A mentira é a última que morre.
O Aboio está de volta. É o mesmo, porém diferente. Como espaço de escrita que é, volta a servir de desaguadouro a tudo o que me encanta, ou, pelo contrário, me apavora. Depois de tantos anos de afastamento, eu mesma me desreconheço nas postagens mais antigas. Os amores são outros, as causas são outras, é outro o país.
domingo, 25 de agosto de 2019
sábado, 17 de agosto de 2019
domingo, 4 de agosto de 2019
segunda-feira, 8 de julho de 2019
Bom dia
Ontem, por primeira vez, fizemos churrasco no apartamento. A fumaça se espalhou por todo lado e, de repente, sem pejo, se podia fumar em qualquer canto.
Os meninos jogaram bola na sala, nos quartos, no corredor. Crianças sempre ficam felizes com a desordem. Suspeitam talvez de tanta ordem corrente, dia após dia, dentro de quatro, de oito, de doze paredes.
Só o bebê não conseguiu relaxar, em meio a tanta novidade.
Lá fora, os carros seguiam buzinando, mesmo em pleno domingo. Afinal, que é que faz um domingo pleno? Pode ser que seja o futebol, ou a cerveja. Ou esquecer-se, num átimo, do mundo do trabalho. Ou de que o domingo é a prévia da segunda. Ou que ele também se repete, monocórdio, fechando e abrindo sempre duas longas semanas... de trabalho...
Tentar esquecer-se do trabalho é também um pensamento sobre o trabalho.
Enfim, ninguém estragou o churrasco com assuntos assim. Em meio a torresmos, cachaça e pagode, quem falaria sobre o trabalho? Uma pequena parte da pilha de processos por julgar, levemente embebida em óleo de soja, acendeu as piras para a picanha, sem sequer interferir-lhe no gosto. A tarde fluiu lindamente. As crianças tiveram seu sorvete, picaram cebolas para o vinagrete... Depois, desenhamos com bacon nas paredes e elevamos a música ao volume mais alto.
Assim como faziam nossos pais, servimos sangria a cada um dos pequenos, que dormiram cedo, sonhando já com férias, como fazem os adultos, acordados.
Apenas o bebê não pensa ainda em férias, em processos, em semanas, em falar ou não falar de trabalho.
O carvão somente nos demandou o seu tanto. A cerveja acabou várias vezes, e várias vezes foi reposta, a partir do bar da esquina, onde o santo Wagner cuida para que nunca nos falte o essencial.
Terminada a grande farra interminável, tínhamos fumaça por espantar, gordura no chão, pratos e copos, papéis por representar. Segunda feira vem a diarista e então nos esquecemos, definitivamente, de que a parte da vida que esquece o trabalho é, também ela, trabalho. Esquecemos que ambas as duas se retroalimentam. Esquecemos todo pensamento paradoxal e voltamos, limpos e leves, ao mundo do trabalho. O nosso trabalho. O trabalho nosso para o outro. O outro do nosso trabalho.
Durmo pesado, a partir de orgasmos plurais.
Pela manhã, o companheiro ainda em pelo, cabelos aos cachos, desperta com hálito quente, semelha um animal que busca a sua toca no meu corpo. A vida, do nada, parece estranhamente em ordem, em meio a guradanapos espalhados pelo chão, respingado de óleo e ladrilhado de sal grosso.
Saio para a rua bem disposta. Apenas fecho a porta por trás de mim e o vizinho olha da janela com a cara amarrotada e me aponta para a cabeça duas arminhas simuladas pelos dedos das mãos.
- Bom dia!
sexta-feira, 5 de julho de 2019
quarta-feira, 26 de junho de 2019
um corpo
Para o Hamison
pela rua,
entre canteiros
e asfalto, corre
um corpo de vantagem
por mais palpável
que se faça
a sua imagem,
sob roupas e bolsas
perfumes, saltos,
maquiagem,
sorrisos, olhos
e gritos,
sonhos e planos,
chantagem,
um passo, o salto
na praça, no beco, ponte ou baraço
e valsa a valsa com o nada
na celestial pastagem.
domingo, 16 de junho de 2019
Pão caseiro
Primeiramente, é preciso que o fermento seja vivo.
A massa deve ser trabalhada dia após dia, delicadamente no início, para que esteja suficientemente macia quando chegar o momento do corte. Não é bom, no entanto, que amoleça demais, para não escapar entre os dedos durante a manipulação. Se você se demorar muito nessa fase, é possível que não consiga, quando necessário, removê-la dos dedos com facilidade.
Deixe o recheio para inserir no dia de assar. Um dos segredos (diz-se quase mistérios) de um pão assim é não revelar nunca antes a guarnição. Quando se trata de um pão de Natal, há quem chegue a guardá-la na casa de um amigo. Assim, se estiver preparando um pão de nozes, anuncie pão de passas, e vice-versa.
A farinha branca, proveniente dos trigos ainda verdes, são mais frágeis e suscetíveis, aderem ao movimento da mão e darão excelente resultado. Sob forte manipulação, darão mais que pães: podem resultar em ricas pizzas e, quem sabe, com paciência e um tempo maior e mais sutil de fermentação, num bolo surpreendentemente saboroso e que pode render bastante.
Não é má ideia ir provando sempre um pouquinho, para sentir a firmeza da massa.
O único ingrediente raro dessa nossa receita é a paciência.
No período final será bom, antes de levá-la definitivamente ao forno, que se afastem a família e os amigos, para que ninguém mexa na massa, sob pena de desandar o ponto longamente trabalhado.
