sexta-feira, 19 de março de 2010

Deus

Pablo Picasso: Dois personagens.

Tia Sandra:
- Vai dormir com Deus, minha linda?
Flora, apontando o queixo pra mim:
- Não, com a mamãe!
Tia Inês: E Deus existe, Francisco?
- Existe!
- Ah é? E ele fica onde?
- No livro.

quarta-feira, 10 de março de 2010

O elevador

- Vamos, Francisco, chame o elevador!
Em frente à porta de ferro:
- Elevador, vem cá! - Elevador!
- Rápido, Flora, ajuda a mamãe! Não podemos ir passear deixando a metade dos brinquedos no chão.
Mais que depressa ela vira a cesta, derramando o restante:
- Ponto!

terça-feira, 9 de março de 2010

O sol etc

Here comes the sun/ and I say/ it's all right!
(George Harrison)

Mais que argolas, ata-nos o ouro. Antes que os muros, separam-nos as ruas. Aquém dos sonhos, o pesadelo. Disfarçando as grades, os jardins. Dentro da gravata, sufoca-nos a própria voz, presa na garganta. Antes que a casa, a família. Antes que a família, seu nome. Antes do nome, a norma. Antes da norma, o medo. Para além do medo, paraliza-nos a certeza. Além da certeza, o fato. De termos medo e de estarmos certos... Muito mais que a desconfiança, aterroriza-nos a vontade. De dar e receber sem medo. Antes do projeto, inutiliza-nos a concepção... E vice-versa. Afora o álcool, embriaga-nos o desejo. Para além da loucura, a lucidez. É anterior às cadeiras que nossos corpos sejam curvos. Antes da cama, o cansaço. Antes do físico, ameaça-nos a mente. Antes da mentira, assalta-nos o olhar. Antes de ver, a vista. Antes da cegueira, o olho. Antes do outro, eu. Antes de mim, alguém, e antes dele, algo. Por fora das caixas, gavetas. Em torno delas, closets. Acima das marcas, imagens; acima e abaixo delas, os seres. Para todos os seres, palavras; cerceando o pensamento, palavras. Lavras, labutas, dias e noites, trabalho. Os idiomas se tocam, buscando imperceptivelmente a origem comum, mas os aviões cruzam os países por rotas traçadas, impalpáveis nos céus, inadiáveis. Os mitos, suas setas e epopéias, tudo o que nos acerta e marca... as cicatrizes, a cura... tudo sinaliza um destino inapelável, de erros e acertos - princípios que anunciam o fim. A casa cairá, sob tempestades e tsunamis. Seus habitantes morrerão no tempo, antes ou depois do previsto. A terra seguirá, mais quente, a sua órbita, talvez um pouco modificada. E esse sol, por fim, esfriará. Para sempre.

sábado, 6 de março de 2010

Do amor


Vale da Lua. Foto: Andréia Delmaschio.

Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Carlos Drummond de Andrade

Acabo de receber a curta mensagem de um leitor que afirma que, em todos os meus escritos, não aparece jamais a palavra amor. Não me surpreende a constatação em si, mas antes a busca inesperada de uma palavra (ou sentimento) em obra tão incipiente, de autora pouco conhecida.

De qualquer modo, o gérmen foi inoculado, e agora estou eu aqui, em busca do renegado amor. Pensei em começar vasculhando as gavetas todas deste apartamento em reforma: gavetas vazias, transbordantes, desordenadas... há uma inclusive que, no momento da compra, já herdei trancada e sem chave, e que confesso não ter tido ainda energia suficiente para abrir, por receio talvez do previsível, do mais provável vácuo. Enquanto ela permanecer fechada, posso imaginar lá dentro muitos tesouros, visíveis e invisíveis.

Em frente agora ao computador e tentada pelo hábito de contrariar afirmações peremptórias, penso em quantas páginas terei de revisar à cata das quatro letras - quanta teoria, quanta ficção... Editar. Localizar. Amor. Nenhuma ocorrência neste documento.

Lembro-me da caixa de correspondências. Editar. Localizar. Amor. Não.

