Kleber Galvêas: Primavera Silenciosa.
A primavera chega agora sem ser anunciada pelo regresso dos pássaros, e as manhãs, outrora preenchidas pela beleza do canto das aves, estão estranhamente silenciosas. (Rachel Carson, em Primavera Silenciosa)
Início de maio. Cheguei à Barra do Jucu debaixo de forte chuva. Depois de ter circulado por todo o ateliê mostrando as telas e contando histórias, o pintor Kleber Galvêas me deixou diante de uma gigantesca Primavera Silenciosa e foi buscar o jenipapo no quintal.
- É para uma pessoa que não conhece. É estrangeiro, eu disse, acariciando a fruta como a uma criança.
- Ah, sim. Diga a ele que os índios o utilizam para escurecer a pele.
- É verdade! E para tomar coragem, o que é que eles utilizam?
- Ah, aí tem que amarrar o camarada num toco e colocar por cima umas saúvas...
Galvêas é daquelas pessoas raras hoje em dia. Ao mesmo tempo que é capaz de manejar o pincel e delinear numa tela universos complexos e delicados, cheios de movimento e de sons, sai ao quintal, tira as sandálias para sentir a umidade da terra e vai nomeando cada uma das plantas que povoam a sua bela alameda:
- Esta aqui se chama amor juntinho.
- Ah, que bonito!
- Quer mais um jenipapo? Quer levar uma muda?
- Não, obrigada. É só para mostrar, mesmo. Não teria onde plantar.
- Então prove o licor.
- Aceito, sim... Hum, delicioso!
- Fui eu mesmo que fiz, com as frutas do quintal. Tome mais um pouco.
- Só mais um pouquinho, por favor! Tenho de dirigir até Vitória.
Maio se foi, impublicável. Raios e trovoadas vistos da cesta pelo macio jenipapo. Foi difícil resistir-lhe ao odor sem cravar os dentes na sua polpa úmida, mas a fruta tinha o seu destino. Em junho ergui na sala a pequena tela de Galvêas, um detalhe da grande Primavera... O jenipapo perdeu, para o entorno, metade da sua umidade. Impôs-se o silêncio. Julho: a fruta começa a murchar. Agosto: quase esquecida em meio a um rio depressivo, o jenipapo é levado ao refrigerador. Vultos e rastros no corredor: nenhum pássaro.
Chega setembro e com ele a outra primavera. Floresceu a orquídea-bambu. O nosso jardim suspenso parece tocado pelos elfos. O jenipapo é retirado do refrigerador no primeiro degelo. Semelha agora uma pedra - escuro e enrugado. Não se suspeita mais nenhuma das suas conhecidas propriedades. Célia enseja lançá-lo no lixo. Não permito: preciso olhar para ele todas as manhãs, assim que desperto. Afinal, um dia acariciei essa fruta como a um filho. Vejo-o duro e seco, sem cheiro, inerte. Noto agora que também ficou mais leve, muito leve, praticamente inefável.
Poderia encerrá-lo num vidro com formol, à moda dos antigos laboratórios de botânica. Ou então mergulhá-lo no álcool, a ver se dá ainda um bom licor, mas temo que, apesar das árduas temperaturas a que foi submetido, uma bactéria qualquer tenha se desenvolvido nas suas entranhas e aguarde somente o momento de vir à tona, espalhando-se por um outro corpo, mais úmido e caloroso - o meu corpo. Talvez o melhor fosse mesmo jogá-lo logo no lixo - a Célia quase sempre tem razão -, mas por ora quero olhar para ele, sentir o seu peso se esvaindo, a leveza enfim retornando.
A leveza - lenta e definitivamente - retornando.