Pode ser que na última etapa a massa pareça murcha, crie manchas ou bolhas. As manchas são o resultado da sova, e é natural que surjam com algum retardo. É este o momento certo, e não deve ser adiado, para o corte e o assamento.
Agora, os últimos preparativos: certifique-se da temperatura do forno. Unte bem a forma com óleo e farinha, para que não grude, assim não ficará com aparência de pão sovado.
Para a assagem, não são necessários mais que vinte minutos de forno, a não ser que você prefira uma massa mais morena. Nesse caso, é preciso estar atento para o risco, então, de que passe do ponto.
Depois de assada, deixe esfriar por umas horas, antes de chamar os comensais.
Bon appétit!
quinta-feira, 13 de junho de 2019
quarta-feira, 12 de junho de 2019
Angu de ossos
Primeiro se preparam os ossos, retirando-se todo o sangue e os restos dos filamentos de veias e nervos - e não precisa ser um processo consciente.
A ossada pode proceder de qualquer animal, de qualquer tipo, e, às vezes, nem mesmo de um animal.
Na maior parte das vezes, os ossos foram desenterrados, mas não se sabe.
A camada de ossos deve ficar sempre bem escondida. Deve ser como se um cachorro tivesse tentado esconder esses ossos. Isso é parte fundamental da receita.
Em hipótese alguma se deve olhar para o angu e ver um dedo ou uma ponta de joelho escapolindo da pasta amarelada - especialmente pontas de pé, dedos e cotovelos. Essas partes jamais devem aparecer.
Por cima da camada de ossos, arruma-se cuidadosamente o creme - denso - de fubá cozido.
Nosso angu deve ser preparado com um pó sempre novo, renovado.
Existem fubás mais escuros, amarronzados pela ação do tempo, ou porque se misturou muita coisa ali. Existe um fubá em que foi misturado, intencionalmente, um pouco de coloral, para disfarçar a palidez do milho. Muita maisena resulta numa liga mais clara e forte, mas não favorece o paladar. Melhores mesmo são os pré-cozidos, esses que se vendem em pacotes de meio quilo, de diversas marcas.
É importante lembrar que meio quilo de fubá resultará numa cama de ossos agigantada. Portanto, seja cônscio: se não tem experiência com angu de ossos, cozinhe por partes, um pouco de cada vez, e vá juntando numa caminha à parte.
Mantenha a família distante nessa hora.
Mantenha a família distante nessa hora.
Não é um prato que demande muito tempero. No Espírito Santo, os descendentes de italianos preparam a polenta apenas com água e sal. Se você tempera, é angu à baiana. O angu à mineira não leva nem mesmo sal, e não há ossos que esconder ali.
Que ninguém nos pergunte se o angu pode ser feito previamente.
Aliás, se os ossos têm existência prévia, o angu é feito para escondê-los. Nunca se ouviu dizer que alguém gerasse ossos para pôr sob o angu.
Não é porque há angu, que haverá ossos. E vice-versa.
Aliás, se os ossos têm existência prévia, o angu é feito para escondê-los. Nunca se ouviu dizer que alguém gerasse ossos para pôr sob o angu.
Não é porque há angu, que haverá ossos. E vice-versa.
Crianças devem ser avisadas sobre o recheio, porque o nosso prato, obviamente, semelha uma armadilha.
É muito importante que, por fora, a aparência seja sempre a de angu: mole e suave.
Pode-se enfeitar com folhinhas de coentro. Alguns preferem arruda.
O angu de ossos será sempre servido quente, muito quente. Porém, às vezes, será devorado frio, muito frio.
Serve bem a duas, dez ou duzentas pessoas.
Pode-se enfeitar com folhinhas de coentro. Alguns preferem arruda.
O angu de ossos será sempre servido quente, muito quente. Porém, às vezes, será devorado frio, muito frio.
Serve bem a duas, dez ou duzentas pessoas.
Bon appétit!
segunda-feira, 10 de junho de 2019
a falta
não é tua
a falta
que falta
a falta
que faz
e estala
os ossos
do abraço
é do meu
o que foi
dado
tomado
não volta mais
terça-feira, 23 de abril de 2019
a flor
em segredo
nem se perceba
a flor se forma
que seiva
por que veio
por que veio
a dor transforma
repente aberta
recolhe-se
e colhe
a dor
a dor
a mor
a morte
segunda-feira, 18 de março de 2019
Poética
O livro obrigatório, indispensável a todos os alunos, mestrado e graduação, é a Poética, de Aristóteles. Quando estudante do mestrado (ou da graduação), também eu fiz a minha resenha dele. Uma resenha admiravelmente clara e concisa, mas que, paradoxalmente, é como se não existisse. Explico: se a disponibilizo aos meus alunos, temo que se acomodem a sua clareza e concisão e não realizem a sua própria leitura do livro. Por isso não a forneço. Expus o problema a um amigo, que me aconselhou cedê-la a eles apenas depois de comprovada a leitura dos originais. Porém, tendo o aluno lido o livro, de que lhe valeria a tal resenha? Por outro lado ainda, como é que o jovem estudante comprovaria ter feito uma leitura do livro, se não por meio da realização de uma resenha, trabalho que, logicamente, dispensaria o meu? Assim, não sendo mais eu estudante, no sentido de ter que ler e resenhar a Poética, de Aristóteles, o fato de um dia tê-lo sido - e feito - de nada mais me serve. Nem aos meus alunos.
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