Gustav Klimt: Reminiscências passageiras.
Flora dificilmente desperta em meio a suas dez horas de sono profundo, a não ser por calor ou - muitíssimo mais raro - pesadelo.
Já Francisco começou, faz uns três ou quatro meses, a acordar com frequência, ora com medo do monstro, ora da bruxa, ora do lobo mau. Pensei que fosse repetir a história de pavor que me perseguiu por longos anos, na infância, mas não: seu medo já declina a olhos vistos, e foi ele mesmo quem o declarou em alto e bom som, no início da semana:
- Eu pensei que o chapéu fosse um monstro, porque no escuro ele vira um monstro.
- Não, meu bem, no escuro ele parece um monstro.
Durante muito tempo no entanto chegava correndo a minha cama, noite sim, noite não, suando e tremendo, fugindo dos seres imaginários a que continuamos submetendo as crianças com as nossas histórias diurnas.
Nessas ocasiões me chamava à atenção o fato de, mesmo vivenciando terrivelmente o seu pavorzinho, ela trazer consigo seus dois travesseiros, atendendo a um pedido que fiz e que me poupava de ter de ir até o seu quaro, depois, buscá-los, um para sua cabeça, como ele gosta, e outro para cercá-lo na minha cama, evitando que caísse no chão durante o sono.
Então andei pedindo algumas vezes: "- Gente, não me acorda não! Quando vocês (generalizei com o plural para não criar uma dissidência na amizade tão bela dos dois) acordarem com medo, no meio da noite, vejam a luz acesa ali no banheiro, fechem os olhos e durmam de novo. Está bem, Flora? Esta bem, Chico? A mamãe está no quarto ao lado. O lobo mau só existe nas histórias. Eu nunca vi um lobo aqui dentro de casa."
- Combinado?
- Combinado!
Hoje de madrugada acordei com uma conversinha em voz baixa vindo do quarto deles (meu sono é levíssimo):
- Não acorda a mamãe não, tá? Fica quieta e dorme de novo! Não tem lobo aqui em casa.
Ela calou o resmungo inicial, mas eu já tinha sido comovida:
- O que que é, Francisco?
- Mamãe, eu estou com sede e a Tóia quer mamadeira.
Levantei incontinenti. Com sede ninguém não brinca. Servi a água e as mamadeiras de iogurte (no meio da noite não ligamos o liquidificador, tudo já combinado). Agora viria a parte que mais me tira o sono: ficar segurando a mão da Flora até que durma de novo; e por mero capricho de carinho dela, que nunca demonstrou ter medo algum de escuro, ou de ficar sozinha - nada.
Então me aproveitei do poder recém-conquistado, que ouvi ecoando nas palavrinhas madrugueiras, e lancei, pela primeira vez:
- Agora mamãe vai voltar para a cama. Vocês tomem as mamadeiras, coloquem ali no armário e voltem a dormir. Boa noite!
Fui. Demorei a conciliar o sono, tentando adivinhar o desfecho da cena, mas não podia retornar ao quarto deles para confirmar se dormiam, com o risco de os despertar com a minha presença.
Dormimos todos. Amanheceram sobre as mamadeiras e grandes manchas de iogurte.
Eu concordo com o Francisco de que o chapeu vira um monstro!
ResponderExcluirClaro: eu sempre poderia ter respondido: "só no escuro". Você não imagina o quanto me custa ter de tirar dele, nessas ocasiões, as suas primeiras figuras de linguagem! São as premências da sobrevivência.
ResponderExcluirSim, o que não desautoriza a certeza da afirmativa: o chapéu vira um monstro. Isso é (um nível de) realidade. A questão, para mim, é o "não, meu bem". Isso, de certa forma, renega a realidade captada pela criança. Outras percepções podem ser construídas sem negar as anteriores, isto é, explicando afirmativamente, completando o entendimento...
