sexta-feira, 29 de junho de 2012

Pesadelos intermitentes ou Oração de ateu

Clarice Lispector.


Para Carol, Clarice e Célia Ribeiro.

She don't lie,
me gritam ao telefone.
Não reconheço
a voz de trovão,
mas suspeito que
o homem invisível
saiu do passado para me mentir
dentro do sonho...

É madrugada.
Ao fundo eu posso escutar
o som das correntes
que ele arrasta...

Deitada numa canga indiana
intuo sua incisiva orfandade.
É assim que o rosto me surge,
incrustado na roda-gigante de um coqueiro...

É ele: o fauno da ilha escaldante,
o fantoche manipulador
que um dia, num poema,
esmaguei.

Sua voz agora se faz angelical,
porém, ao contrário de Clarice,
não adotarei esse homem
- decreto ainda dormindo -,
tenho medo de tudo que me arrasta:
discurso, silêncio, vendaval...

Sem mais,
a artista Célia Ribeiro
me envolve o rosto em papel-manteiga:
sorte:
um pouco mais e
ninguém se lembra de mim.

Resolvo que não morrerei
até que cresçam as crianças
e nunca antes de lhes esticar a fita,
que de doce já basta a vida.

Terei de convencer a maquiagem
e todo dia inventariar um signo:
meu touro meu sagitário
meu aquário meu escorpião...

Prometo não dizer seu nome em vão
e atentar na BR-101.

Os amigos riscam floriscos nas barras do lençol,
belíssima mortalha
em que a canga se transforma.

Do nada surge Carol,
declamando a nova cartilha:
nem eu te ligo, nem você me telefona.

Fi-la crescer para me tomar a tabuada!,
penso que penso,
um tanto já engessada...

Por certo estou fora do meu tempo.
Afinal, tudo tem passado.
Cansei de brincar de mim.

Enquanto isso, em Bento Ferreira,
o senhor Marinho espalha seus chocolates:
as crianças engordam a olhos vistos.

No vaso, a orquídea-bambu
testemunha a minha pior humanidade.

Chove muito lá fora,
o céu semelha um grande melanoma:
Vitória do Espírito Santo.
Amém!



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