Primeiro foi a infância, longa
feito uma noite escura...
Quando foi despertada, na caixa
de sapatos, ao som do próprio choro, dizem as péssimas línguas, tinha nos
dentes os restos sugados da fralda que lhe deixaram como peça de herança. Retorcida
sobre o tronco para sugá-la, era como se tivesse dado à luz a si
mesma. Mãe não havia; pai seria o Tempo.
No rastro do primeiro engatinhar,
um observador mais atento via o contorso de um bicho raro, promissor habitante dos
ermos, desses que da escassez da água jamais se ressentem.
E a criatura trazia nas entranhas
um pacote, o seu tempero era o paradoxal, tudo misteriosamente presente antes ou desde a pequena caixa fria,
o anti-berço de ouro forjado (ironicamente?) no papel dourado projetado para os
embrulhos caros dos melhores presentes daquele Natal. Dali também lhe viria a única outra herança da errança, o epíteto "Berço de ouro", que no entanto não lhe restaria na lápide, e que nem mesmo dará nome a esta narrativa.
Depois, cada requebro de fraqueza
que lhe davam os joelhos, sutil, ela fazia reverberar pelas coxas acima, subir
pelas ancas e ir descansar nos ombros, onde morria aos poucos, porém bem
aproveitado, intuitivamente, como doce massagem e afago da solidão.
Assim também, graças a um jeito
de corpo, processava, diariamente, o alimento que lhe caía nas mãos, e que era,
invariavelmente, em quantidade muito maior ou muito menor que aquela que de
fato necessitava.
No primeiro caso, armazenava; no
segundo, ruminava até a chegada da próxima remessa.
Ora eram os modos de uma cobra
exausta, que relaxa enfim de sua lenta luta e chocalho, a cada vez que o ventre
se acha saciado; ora era um boi fatigado, que longas horas sem fim passa a retemperar
o quimo do pregresso na sua íntima caldeira de ácido.
Em breve os dedos do povoado se
esticariam na sua direção, se por nada mais, porque ela andava, e sorria e
comia e rastejava como quem vai ao fim do mundo, onde ele é feito de massas e carnes
e doces em barras que farturam pelo caminho, entupindo as frestas, apertando a
glote dos comentes e, mais ainda, a dos que não comem...
Um dia porém – davam-se férias nesta
parte do globo – acordou cedo e com enorme sede de entornos. Em parte, era como
se seguisse dormindo e sonhando com amplas fraldas desfraldadas. O pé roliço
foi saindo de sob o edredom, a perna se dobrou lenta, pesada, redondamente. Ela
torceu o corpo sobre si mesma e, com uma mão firmemente assentada sobre o
colchão e a outra se erguendo no ar feito um branco morcego obeso, deu um pequeno
impulso e sentou-se ao pé da cama, suando como a mucama do Sísifo.
Erguer-se, agora, era um segundo
projeto.
Quando alcançou enfim a tomada,
já o receio de ver-se à luz da lâmpada amarela se ampliara... O que ela, num repente, desejava,
com uma força nunca antes pressentida, era sugar para dentro de si a tomada, o fio, a
lâmpada - e a luz. Findo o processo, caiu de quatro sobre o grosso tapete de
pelos duros que cobria parte do assoalho, sendo como que arrastada pelo
desejo incontrolável de engoli-lo também.
Achegou a cabeça mais perto da borda e,
erguendo-a na densa poeira que pairava na altura do rodapé, abocanhou de vez a
ponta, que súbito desceu quadrada, e somente depois, com o aumento da deleitosa
voluptuosidade, foi entrando goela abaixo facilitadissimamente.
Como serpe que devora uma presa
maior que o seu próprio corpo, foi pondo o tapete para dentro aos solavancos
involuntários da glote, até que naquele cânion desapareceu a última franja peluda.
Descansou uns longos minutos em
torno da nova, vitoriosa cratera, que semelhava um corte quente, feito a frio na
frouxa carne assolada da criatura. Gotículas de magma saltavam incontroláveis.
Aquele, um dia, foi um belo
tapete.
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