Ipê no Lago Norte - Brasília. Foto: Andréia Delmaschio.
Nós somos os mortos. (George Orwell)
Deitada no caixão, mãos cruzadas no colo, a face lívida, parecia que as marcas dos anos tinham se apagado. Era como se o tempo, estancado para ela, tivesse levado consigo todas as sobras de seu longo trabalho. Ou como se as rugas que antes lhe sulcavam o rosto tivessem sido impressas ali previamente e correspondessem, ao contrário do que se pensa, aos eventos que ela ainda viveria, e não aos que já tinha vivido.
Fiquei pensando na criança que ela foi, na serra mais alta e fria do Espírito Santo, nascida durante a Primeira Guerra, na época em que açúcar branco só havia literalmente para remédio e os alimentos todos eram racionados, sob o medo do espectro das batalhas na Europa. Os pais deviam ser pessoas especiais, para que ela tivesse desenvolvido tão bom humor e aquela inteligência arguta em meios grandemente desfavoráveis: a moradia precária, a família inumerável, pré-métodos contraceptivos.
Foi ela quem ensinou um dia a minha mãe que só se morre quando se quer. Mamãe menina, apavorada diante do pato, rígido no fundo do poço: Por que ele morreu, por que ele tinha que morrer? E ela, do alto, o nariz comprido, a boca um risco na face: Porque ele quis, ora, ele não sabia que não podia chegar tão perto do poço? Mamãe ainda hoje afirma que só se morre quando se quer.
Entrei no quarto para escrever a nota biográfica que um neto leria na missa em sua homenagem e a roupa que ela usava no dia anterior ainda estava dependurada atrás da porta. Era certo que guardasse um calorzinho seu e aquele cheiro de rosas que ela tinha, um toque sempre macio para o olfato contrastando com os ossos pontudos que espetavam o corpo enquanto nos abraçava. Eu gostava de me jogar no colo dela, havia algo de ancestral naquele encontro. Não me importava saber que ela enlaçava em mim um pouco da filha caçula, morta anos antes.
Por entre as frestas das ripas, na parede do quarto escuro (devia ser bom dormir ali), um discreto filete de luz ia se deslocando para não deixar dúvidas sobre a passagem do tempo e, curiosamente, uma das crianças marcava sua trajetória com um lápis.
Lá fora se iniciava uma ladainha tosca, as caras obrigatórias da vizinhança igrejeira: lavaram a morta, vestiram-na, cobriram com flores. Agora cozinhavam: muitas panelas de frango e macarrão. Algumas pessoas eu pensei que não existissem fora das novelas de Jorge Amado: a moça morena, praticamente desconhecida, assumiu todas as funções: chorava e coava café. No minuto seguinte já lavava copos e depois servia pães com salame, de um modo hábil e maquinal que contrastava com os olhos úmidos e a face inchada.
De vários pontos do quintal brota a onipresente Bíblia. Os dedos grossos de lavradoras escorregam pelo índice temático, escolhendo trechos difíceis. Na leitura do salmo, uma das moças, ombros largos de carregar pesadas sacas de café, tropeça em pórticos, cálix, vindouras. Gagueja, mas não importa. Orações como o Credo, com seus apostos, têm as palavras emendadas numa litania entoada geração após geração e assumem um tom de música funesta. Nascem, crescem e encaminham uns aos outros ao jazigo dizendo palavras cujo significado não conhecem. Os pais levam as crianças ao velório, para garantir a renovação do ciclo. Os recém-chegados, entre eles adolescentes muito tímidos, procuram os familiares da morta para nos dizer que é a vida, que Deus sabe o que faz, que temos que ser fortes, que ela agora descansa em paz.
Uma fresta de luz - que sol escaldante o daquele dia! - oscilava sobre as mãos de vovó e a mim pareceu que ela movera o terço que lhe arrumaram entre os dedos. Talvez tenha mexido realmente.
Na missa na pequena capela, dita de corpo presente (quando morremos, o corpo de repente assume grande importância), tendo se atrasado o padre, um ministro anuncia no púlpito as últimas estatísticas: Poucos de nós vão direto para o inferno, poucos chegam ao paraíso, a grande maioria segue para o purgatório, onde terá a oportunidade de expiar as suas culpas. A igreja inteira escuta calada.
À minha frente, um São Marcos de olhar sonso ouve tudo condoído, enrolado para sempre em sua manta de gesso. Furtado no seu leão e sem nada poder fazer contra a morte decretada da palavra viva que um dia gritou, o evangelista de repente solta o ramo de flores secas que trazia enfiado num dos braços. Alguém mais parece ter visto.
De um lado os homens, caras duras, bigodes cultivados; do outro as mulheres, narizes aduncos, a pele branca de italianas manchada do sol da colheita.
Vovó, quieta, é a pessoa mais viva nos arredores.
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