quinta-feira, 31 de março de 2011

Nas mãos de Deus!

Michelangelo: Deus (detalhe de A criação de Adão).


Mesmo tendo avistado o meu carro, ele adentrou abruptamente a via principal, em que eu seguia, como quem corta uma nuvem. Depois seguiu surpreendentemente lento, parecendo ignorar que no outro carro seguia uma vida.

Diante do meu desespero para frear e desviar, ainda lançou um sorriso imbecil.

Parei-lhe tão próxima que as letras verdes do adesivo me arranharam os olhos: Nas mãos de Deus!

Ora, ele, se quiser, pode lhe entregar tudo. Eu, do meu lado, tenho que conduzir até o trabalho (um carro que comprei, não foi presente de nenhum Deus irresponsável, que dá veículos e carteiras nas mãos de débeis assassinos) e depois retornar a casa, onde reencontro meus filhos, que por sinal são bebês de proveta.

terça-feira, 29 de março de 2011

Vade retro!

Tenho saudades de quando se podia conversar sobre alguns temas pelo menos com os católicos, ditos então mais "abertos" que os religiosos evangélicos.

Quando comecei silentemente, sem que eu mesma me desse conta, a preferir empregadas que não fossem crentes, as católicas também começaram a ver o "inimigo" em tudo o que é canto e a chamar de bênção mesmo as desgraças que lhes aconteciam. Além de se assustarem com estatuetas africanas e, vez ou outra, com a voz do Dorival Caymmi...  "- Por que a senhora pendura na sala um quadro com uma moça tão feia, com um nariz enorme e essa cara de macumbeira!?". Fui olhar bem: a modelo do tal quadro poderia ter sido ela própria, tamanha a semelhança entre os traços! Arre! Vade retro!

Eu, que em minhas pregações (rs) proponho há tempos a solidariedade, também defendo o direito de escolha. Não dá é pra ser indiferente a pessoas que frequentam cotidianamente a minha casa; nem pra ficar ouvindo (e vendo) com cara de cordeiro a velha fábrica gospel gritando seus chavões antimetafóricos. 

Desde então prefiro as espíritas, com seus contos de fadas ensossos. Eu também faço os meus, embora não creia neles, e pronto: ficamos elas por elas. Essas ao menos reconhecem algum território para além do próprio umbigo.

Quando eu era criança, meus coleguinhas eram, muitos deles, encapetados. E uma bênção não era tudo e qualquer coisa; era algo raro, presente recebido diretamente das mãos de Deus. Hoje, até um pum que soltam é considerado uma bênção. Inimigo era alguém que não gostava de nós, ou de quem não gostávamos, e que nos prejudicava. Esses termos, entre tantos outros, podiam ser usados sem a ditadura da significação. Agora, se reclamamos que um menino é encapetado, chamamos o próprio Inimigo, e com maiúscula. "Não diga isso, irmã. Esse menino é uma bênção!".

Experimente porém dever dinheiro a um desses irmãos e logo ficará claro o que é que realmente importa para eles. No adesivo que ele colou no carro está escrito em letras gigantes: "Tire o olho grande que eu ganhei de Deus". Orgulho, ganância e ostentação já não são pecado - uma pena! E o mau olhado, que era coisa de católico, herdada dos orixás, faz parte agora do seu vocabulário invocatório.

Pronto! Basta o uso do termo africano, aqui, para me condenar ao fogo do Inferno. A menos que eu comece a dar dez por cento do meu salário para um templo monumental ali na reta da Penha, com estética de motel e dimensões de hipermercado, e tome um banho de descarrego para me livrar dos encostos resultantes dos despachos (todos termos que até há pouco só eram usados na umbanda e no candomblé, odiados ambos pelos evangélicos), beba a água do rio Nilo que os pastores trazem direto do Morro da Fonte Grande, participe da bênção dos duzentos, compre uma fronha abençoada e entre no templo com uma meia de cinco reais que vendem na porta.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Meu pequeno expressionista

 
Pintura de Francisco. Foto: Andréia Delmaschio.
Francisco tem composto curiosas telas multicoloridas, com seus lápis e giz de cera. Em mais de uma ocasião, ganhou dos meus amigos potes de tinta, mas o manejo dos pincéis ainda traz mistérios de delizadeza.

