domingo, 4 de setembro de 2016

Aquarius primeiramente

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Acerca do filme Aquarius pode-se dizer muita coisa, mas vou me centrar em um ponto que, segundo o amigo Luciano Valin, explica o porquê de ele ter tido a censura elevada, inicialmente, para 18 anos: Aquarius é um retrato do Brasil atual, este vasto território confuso em que o diálogo se torna, muitas vezes, impossível. Os desdobramentos da imagem revelada agora pelo cineasta Kleber Mendonça Filho são de se temer, mas muita gente não quer enxergar.


O título Aquarius, nome de um edifício situado em frente à praia de Boa viagem, no Recife, onde se passa a trama, se for entendido pela ótica da personagem Clara (Sônia Braga), pode denotar otimismo quanto ao futuro, porque prenuncia a multiplicação pelo mundo, de agora por diante, de pessoas íntegras, sinceras e sensíveis como ela, ainda que a boa nova demore 600 anos - são as previsões astrológicas. A Era de Aquarius seria um período de grande desenvolvimento intelectual e espiritual para a humanidade, tempo em que a mentira e a ganância perderiam o sentido e as pessoas exerceriam os seus afetos com tranquilidade e altruísmo.


"Age of Aquarius" é também a canção que acompanha a trajetória do musical Hair, que fez sucesso nos EUA na década de sessenta, espalhando-se rapidamente por todo o mundo. Os personagens são um grupo hippie e a peça anuncia a Era de Aquarius. No Brasil, foi encenada pela primeira vez em 1969.  O elenco contou então com a atuação de Sônia Braga aos 18 anos ("uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel", cantaria, depois, Caetano). A atriz iniciante sustentou diante da plateia um nu de um minuto, negociado com os censores da ditadura militar pelo diretor Ademar Guerra, que se esmerou no tratamento estético da cena. Os atores todos, sob imposição da censura, deveriam permanecer imóveis no palco. Sônia Braga protagonizou assim aquela que muitos afirmam ter sido uma das mais belas cenas do teatro brasileiro até hoje.


No filme Aquarius, como uma referência que se reitera, "O cabelo de Clara", que também nomeia um dos episódios, brinda, de uma só vez, ao futuro, à liberdade e à sensualidade, remetendo ao musical de teor revolucionário e à história da própria atriz brasileira (para pensar o futuro é preciso conhecer o passado). Além disso, os cabelos, símbolo da sensualidade e da beleza, são, no filme, constantemente exibidos, tocados e cuidados pela personagem escritora, que, além de tê-los, anteriormente, perdido, devido à quimioterapia, teve também um outro signo tradicional da sensualidade amputado: a mama.


Se visto a partir da ótica do jovem engenheiro dublê de corretor de imóveis Diego Bonfim (Humberto Carrão), formado em "Business" nos Estados Unidos, aí então o título do filme deve ser considerado na sua carga irônica. Logicamente não temos que resolver por uma das duas opções de leitura do título, afinal, a história (no filme e fora dele) continua se fazendo e a sua recepção por parte de cada espectador, a leitura particular, depende de um conjunto de fatores que não pode ser considerado de maneira simples, entre eles o próprio contexto imediato em que a pessoa está inserida, a sua sensibilidade, a capacidade de ouvir, o modo como se informa e é afetado no contato com aqueles que o cercam e cujas opiniões divergem da sua opinião inicial. Etcétera.


Esse retrato do Brasil nos aponta, primeiro, o esquecimento, a curta memória que temos, no país, de eventos da nossa história pregressa, mesmo os mais próximos, e de suas consequências para a nossa vida, individual e socialmente falando.


Depois, o moralismo e o recalque, um bom-mocismo e uma seriedade de fachada que nada mais são que a casca oca de uma madeira que vai sendo roída, por dentro, pelos cupins. E nunca é demais lembrar que cupim não escolhe madeira, e que pau que dá em Chico, dá em Francisco. Mais cedo ou mais tarde. É só uma questão de tempo.


Aliás, é longa já a atuação do cupim na história da arte e da literatura como sinal da passagem do tempo e das transformações históricas. Talvez porque ele tem de corroer por dentro, trabalha escondido, sutil, silenciosa e incansavelmente, vindo à tona apenas e tão-somente quando o edifício todo já está minado na sua própria estrutura - para o bem e para o mal.


Uma outra faceta desse perfil que o filme expõe é o hoje já indisfarçável preconceito: o brasileiro é racista e machista, embora, até onde a habilidade discursiva permitiu, alguns conseguiram, por um tempo, escamotear; outros, mais cínicos, continuam a negar com veemência que no Brasil convivemos com a discriminação das minorias (aliás, é algo a se confirmar: se são mesmo minorias): "- Daqui de onde eu posso ver - diz Diego a Clara - dá para notar que a sua família teve que lutar muito para conseguir chegar a algum lugar, essa pele meio morena..." É nessa hora, esgotados os argumentos racionais, que Clara desiste do diálogo e sai, em silêncio, porém sempre com a cabeça erguida. A aparente polidez do homem de negócios, a "educação" exibida até ali nada mais é que uma estratégia de marketing. "Business". Por meio da palavrinha inglesa e declarando a nação a que se encaminhou para os estudos, o rapaz define e exibe o seu poderoso "saber" e a inconteste fonte cultural do seu modo de agir: "- A senhora não me conhece. Eu estudei Business nos EUA". Durante o tempo que dura a tentativa de adquirir o apartamento de Clara, enormes matrizes de cupins de demolição são transportadas clandestinamente por Diego para o prédio, com o objetivo de enfim minar sua resistência à negociação. "Business".


