sábado, 28 de novembro de 2009

Alex e o pedinte

Monumento a Bismarck. Foto: Andréia Delmaschio.


Ele tinha ido ao toalete quando fomos enfim atendidos pelo garçom mau humorado, que depositou na mesa, brutalmente, as quatro tigelas fumegantes. Sem esperar que retornasse, começamos a tomar o nosso caldo de feijão, deixando o seu a esfriar por ali. Foi então que chegou o pedinte. As mesas do bar ficavam num pequeno platô, acima do nível da rua, o que nos deixava na mesma altura das cabeças dos passantes. Sem cerimônias o senhor maltrapilho estendeu o braço magro por cima da murada decorativa e começou a sorver, em grandes colheradas, o mais vulgar e saboroso dos acepipes que cabem no bolso de um estudante. Naquele dia resolvemos não beber... Era uma noite fria como são poucas noites por aqui. No bar ficaram todos visivelmente constrangidos com a ousadia do pedinte que não pedia; alguns demonstravam por meio de gemidos covardes a sua indignação com a distração dos administradores, que não expulsavam dali o incômodo pobre - ou o pobre incômodo; outros, creio, se angustiavam, no íntimo, com a visão mais próxima que teriam, naquela noite, da diferença brutal, ainda que marcada por um pouco de feijão batido e, principalmente, pelo poder de entrar no bar. Nós, na mesa, nos entreolhávamos silentes, numa mistura de vergonha pela nossa condição de plenos comedores, até então ridentes, e, ao mesmo tempo, por sermos os anfitriões involuntários do conflito surdo que se instalava. Temíamos especialmente pela reação que adviria do amigo quando retornasse, transbordante de testosterona, no auge dos seus dezoito anos, e se deparasse com o pedido tão longamente esperado sendo devorado pelo transeunte malcheiroso. Rapidamente ele voltou, ainda arrumando a camisa, e, sem nos lançar sequer um olhar, sinalizou para o homem, que lhe entregasse a colher. O outro foi automático, cabisbaixo. Sério, sem qualquer traço de altivez, afetação ou divertimento com a difícil situação que o acaso lhe preparara, alex provou uma primeira colherada. Em seguida, serviu o homem, na boca, com a mesma colher. Tomou a terceira, serviu a quarta, e assim foram, até o fim, tranquilos, contentes, irmanados em seu caldo quente. Em torno, em silêncio, todos nós acompanhávamos, boquiabertos, cada um daqueles gestos inesperados.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Beto

Beta. Foto: Nascimentus.

Aliás o beta, a que chamamos Beto, faz dois dias já que não sai da casca de ouriço que coloquei no fundo do aquário... A não ser quando Francisco o invoca com sua voz cheia de promessas de futura gravidade: "Peisse!" (Por vezes sou forçada a crer que uma certa aura franciscana o meu pequeno cabeludo traz consigo, e é ela que o faz enfiar a mão pelas bocas dos cães, desde quando ainda era um bebê. Trata-se de um santinho alegre e debochado, mas a quem os pássaros praticamente vão procurar na cama, a cujos chamados atendem os gatos todos da vizinhança e que até as formigas perseguem.) E só mesmo quando é chamado por ele o beta vem à tona, belisca alguma coisa e volta para o mar que lhe improvisei - sem sal, sem ondas, sem céu, sem qualquer imensidão. E como nos primeiros dias após a sua chegada as crianças jogassem folhas lá dentro, trouxe-o do jardim, onde parecia já bem adaptado por entre os ramos da bertalha, direto para o escritório. Pensei que aqui receberia menos pó de minério, além de ser a parte mais silenciosa do apartamento. Agora estou me achando cruel, vendo-o ali, solitário, recuado aos restos de outro ser aquático que recolhi um dia das pedras da ilha do frade. Sempre me incomodou saber que os chamam peixe de briga, sendo que só ficam violentos quando confinados em aquários. Quando o comprei, diante da casinha de vidro imunda em que se encontrava, vivi o mesmo impasse que sempre me abala nessas circunstâncias: adquiri-lo ou não? Acabei optando por trazê-lo; acreditava seriamente que o estava salvando do tratamento meramente comercial que lhe era dado, da comida regrada a que estava destinado ali... O argumento lançado por mim mesma, de que comprando-o estaria incrementando o comércio e abrindo espaço para que outro fosse adquirido pela loja para substituí-lo não me convenceu, ainda mais que por detrás do vidro esverdeado eu vislumbrava já dois pares de olhos gigantes, estatelados diante daquela novidade, a vida nadando, vermelha, dentro da nossa casa... Foi assim também quando comprei quinze violetas sem flores, que definhavam a olhos vistos, sob o sol de setembro (de resto igual ao de janeiro e ao de julho, em vitória), na floricultura da esquina. Com elas a experiência foi feliz e depois de algum tempo de adaptação nunca mais deixaram de florescer. Mas o Beto está ali, quieto; parece não querer muita conversa. Devo levá-lo de volta ao jardim suspenso, e desta feita talvez o ponha em meio às violetas.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A maciez do ferro