Ontem à noite, impressionada com a sua obstinação em preencher completamente a página em branco, mostrei-lhe, num livro de artes, um autoretrato de Rembrandt:

- Olha aí, meu filho. Um dia você pode aprender a pintar assim.

Ele olhou a gravura, muito atento. Ainda virou mais de uma página. Por fim me olhou conclusivo:

- Eu não quero pintar assim, mamãe. Eu gosto das cores.

domingo, 27 de março de 2011

Maldição

- Mãe, você sabe por que o príncipe caiu de cima da montanha?
- Porque a bruxa o amaldiçoou.
- Não! Foi porque a pedra caiu e ele estava em cima dela!

quinta-feira, 24 de março de 2011

Aprendendo a agradecer

- Francisco, vamos pra escolinha?
- Não, obrigado!

Após o telejornal

- Viu? Eu não morri queimada no caminhão!

Tendo assistido ao Corcunda de Notre Dame




- Mãe, se eu queimar um olho e arrancar um braço, eu viro um monstro maldito?

Furar a orelha

Van Gogh: Cabeças de girassol.

- Senta aí, mamãe, que eu vou furar a sua orelha. Eu vou te machucar, vai doer e você vai chorar!

Voar 2

Com um giz de cera na mão:

- Toma, mamãe! Desenha duas asinhas nas minhas costas, que eu vou voar!

terça-feira, 22 de março de 2011

Na selva

Fantasiando:

- Eu estou perdida no meio da seeelva... Quem vai me selvar?

Vestido novo

Gustav Klimt: Mada Primavesi.


Flora contente, no vestido branco, de lantejoulas:
- Eu vou parecer a chuva!

sexta-feira, 18 de março de 2011

No limbo



Uma amiga querida vendeu a casa para pagar o psicanalista. Foi morar no limbo, e sem a certeza das resoluções.

Descendente de antigos imigrantes, práticos trabalhadores de cujas durezas e rudezas  trago na pele a memória, eu, do meu lado, não consigo vislumbrar a possibilidade de priorizar sem dores ou temores o mero, incerto conforto espiritual, presente ou futuro, em detrimento ou mesmo somente em contraste imaginado com as demandas materiais.

Mas que segurança ou certeza de continuidade pode advir de, por exemplo, morar numa casa confortável, me pergunto então!

Das entranhas da racionalidade, de onde espio, não compreenderei, mas o corpo traz imediato a sua resposta.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Do medo

Certamente você já teve, alguma vez, a impressão de estar vendo um fantasma...

Digo melhor: você teve a impressão de estar vendo alguém e em seguida descobriu que não havia ninguém. Para um espírita, o momento seguinte é de contrição; para alguém que se autodenomina cético ou racional, é de busca de explicação - ou simplesmente de esquecimento.

(Sei bem que os espíritas detestariam essa meia distinção entre crença e racionalidade, mas não pretendo opor os dois elementos como meros excludentes. Minha suposta racionalidade - creio - não tem a ver diretamente (ou de modo dependente) com minha falta de fé no sagrado). Claro que não se trata de um caminho simples, o dessa explicação - o que me desobriga de tentar aprofundá-la.

Retomando: se você já viu "fantasmas", pode ser que não tenha sentido medo. No meu caso, trata-se de uma experiência tão antiga e corriqueira que hoje já não provoca, quase nunca, sentimento algum.

Estranho mesmo contudo é quando vemos alguém vendo fantasmas; quando sentimos que esse alguém sente medo. (Quantos de vocês se lembram de já ter tido essa experiência, pergunto de verdade, e não para conseguir um efeito retórico). Nessas ocasiões o "fenômeno" nos parece muito real. Aí sim conhecemos o verdadeiro pavor. Talvez a razão seja o fato de estarmos acostumados a duvidar bastante de nós mesmos, de nossas impressões equivocadas, enquanto que a presença de um intermediário confere fidedignidade ao acontecimento. Deve ser o mesmo princípio que rege a crença nas cartas psicografadas, o mesmo recurso que se utiliza na narrativa, no romance.

Uma coisa é quando aquele que parece ver coisas é ainda um bebê e não sabe falar. Ele aponta para um lugar, fixa os olhos, sorri... Os cristãos da ala alada dizem logo que ele está se comunicando com o anjo da guarda. Ninguém jamais afirma de uma criança em tão tenra idade que ela está tendo alucinações etc. Creio no entanto que os mesmos mecanismos imaginativos que o adulto, depois, relata, já existam, nas proporções que correspondem às experiências que o curto tempo de vida lhe permitiu, na primeira infância.

