Ele tinha ido ao toalete quando fomos enfim atendidos pelo garçom mau humorado, que depositou na mesa, brutalmente, as quatro tigelas fumegantes. Sem esperar que retornasse, começamos a tomar o nosso caldo de feijão, deixando o seu a esfriar por ali. Foi então que chegou o pedinte. As mesas do bar ficavam num pequeno platô, acima do nível da rua, o que nos deixava na mesma altura das cabeças dos passantes. Sem cerimônias o senhor maltrapilho estendeu o braço magro por cima da murada decorativa e começou a sorver, em grandes colheradas, o mais vulgar e saboroso dos acepipes que cabem no bolso de um estudante. Naquele dia resolvemos não beber... Era uma noite fria como são poucas noites por aqui. No bar ficaram todos visivelmente constrangidos com a ousadia do pedinte que não pedia; alguns demonstravam por meio de gemidos covardes a sua indignação com a distração dos administradores, que não expulsavam dali o incômodo pobre - ou o pobre incômodo; outros, creio, se angustiavam, no íntimo, com a visão mais próxima que teriam, naquela noite, da diferença brutal, ainda que marcada por um pouco de feijão batido e, principalmente, pelo poder de entrar no bar. Nós, na mesa, nos entreolhávamos silentes, numa mistura de vergonha pela nossa condição de plenos comedores, até então ridentes, e, ao mesmo tempo, por sermos os anfitriões involuntários do conflito surdo que se instalava. Temíamos especialmente pela reação que adviria do amigo quando retornasse, transbordante de testosterona, no auge dos seus dezoito anos, e se deparasse com o pedido tão longamente esperado sendo devorado pelo transeunte malcheiroso. Rapidamente ele voltou, ainda arrumando a camisa, e, sem nos lançar sequer um olhar, sinalizou para o homem, que lhe entregasse a colher. O outro foi automático, cabisbaixo. Sério, sem qualquer traço de altivez, afetação ou divertimento com a difícil situação que o acaso lhe preparara, alex provou uma primeira colherada. Em seguida, serviu o homem, na boca, com a mesma colher. Tomou a terceira, serviu a quarta, e assim foram, até o fim, tranquilos, contentes, irmanados em seu caldo quente. Em torno, em silêncio, todos nós acompanhávamos, boquiabertos, cada um daqueles gestos inesperados.
há uma antiquíssima tradição judaico-cabalista que proibia os seus seguidores de negar esmola. Isto é, segundo a tradição, eu sou obrigado a dar esmola a quem quer que seja... regra ou não, cada pessoa que me pede esmola na rua me provoca uma espiral de sentimentos, raiva, ódio, indignação, culpa, afeto, amor, o diabo. são milhares os argumentos que me levariam a recusar a esmola, assim como há outros milhares que me levariam, sim, a dar esmola... essa situação narrada acima nos coloca exatamente nesse dilema que buscamos, muitas vezes, sublimar no nosso cotidiano pequeno-burguês... não sei o que dizer, sinceramente, mas, decididamente eu quero uma resposta... não quero ficar só no estranhamento, no incômodo, que esse incômodo me provoque uma ação, não um senão... e agora me lembro da origem do verbo dar, que é na realidade uma substantivação / substancialização do nome Deus, em latim, Dei, coincidentemente ou não, é o verbo dar no presente indicativo do nosso vulgar português. É isso que a Nossa Senhora da Conceição (concepção), a rainha das matas, disse ao mestre Irineu: chamarás essa bebida de Santo Daime, porque vem do verbo divino Dar.
ResponderExcluirA resposta, meu amigo, todos estamos atrás dela. Eu, se a tivesse, distribuiria de imediato. E embora a minha narrativa passe totalmente pela questão da mendicância, a pretensão é expor uma outra possibilidade, já que a situação se apresenta, e não é possível congelar aquele momento para ir buscar a solução. E se não resolve o conflito, aponta para outros entornos dele. E eles são tão inúmeros quanto o são os pontos de vista. De modo bastante óbvio (sempre pensamos que é óbvio o que o é para nós): aquilo que pensa o narrador sobre a cena diverge daquilo que pensa o leitor, do que pensa o garçom, do que pensa o mendigo, do que pensa alex, do que pensam os amigos da mesa, ali ainda emoldurados num bloco, por economia textual, do que pensam os clientes do bar, os administradores e, nem citados, os demais passantes. Ca-da-um-por-si e cada um também envolto no mesmo turbilhão angustioso que você mesmo descreve, é provável. Não me parece fácil desenvolver a idéia, mas, antes de ser mendigo, aquela persona é um vivente, quiçá comente, como alex e os demais. E é isso que temporariamente, ao menos, enlaça-os.
