Cícero Dias.
O estranho é o seu próprio problema. (Zygmunt Bauman)
Boa tarde, minhas queridas.
Estranharam a nova decoração do palco? Éééééé... hoje é um dia muito especial,
porque nós vamos iniciar o nosso programa falando de uma novidade no mercado:
Esta cadeira, na qual eu estou sentada, não é uma cadeira qualquer! Vejam bem:
a cadeira Maxi-flex é a única totalmente reclinável, e assume quatro diferentes
posições.
A primeira, que eu estou utilizando agora, deixa suas costas eretas e
permite que você faça todo tipo de trabalho manual sem se cansar, porque possui
os exclusivos braços Ultra-flex, que acompanham os movimentos dos pulsos (movimenta circularmente o microfone).
A segunda é esta, uma posição de
meia reclinagem. (aperta um botão sob o assento e reclina a cadeira): ideal
para assistir a TV.
A terceira posição deixa você
ainda mais relaxada, e é excelente para aquelas que não dispensam uma boa
leitura (reclina a cadeira um pouco mais). Tudo isso com apenas um toque, sem
qualquer esforço.
A quarta posição da nova cadeira
Maxi-flex, e nossa grande novidade, é esta, totalmente deitada. Pode reclinar
sem medo de cair (reclina e segue falando deitada, alongando um pouco as
vogais, os olhos semicerrados, como se tivesse sono, a câmera focando-a do
alto). Aqui você vai ter um sono tranquiiilo, relaxaaado, com conforto e
segurança.
Agora ela já se ergue bocejando
e alongando o tronco, como se tivesse acabado de acordar: Não tem como não ser
feliz numa cadeira Maxi-flex! E você pode adquirir a sua agora mesmo. Sabe por
quanto? Não, é demais, você não vai acreditar. Por apenas 1,99 por dia. Éééééé, é
isso mesmo: 1,99 por dia. O que é que você faz com 1,99, minha amiga? Ligue
agora: Zero operadora onze três um quatro dois treze vinte e sete. Você está
esperando o quê? As cem primeiras pessoas que ligarem vão receber inteiramente
grátis o Manual de Instruções e um protetor plástico especial, para garantir
vida longa à sua cadeira. Repetindo: Zero operadora onze três um quatro dois
treze vinte e sete.
Aplausos.
Minhas amigas, agora nós vamos
acompanhar o caso de Janiscleide, que teve a carta selecionada pela direção do
programa. Vocês estão lembradas da Janiscleide? Ela esteve aqui na semana
retrasada e contou a nós a sua história. Vamos ver as imagens...
No telão é
exibido um resumo do resumo da vida de Janiscleide, levado ao ar quinze dias
antes. A mulher é filmada de biquíni, em diferentes ângulos. Depois aparece um
close de seu rosto, com olheiras, e um sorriso triste, com poucos dentes.
No rodapé da tela, lê-se: Janiscleide é empregada doméstica e mãe de duas meninas. O telão mostra ainda a casa e as filhas de
Janiscleide.
Agora vamos ver o que diz o
especialista que nós contratamos para analisar esse caso. Aparece no telão o
especialista, de branco, caneta na mão, por detrás de uma mesa sobre a qual
estão espalhados, perto de uma revista Capas, alguns livros cujas lombadas é
impossível ler:
Bom, nós estivemos estudando cuidadosamente o caso da senhora
Janiscleide (a mulher está sentada diante dele, vestida com um blusão largo, de
material sintético) e estivemos constatando que ela precisa de intervenções de
vários tipos. Nós, da Clínica Beauty Business, vamos estar propondo para ela
uma lipoaspiração abdominal (entra o áudio da platéia, com os aplausos),
aplicação de silicone nos seios, bronzeamento artificial, um peeling esmeralda,
corrente russa, drenagem linfática, plástica facial completa - pálpebras,
nariz, boca, queixo e papada (aplausos efusivos) -, botox, implante de dentes,
cabeleireiro, manicure, pedicure, fio de ouro e terapia de correção postural
(ovação da platéia).
Retorno ao auditório. Algumas pessoas ficam de pé para
aplaudir. No rodapé da tela aparece a inscrição: Janiscleide é rejeitada pelo
marido porque é feia.
Vamos acompanhar o passo a passo
de Janiscleide, diz a apresentadora. Ela fez todo o tratamento em duas semanas.
Surgem cenas de centro
cirúrgico: primeiro o abdômen é subdividido pela marca da caneta, depois uma
agulha muito longa e aparentemente flexível é fincada energicamente em diversos
pontos do músculo lombar, para sucção da gordura. A seguir aparece um antes e
depois dos seios de Janiscleide, imagem que arranca gritos de surpresa da
platéia.
A animadora acrescenta: Durante
quinze dias ela ficou entregue às melhores clínicas, salões e spas do Rio de
Janeiro, sempre com uma máscara cobrindo o seu rosto, porque a transformação
uma surpresa, antes de tudo, para ela própria.
Aparece a imagem da mulher no
salão, com a máscara, tendo ao mesmo tempo o cabelo cortado e as unhas pintadas
e, em seguida, deitada de biquíni num tubo para bronzeamento artificial.
Somente depois de completo todo
o tratamento ela poderá se olhar no espelho, o que fará hoje, aqui, diante de
vocês. Tragam o espelho, por favor! É trazido para a frente do palco um espelho
oval, de aproximadamente um metro e meio, sobre rodas. Na borda, rosáceas azuis
e douradas mal acabadas. Noutra cena aparece apenas a mão de Janiscleide,
escolhendo entre alguns vestidos longos, dispostos em araras.