Monumento em Berlim. Foto: Andréia Delmaschio

Meus irmãos e eu éramos, quando crianças, catadores de ferro. Sim, exatamente como os atuais catadores de lata ou de papelão. Não me lembro do que fazíamos - se fazíamos - com o dinheiro da venda dos grandes pedaços do mineral coletados nos terrenos baldios do bairro suburbano. Me lembro muito mesmo é da maciez do ferro pisado pela minha conguinha vermelha desbotada (é curioso como continuamos nos referindo à cor perdida, não mais identificável, para descrever os objetos que nos acompanham no tempo e, de dentro do box, pedimos aquela toalha de banho marrom que ninguém é capaz de encontrar, porque agora são todas bege...). Me lembro muito desse paradoxo sinestésico da maciez do ferro, amontoado em nacos que se entrechocavam sob os pés, emitindo um som agradabilíssimo. Na verdade nunca fui uma grande coletora. Embora por um tempo tenha me dedicado com afinco, nunca consegui um quarto sequer da produtividade dos meus irmãos mais velhos, e confundia, por vezes, ferro com pedra preta, o que fez, ao final, com que me excluíssem daquele trabalho, para eles, duro; para mim, macio. Lembro-me principalmente de que vivia uma contradição: se recolhesse muito ferro, não tinha como carregá-lo, por ser extremamente pesado; se recolhesse pouco, ao final do expediente tinha de colocá-lo na sacola de um dos meus irmãos, perdendo assim o renome pelo trabalho realizado. Acho que o problema era basicamente o de juntar e não poder carregar. Talvez me prejudicasse a pouca idade. Ou então a ausência do estímulo de ao menos saber em quê era investido o dinheiro conseguido com a venda, ao findar o dia. Enfim, nunca me disseram a que servia aquele trabalho, para mim de sísifo, para eles de hércules. Não tenho nem mesmo lembrança (se é que um dia soube) do modo como todo aquele ferro em pedaços teria ido parar nos acostamentos e cantões da vila garrido. Será que esta mesma que hoje entope os nossos pulmões e encanamentos com pó de minério saía, na década de setenta, a espalhar os dejetos da pelotização, discretamente, próximo à morada dos pobres? Aquele trabalho permanece na minha memória como algo por muito tempo continuado, diferentemente de quando, por exemplo, tombava um caminhão... As tardes de caras e mãos encardidas entre os meus irmãos habitam o mesmo lugar que aqueles finais de semana em que acompanhava o pai, de madrugada, até a obra onde fazia o seu bico e as noites em que mamãe me dependurava ao colo, enrolada num lençol, e ali me embalava o sono com o barulho da máquina de costura.