Sísifo. Vincenzo Pellegrino.
Amanheci com um pequeno orifício do lado esquerdo. Espinhas aparecem muito mesmo nessa área do colo. Seria melhor não mexer, para não contaminar, mas assim que me levantei escorreu um incômodo fio bege e rosa que manchou a camisola. Acabo de notar que alguma coisa ali se mexe, num movimento tão ritmado e constante que parece involuntário. E é grande, meu Deus, é enorme! Não é espinha. Nem se trata apenas de uma larva, como imaginei no começo. Se eu permanecer inerte, percebo que se mexe inteiro o seio esquerdo, sob a batida do invasor. Não suporto a persistência do incômodo movimento que há muitas noites não me deixa dormir. Preciso eliminá-lo. No armário tenho uma pequena bisnaga de anestesia, mas prefiro arrancá-lo às cruas, sozinha, e à mão. Com o pequeno estilete de apontar lápis abro um pouco mais o buraco e confirma-se o que eu já esperava: a coisa está arraigada ao meu corpo. Amplio o corte um pouco mais e vejo que se liga a mim por todos os lados. Além de peles e pequenas camadas de músculos, será preciso romper nervos, veias grossas e delgadas. Apanho a faca de jardinagem, esfrego-a um pouco na pedra de amolar e puxo, de um só lance, a coisa inteira para fora do peito, a fim de que o golpe seja certeiro. Em menos de meio minuto, ela está inteira na minha mão, pulsando ainda, e sangrando muito. Lanço-a à lata de lixo. Lavo as mãos cuidadosamente. Enxugo-as. Volto para a cama e enfim dormirei tranquila.
A qualidade concisa desse texto é demais. Tratar um tema desses desse modo é ainda mais chocante. Raras vezes vi uma alegoria tão bem construída.
ResponderExcluirObrigada. Também eu tenho por ele muito apreço. Um abraço.
ExcluirValeu pela dica. Realmente é muito forte. Dá vontade de arrancar tudo de dentro...
ResponderExcluirRsrsrs, é isso. Grata pela visita.
ExcluirAndreia, obrigado por isso. Sei que existem muitas pessoas escrevendo bem por aí, mas é o seu texto que me diz mais. Conheço seu blog há uns três anos e cada dia é uma surpresa diferente. Não sou estudioso de literatura, sou jornalista, e leitor voraz, e fico com a cabeça cheia de curiosidades que você talvez não quer responder. Se quiser/puder: Que diabos te levaram a escrever um texto como este aí? O quê que você sente/sentia? Quantos anos você tem? Como vive? Beijos, beijos. C.
ResponderExcluirCaro "Anonymous C.", eu é que agradeço pela leitura tão generosa do(s) meu(s) texto(s). E permita-me: Anônimo C. é um bom nome para uma personagem, por carregar a contradição. Suas perguntas como que respondem aos meus próprios anseios, quando releio: Que diabos eu sentia para escrever um texto como este? Que coisas eu vivia? Quantos anos eu tenho, afinal? Como vivo? Juro que sei responder a quase todas elas, rs, mas elas mostram que você foi tocado pelo texto, e isso me garante que não escrevi em vão. É tudo que se pode querer, ao escrever: tocar alguém. Portanto, elas são a resposta! Muito obrigada. Um grande abraço.
ResponderExcluirEssa narrativa, como o seu "Sábado de Aleluia", me arrasa, me solidarizo, adoeço, reconheço a minha condição. Parabéns por escrever assim!!!
ResponderExcluirQue dizer diante de uma declaração dessas? Muito obrigada.
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