Já quando essa criança é um serzinho lúcido e sereno, com o qual convivemos diariamente, e que ainda não adentrou a famigerada fase do amigo invisível, podem nos assustar declarações suas como a que segue, e vindo de ninguém menos que a destemida Flora, levantando-se rapidamente, tranquila e curiosa, no lusco-fusco que envolvia a cama da qual muitas vezes me despeja, esteja claro ou escuro, para simplesmente ficar sozinha: "Quem é aquele ali, parado na porta?"

Meu susto maior, indisfarçável, é naquelas ocasiões em que me despertam aterrorizados com uma presença que só visitou a eles. Eu nunca pensei que pudesse sentir tanto medo... do medo!

No meio da noite passada, como em tantas outras, Francisco correu para a minha cama, e dessa vez a alegação era o medo do neném.

É que na Toy Story, em meio aos ensinamentos todos sobre a importância do uso do cinto de segurança, a insegurança à chegada do elemento novo, os ciúmes, a inveja e a violência, surge, na casa do garoto "psicopata" (assim o denominam os próprios brinquedos) que implode soldadinhos de chumbo e opera bonecas, realizando horripilantes transplantes entre partes dos objetos mais díspares, surge ali uma cabeça de boneca (o neném) incrustrada no corpo de uma aranha mecânica e descarnada que caminha pelo quarto.

A mim também a imagem pareceu assustadora.

Meu filho se aproximou correndo e pulou-me ao colo suando frio. Parecia procurar uma proximidade subcutânea. Foi como se o seu medo tivesse penetrado em mim através da pele, numa corrente transmissível feito uma doença. O que de ancestral havia em seu olhar parado, perdido em imagens que eu não podia alcançar, por um instante me convenceu da veracidade do pavor. Mais que isso, da razão da sua existência, e não é preciso dizer que, se existe o medo, é porque existe o horror, o horroroso, a cena horrível que o gera ou, em algum lugar, gerou-o um dia.

Foi assim que revivi as sensações que durante anos me perseguiram, de medo das sombras, das bruxas, das pessoas estranhas, medo do escuro, medo dos bichos, conhecidos e desconhecidos, medo da morte, de estar só, dos espaços abertos, dos espaços fechados. Etcétera.

Talvez o que, no dia-a-dia, nos garante que não tenhamos medo, seja a constante autoreafirmação de coragem e da inexistência daquilo que nos apavora. Difícil mesmo é negar aquilo que não sentimos, aquilo que passa por outra percepção que não a nossa.

segunda-feira, 14 de março de 2011

A barata

Parece que tivemos a mesma idéia, ela e eu. Ou então ela tinha sido atraída pelo escuro do closet e, quando acendi as luzes do quarto, veio saindo para o corredor, em minha direção, com uma cara de quem resmunga por se lhe ter lançado no rosto o clarão.

Foi a única coisa que tive tempo de imaginar antes que um arrepio me percorresse o corpo inteiro.

A primeira idéia que me passou pela cabeça foi a de chamar o Francisco para que a eliminasse. Foi muito rápido, então me lembrei de que ele só tem três anos e, como de outras vezes, corri para o quarto ao lado e fechei a porta sobre mim. 

Em algumas ocasiões já dormi na cadeira do escritório ou no sofá da sala por causa de uma barata, mas acontece que da última vez que uma delas entrou em minha casa, eu ainda não tinha filhos.

Agora a simples idéia de que a cascuda, com suas garras renitentes, pudesse percorrer as costinhas macias e indefesas, me encheu de uma raiva que venceu o pavor.

Corri para a despensa e retornei armada. Morreu a golpes silenciosos e certeiros de uma vassoura velha e enfim foi lançada no asfalto, da janela do oitavo andar.

Como em outras situações limítrofes, não houve jeito de que não me imaginasse olhando de fora, durante a realização mesma da cena toda: via a máscara de guerra que foi preciso traçar no rosto para empreender a batalha contra o medo e o nojo, os pêlos eriçados nos braços e os silenciados urros guturais transformados em surdas interjeições para alimentar o feito.

