sábado, 24 de setembro de 2011

Quarto de brinquedos

Barbie e Max Steel. Foto: Andréia Delmaschio.



Não ponha os soldados de chumbo na mesma cesta que a fazendinha. Eles têm armas e podem querer caçar os animais. Marcha, soldado, cabeça de papel. Os super-heróis estão todos aos frangalhos. A cabeça do aranha não adere mais ao tronco, depois de repetidos deslocamentos. Minha boneca de lata bateu a cabeça no chão. Ninguém aguenta mais colar a máscara do batman e nem se pode encontrar, em meio a tanto plástico colorido, as asas quase invisíveis da pequena fada, convertida agora numa menininha suave, porém sem vôo. Eu sou pobre, pobre, pobre. As casinhas, com suas portas e janelas desmontáveis, entediam. Os quebra-cabeças mais complexos logo se tornam previsíveis. Atirei o pau no gato. À exceção da boneca de lata, todas as outras permanecem intocadas, sem atrativos - que graça pode haver em trocar-lhes a roupa? - e, quando falam, suas frases piegas se repetem ao longo da noite, tirando o sono. Pela estrada afora eu vou bem sozinha. Os violões têm as cordas rompidas com a primeira canção de duas notas; os pistões perderam os pinos. Vem de lá seu delegado, pai Francisco foi pra prisão. As rodas dos carrinhos não resistiram a brincadeiras e faxinas. Pirulito que bate, bate. Os ursos de pelúcia estão repletos de ácaros ou então perderam o recheio por um rasgão aberto na costura. Tubarõezinhos sem dentes, corujinhas sem olhos, macaquinhos sem rabo e coelhinhos sem orelhas, que trazes pra mim? O avião foi jogado do alto da cama e se chocou contra os tigres de borracha, originando farta carnificina. Há manchas de tinta pelas paredes. As canetas novas, ou não funcionam, ou esburram. O cravo brigou com a rosa. Encheram os lençóis de motivos florais. Dos sete anões, restaram cinco, e um apenas, dos três porquinhos. É mentira da barata, ela tem é uma só. Em meio ao caos contudo o superomem se casou com a branca de neve e foram felizes para sempre, trancados na torre de lego. Cuspiu no chão? Limpa aí, seu porcalhão, tenha mais educação. A barbie sentou no colo do mequistil. Rebola se não eu caio.  Tinha mais razão quem tinha medo de bonecos. E pego as criancinhas pra fazer mingau.

O pedreiro

- Seu Tião, cuidado pra não quebrar o meu preto velho, sim?
- Fique tranquila, dona Andrea; eu jamais violaria um ícone de adoração dos povos negros!

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Amanhã

Arthur Bispo do Rosário: Alvo.
 
- Abre a janela, mãe. Eu quero ver se já é amanhã.

Tempo

- Assim não dá! Quando é que vocês vão aprender a catar os brinquedos espalhados?
- Hum... Pode ser ontem, mamãe?

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Namorar

- Você está tão bonito, meu filho! Já tem namorada na escola?
- Sim, o Pedro Henrique!

Soldadinho maneiro

Miniatura através do vidro. Munich, 2006. Foto: Andréia Delmaschio.


- Esse soldadinho novo é maneiro!
- Maneiro? E por que ele é maneiro?
- Porque ele faz uma coisa com as mãos.

domingo, 18 de setembro de 2011

Obedientes

Kate Macdowell: Escultura em cerâmica.

- Mãe, olha só o que nós achamos na geladeira!
- Ai, os ovos! Cuidado! Segurem firme pra não cair...
Flora, com firmeza: plof.
Francisco, muito firme: plof plof.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Brincar de mar



- Mãe, vamos brincar de mar?
- Vamos.
- Eu sou o golfinho, tá?
- Tá bom. E eu?
- Você é o golfão!

Mãe

Gustav Klimt: Mãe e filho.


- Mãe, por que você é tão minha?

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Noite de lua


Noite de lua. Estranhos efeitos de luz e sombra. As nuvens semelham peças de um quebra-cabeças...
- Mãe, vem cá ver! A lua está desmontando o céu!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A nova Barb(ar)ie

Que brancor no abre e fecha sensual dessa Nossa Senhora Asséptica! Com ela eu saio e traio a televisão, rainha minha e de vocês.
(Belchior. Balada da madame Frigidaire)


A mais civilizada tem
cílios postiços,
nariz lapidado,
lábios de botox
e seios de silicone -
tudo em apenas um exemplar.

Faz escova progressiva
e usa mega hair.

Uma costela foi retirada,
os quadris lipoaspirados,
a cintura lipoesculturada
e as pernas dermolipectomizadas.

