quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A droga da hierarquia

Salvador Dalí: Criança geopolítica assistindo ao nascimento do novo homem.

Médicos receitam.

Ríspidos senhores respeitáveis riem à toa.
Senhoras sérias e insones sentem secas as mucosas.

O herói não sente dor.
A heroína não sente as pernas.

Rapazes arrojados se agridem na boate.
Moças ricas falam sem parar.

O sapateiro chora.

Tosse o vizinho do reggae.
Estudantes de História perdem a noção do tempo.

Alucina o professor.
As pupilas se dilatam.

Meninos voam.

O noia da esquina quebra pedra e vomita.




domingo, 23 de setembro de 2012

O pacto

 
Finda a novidade,
tenho pena do pato:
comê-lo-ei
pedaço por vez.

Morada de Deus (diálogo entre irmãos)

Francisco, enrolado num lençol, rolando na cama, anuncia em voz alta e grave:
- Flooora, eu sou Deeeus.
- E o que é essa barrigona aí?
- É a nuuuvem.
- Deus engoliu uma nuvem?
- Não (sentando rápido, esquecendo a gravidade), é porque ele mora no céu, ué!
- Dentro de uma nuvem?
- É.
- Mas ninguém pode morar dentro de uma nuvem; a nuvem é feita de água.
- Mas eu ouvi um monte de gente falando: "- Ai, meu Deus do céu!"
- Eu nunca vi o Deus.
- É porque ele é invisível. Voz grave de novo: - Ôôôôôôôôô!



sábado, 22 de setembro de 2012

Pesquisa



Obra de Arthur Bispo do Rosário. Foto: Ramiro Furquim.




Corretores de imóveis anunciam a casa com fantasma.

Procuro no mapa o lugar em que você não existe.

Pós-doutorado em Londres, Lima, Luanda...

Que corrente filosófica aboliu o pensamento em você?

Carta aberta 20

Ei Heitor,
desculpe pelo esquecimento. Foi resultado do sufoco que está sendo este mês: muita coisa ao mesmo tempo, mas, felizmente, só coisa boa! A sua encomenda chegou, sim. E no dia certo! Que delicadeza - a sua e a da bailarina: muito, muito linda. Eu nunca pensei que você se lembrasse de um detalhe como esse. Coloquei-a na estante do meu escritório, sobre as peças do Nelson Rodrigues: está bem assim, não está?
Mamãe mora num sítio. Pela manhã ela recolhe uma dúzia de ovos marronzinhos, que têm a gema escura. Os que apreciam ovos dizem ser deliciosos. Depois ela dá ração aos peixes que cria nos poços, alimenta as galinhas, liga os pivôs para molhar a horta, depois o café, e segue por ali, inventando coisas para fazer. O nosso dia se consome na invenção: apanhar uns cajás, descascar uma laranjas, pescar, assar uns pães... Iremos até lá, sim; sem dúvida.
Até logo. Beijos,
Andrea.

Carta aberta 19

Dea, que loucura, hem!
Nessa época do seu doutorado estivemos distantes, então eu não sabia de nada disso.
Ou melhor: conhecia alguns capítulos, em separado, mas o conjunto eu nem imaginava.
É uma narrativa rica e bonita, essa aí.
Por falar nisso, que achou da minha surpresa? Não disse nada, receio que não tenha chegado.
Em dezembro, quando eu for até Vitória, podemos ir à casa (fazenda?) da sua mãe.
O que você acha?
Beijos,
Heitor.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Carta aberta 18

