Assim que morreu o ator mexicano
Roberto Bolaños, recebi pelo Whatsapp essa ilustração comovente e graciosa em
que o Chaves, alado e coroado feito anjo, com seu suspensório mal ajambrado e levando
ao ombro a trouxinha de roupas na ponta de uma vara, chega aos céus no seu
passo inseguro.
Um certo punctum, como aquele pelo qual Roland Barthes declara ser atraído
em certos registros fotográficos, imediatamente me sequestra. O bracinho torto,
findando na mão curiosamente afastada para longe do corpo, imita o ângulo
típico das crianças muito magras.
Num semigesto que à primeira
vista parece antinatural, a mão pende para o lado inverso daquele em que costuma
descansar, opondo-se portanto ao repouso e ao recolhimento do eu, que por sua
vez se liga à quietude, às necessidades satisfeitas e à vida contemplativa.
O gesto revela a inquietude do insatisfeito,
do que necessita e solicita, mas, de maneira curiosa, também sinaliza o ato de
voltar-se para o outro, de percebê-lo e, por fim, revelá-lo, no instante mesmo
em que se revela.
Esse outro, já do lado, envolto
pelas nuvens do desconhecido, é o senhor Madruga, a cujo gesto chamativo, como
num balé involuntário, o contra-gesto do Chaves parece, sutil, ritmada e
inescapavelmente, tentar resistir, num apego talvez a esta miséria de cá, que, apesar da indignidade, ao
menos já é sua conhecida.
Mesmo para quem não crê no céu
como estágio futuro, e sabe ainda estar distante o tempo em que a possibilidade
de habitar outras partes do universo nos livrará da nossa atual condição humana
de habitantes da Terra, conforme a previsão de Hannah Arendt, mesmo e
principalmente para nós, que desejamos a redenção para os pobres, tanto quanto
para aqueles que foram abandonados pelos pais e/ou pelo Estado, para nós mesmos
a imagem é reveladora, já que, ao fundo, espera pelo Chaves o Senhor Madruga, o
que, de maneira ambivalente, se por um lado dá a ideia de companhia e proteção
àquela criança desamparada, também ameaça com a clara continuidade da situação
de incompreensão e violência representada no seriado pelo próprio Madruga, esse
outro exemplar da escória humana, quase tão miserável quanto o menino que dorme
no barril, contudo portador de duas qualidades que este não tem: a casa
(alugada, é verdade, e sempre em débito) e o poder de adulto (embora
desempregado, mal alfabetizado e por isso mesmo menos respeitado que o Senhor
Barriga e o Professor Girafales, aquele dono do cortiço e este último um propagador
de conteúdos que, a um tempo em que os propaga, da maneira mais tradicional e
tediosa possível, o que torna seu conhecimento pouco significativo e mesmo
motivo de zombaria, reproduz também, dentro da sala de aula, todos os degraus
hierárquicos que de maneira mais, ou menos sutil, informam, lá fora, as
relações entre aquelas crianças e aqueles adultos).
Ao fundo das nuvens sobre as
quais se encontram as personagens, surge uma luz verdadeiramente terrível, e
que se torna tanto mais terrível porque é atraente e promissora. Porém o fato
de ser o Senhor Madruga, mais uma vez, o “guardião” do Chaves, enche a cena de
um atavismo que beira o cinismo desesperado – ou o desespero cínico. O braço do
Senhor Madruga acena, literalmente, com a ameaça de continuidade, com a
supressão da única saída que a saída para/pela morte ainda prometia
proporcionar.
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