A bunda é de silicone
e as unhas de porcelana.

Desaconselha-se morder ou sugar,
apertar ou puxar os cabelos com força.

domingo, 11 de setembro de 2011

J. Quiroga

J. Quiroga veio pedalando desde o centro da cidade e me trouxe um pão integral. Em plena terça-feira recebi o meu pão, fresco e crocante, por um dia inteiro fermentado em iogurte. J. Quiroga teima em não colaborar com a destruição deste mundo. O pão era uma encomenda que fiz da sua deliciosa culinária, e comentei que não valia a pena trazer um pão, apenas, do centro a bento ferreira - que esperasse uma ampliação da demanda. Do outro lado da linha J. Quiroga não riu, mas viria de bicicleta - argumentou -, portanto não gastaria gasolina. Aliás, J. Quiroga não pretende ter um automóvel e, ao final, também não quis receber pelo pão, revolvendo assim, completamente, a relação de utilidade e a única lógica que conhecemos - a do lucro. J. Quiroga mora ao lado da gruta da onça, fuma cigarros feitos à mão e cultiva, nos muros, as mudas das delicadas avencas. Cultiva-as involuntariamente. É possível mesmo que sejam elas a lhe fazer o cultivo... A casa de J. Quiroga é habitada por crianças sérias e elfos brincalhões. Tudo é tão integral em J. Quiroga.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Bala perdida


sed lex
laissez faire
let it be

terça-feira, 6 de setembro de 2011

São José do Campo Real

Mamãe foi à cidade vender ovos. Desliguei o telefone enfeitiçada com a notícia: a minha velha mãe hoje acordou cedo - como de costume - e levou seis dúzias de ovos até a cidade mais próxima, a uns vinte quilômetros de distância. Vovó vendeu os ovos, crianças. Lembrei-me daquelas primeiras sentenças da antiga cartilha de alfabetização... Mas não se trata de uma frase, apenas. Ela estava contente, sua voz irradiava a contenteza que quase todos hoje desconhecemos: a de poder, por uma ação simples, dar encaminhamento a um produto - e nem foi pelo dinheiro: Eu não podia deixar estragar tantos ovos! As galinhas põem quase duas dúzias por dia! Os ovos da roça têm a gema extremamente amarela e em nada se assemelham a esses quase-de-borracha que compramos no supermercado. Nem se igualam a esses meio-caipiras que compramos como caipiras, por um preço mais elevado. Por que será que não vendem ovos na feirinha de orgânicos? Deve ser pela dificuldade de transportá-los. Mas a velha mãe é zelosa, e o seu comércio, do início ao fim, artesanal. Mesmo o motorista do ônibus que a leva, espera até que acomode delicadamente as pequenas caixas, e todos os outros passageiros acham normal algum atraso. Eles mesmos oferecem ao motorista, cotidianamente, um naco de queijo e uma xícara (esmaltada) de café, sem que ninguém reclame da demora. Absolutamente todos se conhecem pelos nomes, sabem de que padecem os que padecem, quem morreu, quem nasceu... O que importa é que mamãe vendeu os ovos, catados pelos quatro cantos do terreiro - no buraco perto da porteira, nas touceiras do capoeirão, perto da tampa do açude e onde mais aprouve às galinhas improvisar os seus ninhos.

sábado, 3 de setembro de 2011

Andar de bicicleta

Quando aprendi a andar de bicicleta eu tinha uns 7 ou 8 anos de idade. Minha família era muito pobre e por isso não tive acesso a um velocípede ou a uma bicicleta antes disso, como costuma acontecer.

Até que um dia apareceu a bicicletinha verde para conserto, porque meu pai, para complementar o orçamento, tinha que fazer os seus bicos consertando coisas. Era toda arranhada e tinha o selim em pandarecos, mas a mim pareceu deslumbrante.

Acontece que ela também não tinha os pedais e acho que era justo isso o que pediram que meu pai colocasse nela. (Além de marceneiro e pedreiro, ele era eletricista e mecânico autodidata). Como o tempo do conserto durou mais do que devia, devido à grande demanda de serviços que havia na fila de espera, eu enfim aprendi a andar de bicicleta. Numa bicicleta sem os pedais.

Como o nosso quintal era em declive, eu subia empurrando a bicicletinha até o alto dele e depois descia de lá quase voando, com as pernas abertas em tesoura e o corpo todo arrepiado de medo e prazer. Não me lembro de ter caído nenhuma vez. Me parece uma boa técnica para aprender a se equilibrar sobre a bicicleta. Claro que é preciso ir dosando gradativamente a altura. A pedalar mesmo só fui aprender na adolescência, mas me pareceu então um fraco arremedo daquela sensação que tive na infância.