Algumas vezes é preciso matar.

sábado, 12 de março de 2011

Não acorde a mamãe

Gustav Klimt: Reminiscências passageiras.



Há algumas semanas iniciei a campanha "Não acorde a mamãe no meio da noite!"

Flora dificilmente desperta em meio a suas dez horas de sono profundo, a não ser por calor ou - muitíssimo mais raro - pesadelo.

Já Francisco começou, faz uns três ou quatro meses, a acordar com frequência, ora com medo do monstro, ora da bruxa, ora do lobo mau. Pensei que fosse repetir a história de pavor que me perseguiu por longos anos, na infância, mas não: seu medo já declina a olhos vistos, e foi ele mesmo quem o declarou em alto e bom som, no início da semana:

- Eu pensei que o chapéu fosse um monstro, porque no escuro ele vira um monstro.

- Não, meu bem, no escuro ele parece um monstro.

Durante muito tempo no entanto chegava correndo a minha cama, noite sim, noite não, suando e tremendo, fugindo dos seres imaginários a que continuamos submetendo as crianças com as nossas histórias diurnas.

Nessas ocasiões me chamava à atenção o fato de, mesmo vivenciando terrivelmente o seu pavorzinho, ela trazer consigo seus dois travesseiros, atendendo a um pedido que fiz e que me poupava de ter de ir até o seu quaro, depois, buscá-los, um para sua cabeça, como ele gosta, e outro para cercá-lo na minha cama, evitando que caísse no chão durante o sono.

Então andei pedindo algumas vezes: "- Gente, não me acorda não! Quando vocês (generalizei com o plural para não criar uma dissidência na amizade tão bela dos dois) acordarem com medo, no meio da noite, vejam a luz acesa ali no banheiro, fechem os olhos e durmam de novo. Está bem, Flora? Esta bem, Chico? A mamãe está no quarto ao lado. O lobo mau só existe nas histórias. Eu nunca vi um lobo aqui dentro de casa."

- Combinado?

- Combinado!

Hoje de madrugada acordei com uma conversinha em voz baixa vindo do quarto deles (meu sono é levíssimo):

- Não acorda a mamãe não, tá? Fica quieta e dorme de novo! Não tem lobo aqui em casa. 

Ela calou o resmungo inicial, mas eu já tinha sido comovida:

- O que que é, Francisco?

- Mamãe, eu estou com sede e a Tóia quer mamadeira.

Levantei incontinenti. Com sede ninguém não brinca. Servi a água e as mamadeiras de iogurte (no meio da noite não ligamos o liquidificador, tudo já combinado). Agora viria a parte que mais me tira o sono: ficar segurando a mão da Flora até que durma de novo; e por mero capricho de carinho dela, que nunca demonstrou ter medo algum de escuro, ou de ficar sozinha - nada.

Então me aproveitei do poder recém-conquistado, que ouvi ecoando nas palavrinhas madrugueiras, e lancei, pela primeira vez:

- Agora mamãe vai voltar para a cama. Vocês tomem as mamadeiras, coloquem ali no armário e voltem a dormir. Boa noite!

Fui. Demorei a conciliar o sono, tentando adivinhar o desfecho da cena, mas não podia retornar ao quarto deles para confirmar se dormiam, com o risco de os despertar com a minha presença.

Dormimos todos. Amanheceram sobre as mamadeiras e grandes manchas de iogurte.

Bairro de Fátima

Acordando na cadeirinha, no banco de trás do carro:

- Que lugar é esse?

- É o bairro de Fátima!

- Bairro de Fátima?

- É, por quê?

- Então é aqui que mora o Batman!?

- Uhhh!

quinta-feira, 10 de março de 2011

Da memória

  
Frida Kahlo: Moisés, nacimiento del héroe.


Eu conheço várias pessoas que repetem sempre a mesma história, a mesma anedota, e especialmente aquele caso da sua infância, adolescência ou juventude que lhes parece picante ou enobrecedor.

Confesso que quando comecei a percebê-lo, era uma atitude que me causava profundo incômodo e impaciência. E por anos convivi com alguém que me oferecia sempre a mesma pérola gasta e a quem, por consideração, no início, e depois por curiosidade científica, fui deixando que assim fizesse, enquanto  eu, de cá, observava e concluía...

