Vale da Lua. Foto: Andréia Delmaschio.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Carlos Drummond de Andrade
Acabo de receber a curta mensagem de um leitor que afirma que, em todos os meus escritos, não aparece jamais a palavra amor. Não me surpreende a constatação em si, mas antes a busca inesperada de uma palavra (ou sentimento) em obra tão incipiente, de autora pouco conhecida.
De qualquer modo, o gérmen foi inoculado, e agora estou eu aqui, em busca do renegado amor. Pensei em começar vasculhando as gavetas todas deste apartamento em reforma: gavetas vazias, transbordantes, desordenadas... há uma inclusive que, no momento da compra, já herdei trancada e sem chave, e que confesso não ter tido ainda energia suficiente para abrir, por receio talvez do previsível, do mais provável vácuo. Enquanto ela permanecer fechada, posso imaginar lá dentro muitos tesouros, visíveis e invisíveis.
Em frente agora ao computador e tentada pelo hábito de contrariar afirmações peremptórias, penso em quantas páginas terei de revisar à cata das quatro letras - quanta teoria, quanta ficção... Editar. Localizar. Amor. Nenhuma ocorrência neste documento.
Lembro-me da caixa de correspondências. Editar. Localizar. Amor. Não.
Editar. Localizar. Que difícil palavra... Não a terei registrado mesmo? E por que será que nunca a escrevi? Será a sombra de um recalque? Nem mesmo em minúsculas, ou sutilmente destacada em itálicos, como se tivesse migrado por conta própria para o meu discurso? Intuo que surgirá, num rompante, entre aspas, como se tivera tomado emprestadas as asas do cupido...
Editar. Localizar. Amor. Nenhuma ocorrência neste documento. Deseja continuar a pesquisa?
Procuro na cesta de postais, os amigos todos evadidos para a europa. O amor não consta. Olho as paredes rabiscadas ao acaso, com trechos de canções queridas... Amor, amor... Também não consta! Vasculho o armário de roupas, as camisas de eventos, as marcas das meias, calcinhas... Onde estará o amor, esse réptil rápido e rasteiro? Uma obra sem amor é como uma casa sem bíblia, proclamo alto, entre meus próprios risos frenéticos, enquanto passo os olhos pelas lombadas dos livros da estante. Amor, amor... cadáver sempre de outrem... relâmpago gotejando das íris em arco...
E as declarações secretas feitas ao vento, perdidas no crepúsculo? Também lá não estaria o amor? Procuro. Relembro. Corto, recorto, colo, edito... e o amor não dá as caras...
O blog, me lembro, o blog: escrita direta, espontânea... Editar. Localizar. Amantes. E o amor, e o amor, quase imploro, num sussurro solitário por sobre os posts... Revela-te, amor, em quatro minúsculas letras, declara-te!
Epígrafes! Quem sabe nas discretas epígrafes o amor não tenha ao menos se insinuado... Editar. Localizar. Também não! E os perfumes baratos, com títulos de romances? Não, o amor não se entrega assim tão facilmente.
E a tradução que um dia fiz de Borges? Não.
E os papéis restantes das viagens, esquecidos nos fundos da mala? Não estaria ali um amor sequestrado alhures, aguardando o momento de sua liberdade em terras estranhas? Não...
As brigas de amor, talvez... os desentendimentos... Também não.
A tevê! Ligo a tevê, cheia de esperanças e outros andrajos... Matéria sobre o desamor.
Abro a janela. Não há ninguém pichando o muro em frente... o amor está ausente das ruas...
Tento o catálogo médico, a guia de endereços, a lista de chamada... Nada. Nenhuma aluna chamada amor para este semestre - nenhuma ocorrência.
Cansada, triste, com os olhos vidrados e a cabeça latejando ainda com a afirmação do leitor, caminho já sem pressa para o jardim e sento-me em meio aos pequenos vasos de violeta, minuciosamente cuidados ao longo de anos. No mais viçoso deles desponta, ferindo a luz, uma primeira pétala coagulada. É quase hora de cerrar as persianas para evitar a invasão dos mosquitos. Parece que vai chover.
Acabei por encontrar amor as violetas melindrosas tão bem cuidadas....rs e uma paixão pela gaveta trancada.
ResponderExcluirEduardo
É isso! É assim. Ali mesmo...
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