E é assim que, em circunstâncias diferentes, ligadas embora pelo "argumento" comum do lucro, dois personagens homens e jovens lhe lançam na cara, em tom acintoso de intimidação, essa conhecida pérola da retórica nacional, de origens patriarcais, coronelísticas e proprietárias,  de gosto policialesco e autoritário: "- Você sabe com quem está falando?"


Ali se junta, à ameaça velada e por isso mesmo covarde, em que é patente a insinuação de que o próximo passo é a violência física, a tentativa de subjugá-la com base numa suposta superioridade de macho branco e endinheirado, uma superioridade sem fundo que lhes concede o poder de esbravejar incólumes, sobretudo porque se trata de uma mulher e porque ela resiste a jogar o seu jogo. É preciso destacar que o seu desejo é simplesmente exercer o direito de continuar morando no apartamento em que criou os filhos, que fica de frente para a praia em que mergulha todos os dias, ainda que - sutil ponto de confluência entre ficção e realidade -, os tubarões volta e meia ataquem os banhistas.


Lá fora, a devoração geral provém da ganância dos empresários do ramo da construção, que a tratam como louca por não aceitar as propostas feitas pela venda do apartamento. Todos os demais proprietários do Edifício Aquarius já venderam os seus, o que configura Clara como uma pedra no sapato. O poder do dinheiro é tão incontestável que os direitos dos cidadãos podem ser, um por um, ignorados, suplantados, sumariamente suprimidos. É assim no Brasil de hoje: aquele que não se rende às razões do capital é tratado como louco - e todos os conceitos se agudizam quando se trata de uma mulher.


Clara ouve diversas vezes, inclusive da própria filha, que a "coisa certa" a fazer é vender. No entanto ninguém se esforça por se colocar no lugar daquela que não aceita apagar a própria história em troca daquilo que para ela pouco ou nada significa. Assim como não houve interesse em substituir a mama perdida por uma prótese, não há interesse em substituir as paredes e móveis, que trazem a marca do tempo, por um apartamento novo e anódino, no prédio de instalações uniformes que se pretende construir sobre os escombros do Edifício Aquarius.


A nova moradia dessa era anti-Aquarius em que ainda vivemos tem de ter espaços "gourmet" e "lazer" que talvez nem venham a ser usados de fato. Não, o enclausuramento burguês não se contenta mais com isolar-se juntamente com outras famílias que possuem a mesma faixa de renda, que frequentam o mesmo clube e assistem ao mesmo telejornal. Essa prótese de sociedade é apenas mais um delírio, uma ilusão. Na verdade, o enclausuramento é ainda maior e mais doentio: é uma prisão entre quatro paredes, que também já não são mais as paredes da casa ou do "lar". Embora o negue desesperadamente no seu discurso, essa mesma família já não existe com o sentido de laços afetivos reais e comprometidos: os pais há muito transferiram a educação dos filhos: primeiro para os avós, depois para a escola, mais adiante para a babá, por fim para a televisão e o computador, e, agora, para o tablet. As quatro paredes do tablet é que se abrem na mão desse novo ser humano, física e socialmente isolado, ou seja, politicamente alienado, porque as relações (afetivas, sexuais, culturais, políticas) necessitam de corpos. É de corpos materiais que - ainda - se trata.


Assim é a nova morada ideal no Brasil: verdadeiros shopping centers feudais que se alastram pelas nossas cidades, sonho da sagrada família pequeno-burguesa, consumidora inculta que se acha bem informada, depredadora anti-ética que se supõe portadora de muito bom gosto e que vai se defender, ali dentro, de toda a insegurança que nasce do fato de ainda haver pobres.


Só que não entenderam o bê-á-bá: para que se eliminem os pobres, é preciso eliminar-se a pobreza. O ponto seguinte de um silogismo tão óbvio, aquele que trata de como se erradica a pobreza, esse ponto já não querem nem mesmo ouvir. Para isso, eles têm uma palavra de quatro sílabas. Isso, para eles, é dou-tri-na-ção.


A única doutrinação que aceitam é a que ouvem do padre ou do pastor na igreja. O sagrado casal hétero de idade média vai ao cinema, assiste ao Ben Hur, se emociona e chora diante da tela com as palavras revolucionárias do Cristo. Ao sair dali, acelera o carro e lança-o com violência sobre "pobres, nordestinos, mulheres, negros, homossexuais, petistas, feministas e comunistas" que ousem cruzar o seu caminho. O caminho de volta para o feudo, se o feudo não tiver a sua própria sala para exibição de filmes - de preferência filmes que não lhes ameace com o desafio desagradável de ter de refletir, que não lhes ofereça um retrato da sua própria condição.


No Brasil brincamos de máquina do tempo. Temos saltado para trás de vinte em vinte anos, e não sei ao certo onde aportamos agora, se em 1964 ou em 1984. Tudo indica que teremos de lutar simultaneamente pelo retorno à liberdade de expressão e por eleições diretas já.
No próximo salto podemos cair direto num momento anterior às conquistas da CLT, quando, quem sabe, teremos de trabalhar literalmente até a morte. Enquanto isso, outros realizarão enfim um velho sonho: possuir escravos que entregarão o seu trabalho, quando muito, em troca de comida.


A parada seguinte pode ser o Brasil colônia e escravagista.











4 comentários:

  1. Texto excelente. O preconceito, o machismo e a cegueira estão doendo em mim. Compactuante com tudo o que vc escreveu, ecoo as palavras anônimas (acima): perfeito. Sem mais.

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    1. A.M., obrigada pela leitura e pelo comentário. Tem doído em muitos de nós essa... areia movediça em que o país se afunda. Por isso é importante estarmos próximos agora. Meu abraço.

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