Que bacana, Heitor querido, que bacana. Você merece isso - e mais.
Sim, tem o vazio, né? Eu me lembro que na época do mestrado senti isso.
É muito tempo se dedicando a, digamos, uma coisa só. Tem gente que compara a defesa a um divórcio. Senti isso, sim - junto com uma sensação de grande liberdade.
Já no doutorado, para cumprir o prazo e retornar ao trabalho na época certa, marquei a minha defesa para logo depois do nascimento dos gêmeos. Eles tinham um mês quando os deixei em Vitória e fui ao Rio voando, para a defesa, que foi muito legal. Meu orientador foi o Eduardo Coutinho.
Na banca tínhamos a Beatriz Resende, o Dau Bastos, o Evando Nascimento e o Wilberth Claython.
Eu estava tão cansada e extasiada com a novidade dos filhos que aquilo lá, por contraste, parecia uma coisa muito fácil, por incrível que pareça. Estava tranquila demais. A banca comentou a minha segurança nas respostas etc. É que eu tinha um batalhão me esperando em casa para me acordar e sugar a noite inteira. E o pediatra pressionando para que ganhassem peso. Assim sendo, não foi possível sentir vazio algum. Era o olho do furacão: o casamento aos frangalhos, a mudança espalhada
pelo chão de um apartamento alugado (tínhamos acabado de retornar de Brasília), uma barriga de metros, depois os gêmeos, a dificuldade de encontrar uma babá, a desefa da tese, o retorno ao trabalho, tudo junto. No dia da defesa, o meu maior medo era pingar leite sobre o texto que leria, sem exagero nem metáfora. Foi o único dia em que não amamentei. E você me desculpe por essa coisa meio Frida Kahlo - é difícil para um homem se imaginar no meu lugar. Foi assim...
Quanto a ficar sem celular e computador, é bom demais. Por sorte o telefone da mamãe (uma coisa paradoxal que chamam aqui "celular fixo") estava com defeito, e o relógio também não funcionava. Tínhamos de ligar o rádio e esperar o locutor dizer as horas, quando precisávamos disso por alguma razão. Ninguém sentiu falta. É mato, sim, é mato. Um silêncio e um escuro que clareiam a alma.
Um dia te levo até lá.
Beijos. Parabéns!
Andrea.

Carta aberta 17

Dea!
Que delícia estar sem celular, computador (e demais apetrechos)... se for no mato, melhor ainda!
Bom, a defesa.
De modo geral, foi uma tarde muito agradável, a de 29/08, uma quarta-feira.
Tudo começou às 14h00 e acabou às 17h50.
Quase quatro horas de conversa sobre coisas diminutas, textos mínimos, minificção, autoficção...
Sabe, foi bem legal. Os componentes da mesa: Prof. Rauer Ribeiro Rodrigues (da UFMS, o prof. Karl Erik não pôde vir) - era o nome mais afeito ao estudo, pois tem alguns artigos sobre o assunto, inclusive já coordenou um dossiê em periódico sobre o microconto. Profa. Rosana Kamita (da UFSC) - foi bem pontual em seus comentários; ela é muito discreta, foi extremamente receptiva à ideia. Profs. Luiz Simon e Frederico Fernandes (da UEL) - ambos já haviam participado da qualificação, portanto reviram algumas das sugestôes, como foram refeitas; foram muito tranquilos, também. Minha orientadora, profa. Regina Célia - é a discrição em pessoa, tanto no tom de voz, quanto em suas posturas crítico-teóricas.
A sensação que tive, no dia, foi de exaustão. Menina, uma tarde inteira tentando manter a atenção nos comentários dos professores acaba com qualquer um. De lá, fomos ao Restaurante Espanhol comer camarão e tomar cerveja: estava e ainda está muito calor por aqui, então cerveja vem bem a calhar.
O que mais dizer sobre a defesa? Dá uma sensação de vazio e desorientação depois que termina, não? Como você lidou(a) com isso?
Beijos, Dea!
Heitor.

Carta aberta 16

H.,
conte-me tudo; não me esconda nada. Como foi a defesa?
Não escrevi antes porque estava viajando, de férias, no bucolismo,
sem celular e sem computador, mas não me esqueci de você.
Como foi?
Beijo,
A.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Nascer

Kate Macdowell: Escultura em cerâmica.
 
- Mãe, quando é que eu vou nascer?

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Palavra

- Mãe, sabe qual a palavra que eu acho mais bonita?
- Qual é?
- Ímã. Fala, mãe, fala ímã.

Água que correu*

Odilon Redon: Ofélia.
 
Paixões que não deságuam no prazer...
(- Mãe, o que é prazer?
 - É quando está tudo muito bom.)

...São rios que cansei de percorrer...
(- O que é percorrer?
 - É andar por aí.)

...Amigos convém pra não irmos além...
(- O que é além?
 - É mais adiante.)

...De um só querer bem...
(- Vamos cantar, agora?
 - Vamos!)

...Lições que não nos levam ao saber...

*Canção de Almir Sater e Paulo Simões.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Primavera Silenciosa

Kleber Galvêas: Primavera Silenciosa.
 
A primavera chega agora sem ser anunciada pelo regresso dos pássaros, e as manhãs, outrora preenchidas pela beleza do canto das aves, estão estranhamente silenciosas. (Rachel Carson, em Primavera Silenciosa)
 
Início de maio. Cheguei à Barra do Jucu debaixo de forte chuva. Depois de ter circulado por todo o ateliê mostrando as telas e contando histórias, o pintor Kleber Galvêas me deixou diante de uma gigantesca Primavera Silenciosa e foi buscar o jenipapo no quintal.
- É para uma pessoa que não conhece. É estrangeiro, eu disse, acariciando a fruta como a uma criança.
- Ah, sim. Diga a ele que os índios o utilizam para escurecer a pele.
- É verdade! E para tomar coragem, o que é que eles utilizam?
- Ah, aí tem que amarrar o camarada num toco e colocar por cima umas saúvas...
 