Ao longo de alguns anos eu o ouvi contar uma dúzia de vezes (não é uma hipérbole, acreditem-me) a mesma piada. E arrependi-me profundamente de, num dia qualquer de tédio, tê-lo alertado de que já a tinha contado antes. Deveria ter evitado a interferência, deixando que prosseguisse para ver até que número chegaria a repetição, já então bastante enfadonha para mim. Por vezes eu duvidava de que não se lembrasse de já ter me contado aquela história, afinal, podia ser que fizesse para me chatear, mas, diante da sua surpresa quando eu o assaltava oferecendo-lhe em resumo o conhecido fim da história, concluí que se tratava mesmo de uma estranha armadilha que aquela memória lhe armava.

Eu achava que aquilo fosse o resultado óbvio de uma falha mnemônica, um sinal natural de envelhecimento. Apenas quando percebi que o tal vício da repetição começava a se dar também comigo é que pude notar: não se trata de um processo meramente endógeno. Obviamente nada no cérebro humano funciona pura ou separadamente do contexto, da cultura, da história pessoal e das outras histórias.

Com o tempo pude ver que o mais provável não é que o envelhecimento e uma suposta falência da memória nos faça esquecer o que dissemos tempos atrás e, assim, repeti-lo infinitamente. Mesmo porque as pessoas em quem comecei a notar o fenômeno não davam sinais de decrepitude em nenhuma outra área de expressão. No entanto todas elas tinham um traço em comum: eram colegas da minha geração, e que atualmente dedicavam o seu tempo quase que integralmente à vida familiar e/ou ao trabalho. Todas elas tinham uma profissão e/ou um cotidiano que demandava pouca inventividade, todas se declaravam infelizes no trabalho e/ou entediadas no casamento. Acontecia também com aquelas que, em geral adaptadas à própria rotina, realizavam tarefas notadamente repetitivas e com resultados previsíveis, pouco desafiadoras.

Passei a última década inteira prestando atenção a esse fato e notei que escapam a ele pessoas da mesma idade que os demais, mas que têm como hobbie a escrita criativa, a música, a pintura e o artesanato, e aqueles que lidam diretamente com gente, especialmente os que lecionam.

O conhecido a que se referi no início, por exemplo, narrou-me com detalhes, não menos de três vezes em um ano, e com pouquíssima variação vocabular, um evento romântico da sua juventude no qual tinha sido preterido em favor de um felino de estimação.

Uma conhecida chegou a me apresentar duas vezes, em minha própria casa, o seu marido.

O que me surpreende, e que só posso formular a partir do meu próprio trabalho de memória, é que, ao iniciar o diálogo ou a narrativa, nenhum deles de repente de surpreenda auditivamente, ao menos, ouvindo (no caso, de si mesmo) uma frase que ouviu, exatamente igual, há tão pouco tempo... Como quando reconhecemos numa canção o verso retirado de um poema.

A conclusão a que chego, portanto, é a de que não se trata de uma causa fisiológica ou algo do gênero. Precisando verdadeiramente falar, não podendo abrir mão dessa condição de emitente, a pessoa que voluntária ou involuntariamente deixou de acrescentar a sua vivência experiências um pouco mais longínquas do seu estrito cotidiano (ainda que elas sejam conseguidas por meio da literatura ou do cinema, por exemplo) sentirá a necessidade de, nos encontros interpessoais, algo contar. Daí que, como num jogo de truco, o sistema mnemônico gire sua roleta e busque o mais interessante que haja à mão para que possa ser dito. Logicamente, se não se renovou a nutrição de experiências (viagens, paixões, amizades etc), a salvação será buscadsa no último feixe de fala que conseguiu atrair a atenção dos ouvintes, que comoveu, surpreendeu ou, algum dia, fez alguém sorrir...

É triste. É óbvio. E pode ser que seja, talvez, o que ocorre com grande parte dos ex-escritores criativos em crise de escrita.

De modo geral, pode ser um alerta em prol de um cotidiano menos entorpecente.

sábado, 5 de março de 2011

Vida

- O que é vida, mãe?

quarta-feira, 2 de março de 2011

Insetos

Flora com voz de barítono, por detrás do Francisco, enquanto ele socava uns insetos na parede da cozinha:

- Formiiigas não vivem feliiizes para seeempre!

Voar


Francisco, despertando:
- Mamãe, eu quero voar!