais que tipo de resposta eu lhe desse. Fiz menção de fechar a página, ao que ele, sério, num gesto assustadoramente além de sua idade e ainda sem tirar os olhos da menina, empurrou com seu braço o meu, tirando-me assim a posse do mouse. Depois quis saber o que o garoto tinha na perna, uma mancha que não aparece em todas as versões da imagem.
Tentei atraí-lo para uma Challenger que estourava nos céus, um John Kennedy sendo assassinado, um papa a ponto de levar um tiro... não houve modo.
Temo que sofra dessa mesma necessidade que tenho de diluição. Distante de qualquer suposto sadismo ou masoquismo, trata-se de uma estratégia de disseminar o incômodo por meio da palavra, de sua pungente repetição, um modo de desgastar a imagem dolorosa através do olhar, até que se canse de ver.
Junho de 1972. O exército americano ataca Trang Bang, Vietnam do Sul. Foto: Nick Ut.
P.S.: Finda a postagem, percebo que a imagem inutiliza a narrativa, torna-a desnecessária diante da força óbvia que o horror aciona. Mas ela deve permanecer ali, a pedido da própria Kim Phuc. Sobrevivente, hoje ela afirma bastar a qualquer pessoa ver a foto para que entenda a que ponto pode chegar o pavor de uma criança durante uma guerra.