Gente! Minhas queridas! Daqui a
pouco nós vamos receber no nosso palco uma nova Janiscleide. Simulando não resistir à curiosidade, a apresentadoraai do palco e entra no camarim, ao
encontro de Janiscleide. Demora-se alguns minutos, enquanto solta de lá, ao
microfone, gritinhos e interjeições de espanto. Retorna ao palco sorridente.
Põe a mão sobre a boca, em sinal de admiração, e diz, alongando as pausas entre
as palavras: Vocês não vão acreditar no que vai acontecer aqui! É simplesmente
in-crí-vel! No rodapé da tela, a nova inscrição: O corpo e o rosto de
Janiscleide foram completamente transformados.
Atenção, atenção! Acaba de
nascer uma nova mulher! Meu Deus! Ela está ir-re-co-nhe-cí-vel! Pode entrar,
Janiscleide. Entre, por favor. (No telão ao fundo aparece Janiscleide, se
aproximando pelo corredor que conduz ao palco). A apresentadora prepara o
público: Gente! Mas é esse mulherão todo!? Entre, Janiscleide! Pode entrar!
A mulher entra com a máscara e
bastante atrapalhada com as pontas do vestido. É esta mesmo a sua mãe, Jennifer,
pergunta a apresentadora olhando na direção de uma das meninas, sentada na
primeira fila. A adolescente parece confusa. Não sabe ao certo se deve
responder que sim ou que não. A animadora anima: Tinha uma barriga muito grande
a sua mãe, hem!? E mantém, coquete, um arzinho sério, enquanto a platéia solta
o riso.
O vestido negro ajuda a realçar
o novo corpo de Janiscleide, que caminha com dificuldade sobre os saltos. A
apresentadora lhe entrega um microfone. Eu posso agradecer, pergunta
Janiscleide, se aproximando para abraçar a apresentadora. Esta a afasta com o
braço que segura o microfone, esticando o cotovelo e situando-a no melhor ponto
para o close: Agradece, pode, mas antes olha pra lá. Pera lá, não chora não,
não chora ainda não, pra não estragar a maquiagem. Olha praquela câmera ali e
fala pro seu marido, que está assistindo, fala, fala, fala tudo que você tem
vontade!
Janiscleide tem sotaque
paraibano. Tomada de forte emoção e insegura sobre a sua nova imagem, que ainda
não contemplou, ela mutila as palavras e vê-se que preferia nada dizer, mas aos
poucos, entre soluços e lágrimas, cede aos apelos da apresentadora: Júnior,
você dizia que eu não era mulher pra você. E agora, Júnior? Você dizia que ia
pro boteco encher a cara porque tinha desgosto de ter uma mulher tão feia. Você
dizia que tinha vergonha dos seus amigos, que qualquer baranga na
rua tinha o corpo mais bonito que o meu e que o meu lugar era na beira do
tanque com a barriga molhada, lavando as suas cuecas. O quê que você acha
agora, Júnior?
Dá uma rodadinha, Janiscleide,
mostra pra ele a nova mulher em que você se transformou, a animadora instiga. É
i-na-cre-di-tá-vel! Não é, minhas amigas? O público repete: Éééééé!
Janiscleide roda desajeitada, a
cabeça sempre baixa.
Agora! Chegou a hora!
Preparem-se para o que vocês vão ver! Nós temos aqui uma nova mulher! Olhando
para esta câmera, Janiscleide, tire a máscara. E depois caminhe em direção ao
espelho. Pode tirar a máscara!
Janiscleide retira a máscara,
mal encara a câmera e segue para o espelho, no qual parece realmente não se
reconhecer. O público solta um óóó. A princípio ela estaca séria, com o mesmo
olhar triste que já se via em sua primeira imagem e, desviando-se furtivamente
de seu reflexo, começa a chorar inibida, a mão cobrindo a boca convulsa, como
quem se envergonha de chorar diante de um estranho. Até mesmo seu choro traz o
acento paraibano, e as maçãs do rosto, muito saltadas, não puderam ser de todo
disfarçadas pela maquiagem. Contudo as rugas de expressão que havia em torno da
boca e que agora comporiam a máscara do choro sumiram completamente com a
aplicação de botox. O cabelo foi tingido e os cachos crespos se renderam à
escova progressiva, mas a doméstica paraibana que o marido rejeita continua presente
ali, sob a derme, os cabelos e as roupas de uma atriz global.
A câmera alterna agora entre o
novo rosto da mulher e as suas filhas, sentadas ao lado de uma amiga, obesa, de
Janiscleide. O que você acha, pergunta a animadora à amiga obesa, que chora:
Ela merece, porque ela tem muita fé. Ela rezava todas as noites para vir ao seu
programa. Ela escreveu mais de duzentas cartas. Ela sempre soube que um dia ia
conseguir. Era o sonho da vida dela.
A animadora encerra o programa,
dizendo: Às vezes, algumas pessoas me param na rua pra perguntar se tudo isso
aqui é armação. Eu respondo: Como, armação? O nosso programa é de
u-ti-li-da-de pú-bli-ca.
Aplausos.
Na
tela, seu rosto enérgico se aproxima. Nós temos muito respeito pelos participantes
e pelo público. E num tom um pouco mais duro, balançando a cabeça e lançando
para a câmera um olhar ensaiado de pantera: A gente aqui não está tratando só
da aparência, a gente está cuidando também de almas!
Aplausos.
No rodapé da tela se lê:
Janiscleide é uma nova mulher.