Editar. Localizar. Que difícil palavra... Não a terei registrado mesmo? E por que será que nunca a escrevi? Será a sombra de um recalque? Nem mesmo em minúsculas, ou  sutilmente destacada em itálicos, como se tivesse migrado por conta própria para o meu discurso? Intuo que surgirá, num rompante, entre aspas, como se tivera tomado emprestadas as asas do cupido...

Editar. Localizar. Amor. Nenhuma ocorrência neste documento. Deseja continuar a pesquisa?

Procuro na cesta de postais, os amigos todos evadidos para a europa. O amor não consta. Olho as paredes rabiscadas ao acaso, com trechos de canções queridas... Amor, amor... Também não consta! Vasculho o armário de roupas, as camisas de eventos, as marcas das meias, calcinhas... Onde estará o amor, esse réptil rápido e rasteiro? Uma obra sem amor é como uma casa sem bíblia, proclamo alto, entre meus próprios risos frenéticos, enquanto passo os olhos pelas lombadas dos livros da estante. Amor, amor... cadáver sempre de outrem... relâmpago gotejando das íris em arco...

E as declarações secretas feitas ao vento, perdidas no crepúsculo? Também lá não estaria o amor? Procuro. Relembro. Corto, recorto, colo, edito... e o amor não dá as caras...

O blog, me lembro, o blog: escrita direta, espontânea... Editar. Localizar. Amantes. E o amor, e o amor, quase imploro, num sussurro solitário por sobre os posts... Revela-te, amor, em quatro minúsculas letras, declara-te!

Epígrafes! Quem sabe nas discretas epígrafes o amor não tenha ao menos se insinuado... Editar. Localizar. Também não! E os perfumes baratos, com títulos de romances? Não, o amor não se entrega assim tão facilmente.

E a tradução que um dia fiz de Borges? Não.

E os papéis restantes das viagens, esquecidos nos fundos da mala? Não estaria ali um amor sequestrado alhures, aguardando o momento de sua liberdade em terras estranhas? Não...

As brigas de amor, talvez... os desentendimentos... Também não.

A tevê! Ligo a tevê, cheia de esperanças e outros andrajos... Matéria sobre o desamor.

Abro a janela. Não há ninguém pichando o muro em frente... o amor está ausente das ruas...

Tento o catálogo médico, a guia de endereços, a lista de chamada... Nada. Nenhuma aluna chamada amor para este semestre - nenhuma ocorrência.

Cansada, triste, com os olhos vidrados e a cabeça latejando ainda com a afirmação do leitor, caminho já sem pressa para o jardim e sento-me em meio aos pequenos vasos de violeta, minuciosamente cuidados ao longo de anos. No mais viçoso deles desponta, ferindo a luz, uma primeira pétala coagulada. É quase hora de cerrar as persianas para evitar a invasão dos mosquitos. Parece que vai chover.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Cinco minutos de tevê aberta - no período da manhã

Pequena platéia aplaude de pé o roast beef fumegante apresentado pelo chef. Som de colheres de pau batendo em fundos de panelas. Zap. Dois participantes do reality show se abraçam, chorando copiosamente: foram premiados com trinta potes de sorvete. Zap. Um barraco desaba ao vivo do alto do morro, levado pelas fortes torrentes de água da chuva. A queda é acompanhada desde o primeiro momento, a estrutura de madeira ainda intacta. As tomadas são feitas de três diferentes ângulos, o que denota grande esmero na preparação do set de filmagem. Zap. A cantora repete efusivamente, e à exaustão, com trejeitos de cabeça e corpo, seu amor pelo filho. Zap. Uma águia sobrevoa um pico nevado, o sol despontando ao fundo. Vinte pastores evangélicos sobem uma ladeira, num subúrbio, cada um levando às costas um galão de água, que depositam sob um arbusto, junto com os pedidos de milagres escritos pelos fiéis. Zap. Uma moça e um rapaz vestidos de crianças mandam "beijos beijos beijos" para a audiência, afinando suas vozes. Zap. Em frente a um pôster representando uma paisagem européia, com ovelhas caminhando por verde campo, uma mulher dá ao pastor o seu depoimento acerca de como o poder de deus lhe teria arranjado emprego, pago as dívidas e comprado apartamento. Zap.