Galvêas é daquelas pessoas raras hoje em dia. Ao mesmo tempo que é capaz de manejar o pincel e delinear numa tela universos complexos e delicados, cheios de movimento e de sons, sai ao quintal, tira as sandálias para sentir a umidade da terra e vai nomeando cada uma das plantas que povoam a sua bela alameda:
- Esta aqui se chama amor juntinho.
- Ah, que bonito!
- Quer mais um jenipapo? Quer levar uma muda?
- Não, obrigada. É só para mostrar, mesmo. Não teria onde plantar.
- Então prove o licor.
- Aceito, sim... Hum, delicioso!
- Fui eu mesmo que fiz, com as frutas do quintal. Tome mais um pouco.
- Só mais um pouquinho, por favor! Tenho de dirigir até Vitória.
 
Maio se foi, impublicável. Raios e trovoadas vistos da cesta pelo macio jenipapo. Foi difícil resistir-lhe ao odor sem cravar os dentes na sua polpa úmida, mas a fruta tinha o seu destino. Em junho ergui na sala a pequena tela de Galvêas, um detalhe da grande Primavera... O jenipapo perdeu, para o entorno, metade da sua umidade. Impôs-se o silêncio. Julho:  a fruta começa a murchar. Agosto: quase esquecida em meio a um rio depressivo, o jenipapo é levado ao refrigerador. Vultos e rastros no corredor: nenhum pássaro.

Chega setembro e com ele a outra primavera. Floresceu a orquídea-bambu. O nosso jardim suspenso parece tocado pelos elfos. O jenipapo é retirado do refrigerador no primeiro degelo. Semelha agora uma pedra - escuro e enrugado. Não se suspeita mais nenhuma das suas conhecidas propriedades. Célia enseja lançá-lo no lixo. Não permito: preciso olhar para ele todas as manhãs, assim que desperto. Afinal, um dia acariciei essa fruta como a um filho. Vejo-o duro e seco, sem cheiro, inerte. Noto agora que também ficou mais leve, muito leve, praticamente inefável.

Poderia encerrá-lo num vidro com formol, à moda dos antigos laboratórios de botânica. Ou então mergulhá-lo no álcool, a ver se dá ainda um bom licor, mas temo que, apesar das árduas temperaturas a que foi submetido, uma bactéria qualquer tenha se desenvolvido nas suas entranhas e aguarde somente o momento de vir à tona, espalhando-se por um outro corpo, mais úmido e caloroso - o meu corpo. Talvez o melhor fosse mesmo jogá-lo logo no lixo - a Célia quase sempre tem razão -, mas por ora quero olhar para ele, sentir o seu peso se esvaindo, a leveza enfim retornando.

A leveza - lenta e definitivamente - retornando.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Vida 2

- Mãe, quando a vida acaba as crianças podem mandar nelas?
- O quê, minha filha? Não entendi...
- Quando é que as crianças podem mandar nelas?
- Quando elas crescem, ficam adultas.
- Ah... Quando elas ficam adultas acaba a vida!

domingo, 9 de setembro de 2012

nomes

Salvador Dalí: La Navire.
 
você
não se preocupe
eu
é só um modo de dizer

sábado, 8 de setembro de 2012

romance egoico

Arthur Bispo do Rosário: Cama de Romeu e Julieta.
 
enfim

bons modos

Frida Kahlo: Venadito.
 

O amor tá quase mudo
Minha voz também
Cruel é isso tudo
(Sérgio Sampaio)


         a maldade-----------------------------é a mais concreta------------------------expressão da dor

   a mais completa maldade------------é sempre um bom modo--------------de livrar-se da dor
 
          quanto mais dor---------------------------mais má----------------------------------------a maldade

   e ninguém tem culpa------------------------nem desculpa-----------------------------------------------

no início era

rasguei queimei devolvi

vi-o na rua
comendo coxinhas

engordou bastante

visivelmente infeliz
cada vez mais infeliz

infeliz

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Férias na vovó

Tapetes. Foto: Francisco.
 
- Você tem saudade de casa, Flora?
- Não, eu tenho saudade daqui!

Elementar

- Por que você se mexe tanto, meu filho?
- Porque eu estou vivo!