Achava dificuldades em perceber o óbvio: cobras cegas são notívagas; o orangotango é profundamente solitário; ratos de laboratório vivem em média dois anos; macacos também preferem o isolamento.
Até que um dia hospedou no quarto de cima um caranguejo. Sempre pensou que o bicho andasse para trás. Mas agora não cabia mais pensar; ali estava ele, o casco reluzente, os olhos compridos, descendo as escadas para o almoço na copa. À mesa, triturava lentamente cada folha de alface, as pernas peludas exalando um odor de lama não de todo desagradável. Dia após dia, crescia.
Às vezes ela se fechava no quarto a imaginar o lugar de onde ele vinha, a superfície fria da lama negra, o brilho das folhas polpudas das árvores do manguezal, suas sementes verdes em formato de pincel, os troncos apinhados de ostras... Subitamente, porém, outras tonalidades tingiam os quadros que criava, e eram os tapetes puindo, a vizinhança curiosa, a feira por fazer e alguns pequenos flocos de lama a se fixarem no rodapé. Nesses momentos, esforçava-se por firmar o pensamento sobre a própria capacidade de compreensão, sobre como ela era humana em trazer para o seu asseado convívio aquele crustáceo. Não podia esquecer que conservá-lo ali era a forma que havia de ter consigo todo o mangue, de vivê-lo ainda uma vez, mesmo que em devaneios.
Quando criança, ouvia contar as histórias do homem-caranguejo, que vivia dos excrementos lançados no manguezal. Naquele tempo o mangue era uma faixa limpa e menos conhecida do mar. Excremento era menos tóxico e o homem-caranguejo era um pernambucano ou um capixaba que tinha vizinhos que lhe apinhavam a palafita para vê-lo comer excrementos, por vezes o próprio excremento.
Crescer o bicho sabia, e ela o notava. Era tanto o espaço que já ocupava que tiveram de ser retirados alguns móveis. Os tapetes da escada, embora favorecessem sua escalada diária da copa ao quarto, também foram discretamente recolhidos, antes que puíssem de todo com a constância das pontas das suas pernas traseiras.
A parte mais proveitosa da hospedagem eram mesmo os devaneios que o hóspede sem saber lhe proporcionava. Também lhe parecia útil a descoberta de que caranguejos andam de lado, e não para trás, como sempre ouvira falar.
Sentada num sofá azul fechava os olhos levemente maquiados - também de azul - e se deliciava com o odor de mangue buscado na memória da imaginação da infância. Suas narinas se dilatavam sorvendo aquele pretume. Podia vislumbrar muitos deles a entrar e sair de seus buracos na crosta semi-dura. Fêmeas prenhes arrastando os ventres dilatados, recheados de ovos cor de abóbora, os olhos compridos em expressão de penúria. Quando se achava já em meio a eles, sendo quase uma delas, correndo também em busca do seu buraco, a sua mãozinha delicada escorregou do sofá e tocou o companheiro, que se chegara silenciosamente, como de costume, em busca de sua ração diária.
Assustada com o contato de seu casco duro e seco, tentou refazer-se, aparentando naturalidade, e exibiu-lhe um sorriso suave, que quase o acariciava. Naquela manhã seu casco parecia mais azul. No almoço, enriqueceu a sua folha de alface com pedacinhos de cenoura, tudo tão fresco e apetitoso que ela mesma resolveu provar. Queria sentir o gosto exato do que o amigo ingeria. Mas era inútil, pensava quando o olhava fixamente. Via o formato quadrado de sua mandíbula peluda e imaginava o que lhe ia por dentro.
Chegou a dedicar-se à Zoologia, na tentativa de penetrar aquele mundo insólito. Comprou alguns livros ilustrados, mas chorava de desespero perante as gravuras, porque todos os caranguejos que via eram diferentes daquele seu hóspede, e pareciam todos tão integrados ao seu habitat natural que passou a sentir-se culpada pela expressão sempre ríspida na face do bicho e até pela dureza do seu casco. Lembrou-se de que, quando ele viera, havia do lado esquerdo um furo de bala, resultado do péssimo costume que têm alguns de usar armas de fogo para a cata de caranguejos. Alguns emplastros ajudaram a recuperá-lo inteiramente; porém, no local do antigo orifício o casco dobrara em espessura, deixando à mostra um calo ainda mais duro que o resto da superfície.
Por meses viveu entre a alface e o devaneio. Até que um dia dormiu no sofá azul e amanheceu com a barriga enorme, repleta de ovos cor de abóbora. A lama cobria o tapete que restava.
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