quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O andarilho na Ilha do Boi


O andarilho foi saindo lentamente da ilha em direção à cancela da entrada: mochila às costas, cabisbaixo, os cabelos levando de lembrança uns gravetos de hibisco...

Fiquei pensando sobre o que o teria atraído ao pequeno paraíso hermético da ilha de Vitória. Uma ilha dentro de outra não é mesmo algo fácil de se imaginar.

Mas ela é linda. A natureza no final da Praia da Direita parece estranhamente intocada. Numa capital, uma prainha quase sempre deserta, com peixes e algas, e grandes pedras que se pode percorrer... É verdade que, a depender do vento, o minério de ferro escurece as areias, mas os peixinhos lá estão, adaptáveis, e ostras em abundância.

O andarilho deve ter se informado previamente sobre a beleza da ilha, num site talvez, acessado de uma lan house próxima à rodoviária obscura em que desembarcou...

Acompanhei durante alguns segundos, pelo retrovisor, esse representante de uma espécie que eu já imaginava extinta. Há quanto tempo não via um mochileiro! Magro, a pele escurecida, os cabelos longos e mal cuidados pareciam serpentes sedentas, as roupas vinham desbotadas de tanto sol...

Mas a cabeça ia mais baixa que o normal. Aquela curvatura exagerada do pescoço me incomodou. A opressão das casas gigantescas, escondendo sob toneladas de cimento e vidro o que deve ter sido um dia um belo monte coberto de restinga seria razão para que se inclinasse tanto alguém que já carrega nas costas tantas paisagens?

De repente começaram a medrar, de vários pontos, as motos com homens no uniforme vermelho e cinza da empresa de vigilância. E vieram fechando o cerco em torno do rapaz como se tocassem uma rês perdida, tendo por aboio o barulho irritante dos motores, algo que tinha de incomodar mais os moradores que a presença esquálida do rapaz, pensei.

E ele veio saindo devagar, aparentemente ileso. Embora a cena já não me parecesse inédita, desta vez me chocou o erro de cálculo: que ameaça poderia representar às fortalezas de cerca elétrica o rapaz levando às costas uma mochila maior que ele? Depois entendi que a ingenuidade era minha. Ele enfeiava a ilha, era isso! Ele é aquilo em que, por um lance qualquer do acaso, um de nós pode rapidamente se transformar. É o espelho embaçado em que ninguém quer se mirar.

A cabeça baixa era como uma placa de aviso ambulante: É proibido - inclusive - olhar.

2 comentários:

  1. Lendo este texto me lembrei daquele do Kundera sobre as razões de se ter vertigem em lugares altos - mesmo que abrigados e seguros. Acho que vida de andarilho é super sedutora. Desprendido de qualquer poita, ele passa esnobando sua liberdade... quase irritante. Para mim, a estratégia melhor é não olhar. Evitar “o desejo da queda do qual logo nos defendemos, aterrorizados”. Terror de querer me tornar excessivamente livre.

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  2. Toda a segregação, miséria e exclusão sociais se originam, primordialmente, de um único ato: o não olhar. Portanto, tenho terror de ter terror de ser livre! Eu evito evitar o desejo da queda. Eu quero é mesmo cair, em queda livre, e correr todos os perigos, até ultrapassar o etéreo chão.

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