terça-feira, 18 de outubro de 2011

Minha mãe

Rembrandt: Velha senhora lendo.


Minha mãe sempre foi, para mim, o signo da delicadeza. Apesar de uma longa infância no mais íngrime dos campos capixabas, filha de agricultores italianos imigrantes, ela é daquela estirpe de gente que – afora todas as contradições inerentes ao humano – emana elegância.

Minha mãe foi uma mulher nervosa, por vezes destemperada, na sua juventude – e esse tempo se deu muito antes de que se falasse em TPM, e um pouco antes de que se disseminassem os variados métodos contraceptivos... Como não estou certa de que as doenças e similares existam antes de sua criação linguística, eximo-me de especular se o primeiro desses componentes já estava presente lá, guiando os seus achaques, que contudo me pareciam – ou hoje parece a mim terem sido – rigorosamente mensais.

Minha mãe não se sentou num banco de escola por mais de seis meses. Foi na época em que se escrevia numa pedra (sim, uma pedra preta usada à guisa de caderno, não de lousa), mas aprendeu a se expressar por escrito com firme clareza, internalizando depois algumas normas, todas elas a partir das correções que fazíamos nos bilhetinhos que ela deixava ao sair, de manhã, para o salão de costura. Nós, bons alunos da vida que ela nos legou, respondíamos respeitosamente, acentuando porém, pontuando, corrigindo. Na mesma idade da pedra aprendeu ainda, com desenvoltura, as quatro operações, o que foi de muita utilidade depois, na minha própria introdução ao mundo do cálculo não virtual.

Minha mãe raramente elevava a voz, jamais dizia um palavrão. É delicada no comer, no vestir, no falar... Mesmo assim levamos bons tapas e chineladas marcantes. É possível que possua todos os defeitos que costuma ter uma pessoa, mas, com sua singeleza de modos, conseguiu marcar em mim essa lembrança, que creio mesmo destoar daquela que guarde, por exemplo, minha irmã. Não importa agora cada tomo que venha a deixar: o conjunto da obra é essa doce memória que já se forma e que permanecerá.

Minha mãe leu todos os escritos que publiquei, impressionando-me com suas perguntas e comentários, mesmo sobre aqueles mais desprovidos da atração do enredo. Na última visita que me fez, surpreendi-a às gargalhadas, lacrimejante, no escritório lendo Turandot!

Minha mãe foi pobre, cozinhou em fogão a lenha, casou-se sem paixão... Conseguiu, mesmo assim ou por isso mesmo, insuflar, até onde pôde, a nossa paixão pela liberdade, embora nunca tenha realizado o desejo - para tantos tão prosaico - de estudar e tornar-se professora, e embora nem mesmo tenha realizado o simples  feito de guiar um carro...

Minha mãe vive uma funda religiosidade, para além de sua experimentação nas religiões, mas nunca discriminou ou recriminou os filhos ateus, nem jamais nos obrigou a frequentar a igreja. Sua inteligência lhe beneficia, ao menos, com o direito à dúvida. Minha mãe fala sobre homossexualidade, tem opiniões e curiosidades políticas.

Minha mãe, mais que tudo, tem humor, e, mesmo antes de ter conhecido fantasmas como o do câncer - e como que se preparando já para enfrentá-lo -, nunca se apavorou com a descoberta das nossas por vezes perigosas experimentações de jovens, chegando mesmo a se oferecer, carinhosamente, para plantar umas sementinhas de maconha: “Se é uma planta, vou cultivá-la como a todas as outras!”

Se eu pudesse, ter-lhe-ia “puxado” inteira...

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