Monumento em Berlim. Foto: Andréia Delmaschio
Meus irmãos e eu éramos, quando crianças, catadores de ferro. Sim, exatamente como os atuais catadores de lata ou de papelão. Não me lembro do que fazíamos - se fazíamos - com o dinheiro da venda dos grandes pedaços do mineral coletados nos terrenos baldios do bairro suburbano. Me lembro muito mesmo é da maciez do ferro pisado pela minha conguinha vermelha desbotada (é curioso como continuamos nos referindo à cor perdida, não mais identificável, para descrever os objetos que nos acompanham no tempo e, de dentro do box, pedimos aquela toalha de banho marrom que ninguém é capaz de encontrar, porque agora são todas bege...). Me lembro muito desse paradoxo sinestésico da maciez do ferro, amontoado em nacos que se entrechocavam sob os pés, emitindo um som agradabilíssimo. Na verdade nunca fui uma grande coletora. Embora por um tempo tenha me dedicado com afinco, nunca consegui um quarto sequer da produtividade dos meus irmãos mais velhos, e confundia, por vezes, ferro com pedra preta, o que fez, ao final, com que me excluíssem daquele trabalho, para eles, duro; para mim, macio. Lembro-me principalmente de que vivia uma contradição: se recolhesse muito ferro, não tinha como carregá-lo, por ser extremamente pesado; se recolhesse pouco, ao final do expediente tinha de colocá-lo na sacola de um dos meus irmãos, perdendo assim o renome pelo trabalho realizado. Acho que o problema era basicamente o de juntar e não poder carregar. Talvez me prejudicasse a pouca idade. Ou então a ausência do estímulo de ao menos saber em quê era investido o dinheiro conseguido com a venda, ao findar o dia. Enfim, nunca me disseram a que servia aquele trabalho, para mim de sísifo, para eles de hércules. Não tenho nem mesmo lembrança (se é que um dia soube) do modo como todo aquele ferro em pedaços teria ido parar nos acostamentos e cantões da vila garrido. Será que esta mesma que hoje entope os nossos pulmões e encanamentos com pó de minério saía, na década de setenta, a espalhar os dejetos da pelotização, discretamente, próximo à morada dos pobres? Aquele trabalho permanece na minha memória como algo por muito tempo continuado, diferentemente de quando, por exemplo, tombava um caminhão... As tardes de caras e mãos encardidas entre os meus irmãos habitam o mesmo lugar que aqueles finais de semana em que acompanhava o pai, de madrugada, até a obra onde fazia o seu bico e as noites em que mamãe me dependurava ao colo, enrolada num lençol, e ali me embalava o sono com o barulho da máquina de costura.
Meus irmãos e eu éramos, quando crianças, catadores de ferro. Sim, exatamente como os atuais catadores de lata ou de papelão. Não me lembro do que fazíamos - se fazíamos - com o dinheiro da venda dos grandes pedaços do mineral coletados nos terrenos baldios do bairro suburbano. Me lembro muito mesmo é da maciez do ferro pisado pela minha conguinha vermelha desbotada (é curioso como continuamos nos referindo à cor perdida, não mais identificável, para descrever os objetos que nos acompanham no tempo e, de dentro do box, pedimos aquela toalha de banho marrom que ninguém é capaz de encontrar, porque agora são todas bege...). Me lembro muito desse paradoxo sinestésico da maciez do ferro, amontoado em nacos que se entrechocavam sob os pés, emitindo um som agradabilíssimo. Na verdade nunca fui uma grande coletora. Embora por um tempo tenha me dedicado com afinco, nunca consegui um quarto sequer da produtividade dos meus irmãos mais velhos, e confundia, por vezes, ferro com pedra preta, o que fez, ao final, com que me excluíssem daquele trabalho, para eles, duro; para mim, macio. Lembro-me principalmente de que vivia uma contradição: se recolhesse muito ferro, não tinha como carregá-lo, por ser extremamente pesado; se recolhesse pouco, ao final do expediente tinha de colocá-lo na sacola de um dos meus irmãos, perdendo assim o renome pelo trabalho realizado. Acho que o problema era basicamente o de juntar e não poder carregar. Talvez me prejudicasse a pouca idade. Ou então a ausência do estímulo de ao menos saber em quê era investido o dinheiro conseguido com a venda, ao findar o dia. Enfim, nunca me disseram a que servia aquele trabalho, para mim de sísifo, para eles de hércules. Não tenho nem mesmo lembrança (se é que um dia soube) do modo como todo aquele ferro em pedaços teria ido parar nos acostamentos e cantões da vila garrido. Será que esta mesma que hoje entope os nossos pulmões e encanamentos com pó de minério saía, na década de setenta, a espalhar os dejetos da pelotização, discretamente, próximo à morada dos pobres? Aquele trabalho permanece na minha memória como algo por muito tempo continuado, diferentemente de quando, por exemplo, tombava um caminhão... As tardes de caras e mãos encardidas entre os meus irmãos habitam o mesmo lugar que aqueles finais de semana em que acompanhava o pai, de madrugada, até a obra onde fazia o seu bico e as noites em que mamãe me dependurava ao colo, enrolada num lençol, e ali me embalava o sono com o barulho da máquina de costura.
Sim, Sísifo, será que alguém no panteão pode avisar a ele pra parar de empurrar aquela maldita pedra?! Não tá vendo longo que a pedra vai cair e ele vai ter de descer a montanha, pela enésima vez, para empurrar de novo a pedra, que vai cair... pois eu me recuso a reproduzir esse arquétipo, eu crio um outro Sísifo, aquele que contempla a pedra - mas que também se joga no abismo.
