sábado, 10 de abril de 2010

O túnel

Frida Kahlo. Eu sou o que a água me deu.


O túnel ligava Serra e Cariacica. As pessoas eram pagas (coisa de dois, três reais) para entrarem por um lado e recolherem pedaços que entregavam no outro, ao saírem. Eu entrei pensando: “Nessa vida temos de viver todas as experiências possíveis”. Então fui, por isso e não pelo dinheiro - o que me diferençava dos outros catadores, que tentavam ser rápidos, levavam muitas sacolas e já saíam com as partes de corpos humanos separadas: numa sacola só pulmões, na outra pedaços de pernas e assim por diante. Havia muitas crianças. Antes de entrar imaginei que me depararia com pessoas apáticas, anestesiadas pela desumanidade daquele trabalho, mas assim que pisei lá dentro notei que não havia indiferença. Estavam todos deprimidos, desesperados, a situação era duplamente, plenamente escatológica, fim do mundo. E o cheiro de carne humana apodrecendo, um rio de sangue correndo sob os pés... A atmosfera era irrespirável e eu estava prestes a desmaiar, no entanto não desmaiava. Quando pensava que morreria, achava uns orifícios na parede por onde respirava – sempre apenas o suficiente para não morrer. Era muita gente catando pedaços, quase não conseguíamos nos mexer lá dentro e, desde que se houvesse entrado no turbilhão, não havia mais como voltar, a não ser em uma das levas que caoticamente se empurravam em direção à saída. Ainda assim apanhei um bracinho de criança e coloquei na sacola de pano que trazia a tiracolo. Lá fora me acusaram de ter feito o trabalho errado: “A senhora segue para outra fila - trouxe parte de uma pessoa viva”.

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