ResponderExcluirMuito bom, Déia, permita-me waldomotteá-la: assim como estamos atrás da resposta, é bastante possível que - numa irreversível reversibilidade - a resposta também esteja atrás de nós... eu preciso da resposta e ela precisa de mim - uma dependência mútua. definitivamente, estou longe daqueles que só querem buscar, sem pretensão de encontrar, num niilismo, ceticismo pessimita típico de gentalha preguiçosa... todo empreendedor que eu conheço (empreendedor no amplo sentido, é claro) é um inveterado otimista, por mais que o cenário insista em querer mostrar o contrário... porque para realizar é necessário acreditar... e muitas vezes a não-crença é uma belíssima desculpa para o pessimismo, o mundo é uma merda e ponto... curioso que, se eu for olhar os filmes de "arte" atualmente, financiado pelas grandes empresas que estão, literalmente, destruindo o mundo, boa parte deles têm esse final melancólico, o mundo já acabou mesmo e foda-se, vou assistir televisão... eu sei claramente que a busca, por si só, também é um encontro... a "reprodução", a "narração" de coisas da "realidade" por meio da "arte", muitas vezes, corrobora para a atual miséria desgraçada que a humanidade vive... me lembro de entrar na sede de uma grande usina açucareira e, no pomposo salão da recepção, ter um quadro enorme, esculpido em madeira, representando os miseráveis que trabalham no beneficiamento da cana. Ao lado, um poema do João Cabral... uma arte que reproduz a realidade corrobora para afirmá-la, pois ela é imediatamente apropriada por esquemas de produção, por maior que seja a boa vontade do artista de "denunciar" a miséria... é preciso uma arte que crie, uma arte que crie outras realidades... não uma arte que fuja das coisas reais, materiais, mas que parta dela para alçar novos vôos... o século XX já nos encheu de subjetivismos, de sentimentos pessoais que viram pretexto para poemas, canções... o meu sentimento é, claro, muito importante, mas eu quero dividir com o outro a possibilidade da salvação, da redenção - nada menos que isso... messiânico, escatológico, apocalíptico, louco... graças a Deus... me lembro de uma história, contada numa palestra, em que um gay enrustido se dirigiu ao Waldo Motta para agradecer-lhe, pois ele estava pra se matar por conta do enrustimento, quando o Bundo apareceu nas suas mãos... daí ele concluiu: caraca, não há problema nenhum em ser veado... acho que dificilmente ele teria a mesma reação se lesse "se eu morresse amanhã", do antônio maria...
ResponderExcluirAmigo querido, convenhamos: não é possível acreditar que a crônica (a categoria importa menos, mas é necessária alguma organização do pensamento, para que continuemos na ilusão da compreensão que o fato de usarmos o mesmo idioma nos concede) dê conta de uma pura descrição do real. Menos por uma possível pretensão de o abordar, ou mais, reproduzir, do que pela falta de domínio do que sejam as barreiras, imagináveis. Não são as empresas, simplesmente, que estão destruindo o mundo. Muito menos os filmes de arte por elas patrocinados... Também não é pela mera dispensa de todo patrocínio que se salva o mundo – você bem o sabe! Não devemos usar um razoável domínio da linguagem para ir além do que somos, fingindo ser outro, ou outra coisa que não somos. Continuo optando pela clareza relativa, opção que jamais ignorou os paradoxos, mas que também não ignora as aporias. O que seria, a propósito, uma “irreversível reversibilidade”? Pensemos juntos: lá na tal usina açucareira estão o quadro e o poema do João Cabral, mas eu, ao ler o seu comentário, preciso, já, já, de uma leitura (ao menos de uma descrição, para que faça eu a leitura) de cada um deles. Aliás, é curioso que deixem esse poema lá, dando margem a leituras diversas, correndo o risco de que a cena (e mesmo a escolha do poema – e principalmente do quadro) pareça irônica! Ainda mais porque por lá passam sensibilidades como a sua, que talvez venha a nos esclarecer, enfim, do que tratam. Pensando bem (e considerando que não entre no seu relato a invenção da cena, o que também seria perfeitamente plausível), a tal ironia – ou seja lá o que for – só pode mesmo se esclarecer se você o fizer. Afinal, não estivemos lá, e continuamos aqui com um quadro e um poema numa parede. E, como diz você, o século passado já nos encheu de sensibilidades etc. A canção do Antonio Maria eu não conhecia. Encontrei-a enfim pelo Google. O Bundo, li-o na praia, e realmente é uma iluminação. Mas, veja: nenhum dos dois, considerados os anos-luz que os separam no universo das criações humanas, me conduziria ao suicídio – ou à salvação. Pensar além de mim? Penso, claro, sem excessos demasiado hipócritas. Ou seja, mantenho o respeito de medir o outro por mim – pelo que sofro e saboreio.
ResponderExcluirsensível a prática resposta do Alex. Sensível sua resposta/texto, Andréia
ResponderExcluirOi Déia, creio que há vários pontos de harmonia em nossas argumentações. O que nos difere, essencialmente, em termos de posicionamento diante do mundo, e em tudo o que isso implica do ponto de vista histórico, filosófico, político, artístico e - para mim - religioso, é o seguinte: eu acredito que a arte é um meio de nos conduzir à salvação! Ao declarar isso, sei que bato de frente com séculos e séculos de formação do pensamento artístico ocidental, e me alio a uma visão de mundo rigorosamente religiosa e mística, e muito facilmente serei ridicularizado por aqueles artistas formados nos bancos da academia. Em síntese, é isso o que eu acredito, assim o defendo e também o provo, tenho um arsenal de argumentos, incabíveis aqui, por ora... Tenho o desejo de escrever detalhadamente sobre o tema, com uma abordagem histórica, em diálogo com alguns filósofos. Tenho alguns pré-textos que guardo nos arquivos, algumas citações separadas, enfim... em momento oportuno, estará no ar. Por ora, digo-lhe que assumo, descaradamente, o risco de expor a radicalidade do meu pensamento. É uma questão de fé, enfim... Alguns podem rir da minha "ingenuidade" ou do "fundamentalismo" do meu "dogma". Uma parte considerável, contudo, fará um rigoroso silêncio... A propósito, super valioso o comentário da Célia, em muito contribuiu para esta discussão. Beijos a todos! Feliz Ano Novo!
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