ResponderExcluirSísifo está lá, no texto, e nos concita a ver, do pináculo, uma tríade bem dissonante: cidade, cotidiano e poder: termos com inúmeros modos conceituais ou empíricos dedicados à análise, compreensão e demonstração da própria História da humanidade. História, posto que não seja disciplina; mas a soma de fenômenos que se estudam, [in]compreendem-se e se discutem na arte literária. Essa tríade corrobora as amostras culturais daquilo que se apoda de cidade – lugar-tempo em que tais amostras se noticiam por meio de atividades e costumes organizados no cotidiano, geralmente situados para manutenção do Poder.
ResponderExcluir“A maciez do ferro” pisa a via cotidiana fundada por um projeto político-cultural que confirmou a despolitização, a indigência e o analfabetismo na informalidade do tecido urbano. Essa via limitou uma pobreza não-acidental, distinta de sua oposição à riqueza material; destinou a vida cotidiana à estagnação e à falta de iniciativa; e consagrou a maior parte dos seres urbanos à renúncia a uma viável organização consciente da própria vida. Na contramão disso, porém, viajam as lembranças da narradora:
“Lembro-me principalmente de que vivia uma contradição: se recolhesse muito ferro, não tinha como carregá-lo, por ser extremamente pesado; se recolhesse pouco, ao final do expediente tinha de colocá-lo na sacola de um dos meus irmãos, perdendo assim o renome pelo trabalho realizado” (DELMASCHIO, 2009?).
A economia industrial (ferro –no duplo sentido – em “Ode triunfal”) inaugurou um dia-a-dia suburbano gerido por uma visão de tempo irreversível, dimensional e dedicado à produção econômica, à vida urbana; e aos valores de permanência. “A maciez do ferro” tira da latência um discurso temporal-espacial, medido e unificado em escala global, que se consagra à passividade e ao culto ao dinheiro. Nos trilhos urbanos disso, o texto, sutilmente, denuncia outras maravilhas. Vejam-se: vulgarização do sentido racional e utilitário das coisas e da vida; substituição da qualidade do “tempo vivido” por um “tempo das coisas”; formação de uma cronologia que converte o tempo da produção e do ócio em tempo de frustração e de ilusão por desejos inatingíveis; e fundação de uma consciência social que apaga a noção de subjetividade e de coletividade, transformando-as em individualismo e corporativismo
O conto de Delmaschio desabotoa o convencional, a fim de despir o conteúdo iníquo que a narradora faz retornar pela memória. O que parece um bucolismo suburbano, pleno de fatalismos românticos, revela-se um diagnóstico que aponta para estes males do cotidiano, da cidade e do poder: vida como esfera da submissão ao trabalho; trabalho admitido como obrigação para a manutenção da sobrevivência por meio de relações sociais de dependência e dominação; relações materiais de tempo-produtividade e produtividade-recompensa como principais responsáveis pelos critérios de separação, escalonamento e hierarquização sociais; trabalho cotidiano, aceito passivamente como único modo honrado de aceder ao mundo da convivência social; transformação da capacidade criativa dos seres em bens materiais; e destituição de sentido sua capacidade produtiva. Grato pelo convite, Andréia!
Olá, Andréia! Após ler seu texto e também os comentários, confesso que me senti como em uma aula de filosofia... um pouco de história e também tantas palavras que eu não tenho o costume nem de ouvir, nem de falar... e que possuem um tom, para mim, diferente e instigante, porque queria também usá-las com mais habitualidade. Foi interessante a experiência... e também esse pedacinho de infância entre irmãos... a gente sempre sente saudades desse tempo. Obrigada, professora!
ResponderExcluirNão resta dúvida de que o melhor de meu blog são os comentários.
ResponderExcluirandréia, catando ferro, na orfandade social - acumulando a orfandade social -, provocada pelas oligarquias todas, as materiais e simbólicas, com a dureza inflexível do ferro das grades impostas e impostoras...e catando esses restos da farsa e da cadeia geral em que, oligarquicamente, transformam as vidas vulneráveis; catando esses ferros de determinismo e darwinismo dos e para poucos, é como demonstrar, com as mãoes da necessidade, que o ferro pode ser desdobrável, deslocado pra outros usos, num princípio de esperança, de solidariedade geral.
ResponderExcluirmeuabraço,
luis de la mancha
Que delícia de narrativa, Andréia. Li bastante coisa antes de comentar, pois nunca tinha vindo aqui. A propósito, nos conhecemos? Recebi seu convite à leitura por e-mail. Bem, voltarei mais vezes. Aliás, voltei para o mundo dos blogs. É realmente uma delícia...
ResponderExcluirUm abraço,
Sarah.
Como vai, Sarah? Pessoalmente não nos conhecemos, não. Participamos foi do mesmo congresso, semanas atrás, na UFES. Fico muito contente com a sua leitura. Quem escreve (você deve sabê-lo) recebe cada comentário como o beta no aquário a sua comidinha. Um grande abraço.
ResponderExcluirO ferro macio que se despe da promessa de futuro, não assim o sujeito que toma de assalto a fronteira entre as infâncias, derrete a passividade e o destino outro, conquista a direção do fôlego maior. E outra página se vira, e mais um porvir se estende na mesa em busca de interpretação e velocidade, decisão e voo. Vontade de ferro.
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