ResponderExcluirSim, querido, não desautoriza, mas o post que você leu é um registro (digamos que seja um registro fidedigno, rs) de uma entre tantas cenas de conversa cotidiana. Óbvio que é um nível de realidade, e a criança não precisa de mim para sabê-lo. "Outras percepções" sempre são construídas, e a negação é apenas mais uma delas: porque a negação nunca é pura, ela traz consigo um elemento (aquele mesmo que é negado), tentando substituí-lo. E "não, meu bem" (a entonação deve trazer um acento no bem que o transforma quase num bim) é uma fórmula muito afetuosa que uma mãe descobre numa hora daquelas em que é preciso ser firme para espantar certos fantasmas que horrorizam as crianças. Aliás, é essa a questão primordial, para mim, no contexto. Do meu ponto de vista, Fernando, um chapéu só pode "virar" um monstro na ficção. Para uma criança aos três anos, em plena fase do pensamento mágico (ao menos para a minha, que tem seus medos), acho importante que se introduza sim o verbo "parecer". As confusões (voluntárias ou não) que vierem, virão a partir dessa distinção básica e clara que ofereci. Enquanto eu for para a criança uma fornecedora de vocabulário, pretendo ser responsável por uma certa clareza nos sentidos que penso doar: afinal, são os sentidos em que acredito. Creio que crianças pequenas precisam, mais que tudo, se sentirem seguras. Continuarão fantasiando, e a fantasia deve recorrer a outros, vários modos de expressão, não ficar presa ao "ser" ou ao "virar". Se não, ao invés de poesia, faremos religião. Embora você acredite que as duas sejam uma só coisa, eu não! Um abraço carinhoso!
ResponderExcluirSeus argumentos me calaram. Você tem toda razão!
ResponderExcluirAo se sentirem seguras, as crianças terão muito mais liberdade de viver plenamente seu mundo mágico, sem deixar de estar preparadas para lidar com a concretude da luta pela sobrevivência. Afinal, viver é enfrentar a todo momento essa dualidade, e não é só na infância que acordamos de madrugada com medo do lobo mau.
Ah, sim... como criar um filho... essa é a idade em que todos os exércitos, religiões e credos e crenças possíveis concentram seu mais alto investimento. Nessa palavrinha "educação" subjaz às vezes monstros muito mais terríveis do que um lobisomem.
Vejo na internet crianças evangélicas da idade dos seus filhos balbuciarem, de terno e gravata, no púlpito, orações que são vistas como incríveis e milagrosas. Também já li sobre os métodos de aprendizagem ensinados pelos professores nazistas.
Agora eu desejo lhe esclarecer uma coisa de uma vez por todas: o fato de eu fundir poesia com religião e ciência na minha particular cosmovisão homoerótica do mundo não tem qualquer relação com obstruir ou retirar outras formas de sentido, expressão e/ou vocabulário de uma criança ou mesmo tentar condicioná-las (há quem acredite que isso é possível) a acreditar nisso ou naquilo. Muitíssimo pelo contrário: se a poesia é a base da minha ciência e da minha ética, eu preciso aprender todas as palavras e sentidos e expressões do mundo, de todas as línguas que existem e já existiram. Aliás, elas não me bastam, eu preciso criar novas, outras mais, outras coisas, até estar completamente insatisfeito com elas, e abandoná-las.
A religião que professo é resultado do meu itinerário de vida até aqui. E se hoje posso lhe afirmar com limpidez que, assim como Davi, o meu corpo e a minha carne gozam no Deus vivo, é porque eu tive, em minha educação católica, brechas que me permitiram fugir dos dogmas e criar novos sentidos místicos para minha condição homossexual. Para isso eu precisei conquistar a minha liberdade. Portanto, o que eu mais desejo para todas as crianças do planeta (todos são meu filhos, digam o que quiser) é que elas possam desfrutar da liberdade como condição necessária para criarem o sentido que quiserem para a sua vida.
Sim, Fernando, sim!!! Abraços muitos, querido amigo!
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