Aliás o beta, a que chamamos Beto, faz dois dias já que não sai da casca de ouriço que coloquei no fundo do aquário... A não ser quando Francisco o invoca com sua voz cheia de promessas de futura gravidade: "Peisse!" (Por vezes sou forçada a crer que uma certa aura franciscana o meu pequeno cabeludo traz consigo, e é ela que o faz enfiar a mão pelas bocas dos cães, desde quando ainda era um bebê. Trata-se de um santinho alegre e debochado, mas a quem os pássaros praticamente vão procurar na cama, a cujos chamados atendem os gatos todos da vizinhança e que até as formigas perseguem.) E só mesmo quando é chamado por ele o beta vem à tona, belisca alguma coisa e volta para o mar que lhe improvisei - sem sal, sem ondas, sem céu, sem qualquer imensidão. E como nos primeiros dias após a sua chegada as crianças jogassem folhas lá dentro, trouxe-o do jardim, onde parecia já bem adaptado por entre os ramos da bertalha, direto para o escritório. Pensei que aqui receberia menos pó de minério, além de ser a parte mais silenciosa do apartamento. Agora estou me achando cruel, vendo-o ali, solitário, recuado aos restos de outro ser aquático que recolhi um dia das pedras da ilha do frade. Sempre me incomodou saber que os chamam peixe de briga, sendo que só ficam violentos quando confinados em aquários. Quando o comprei, diante da casinha de vidro imunda em que se encontrava, vivi o mesmo impasse que sempre me abala nessas circunstâncias: adquiri-lo ou não? Acabei optando por trazê-lo; acreditava seriamente que o estava salvando do tratamento meramente comercial que lhe era dado, da comida regrada a que estava destinado ali... O argumento lançado por mim mesma, de que comprando-o estaria incrementando o comércio e abrindo espaço para que outro fosse adquirido pela loja para substituí-lo não me convenceu, ainda mais que por detrás do vidro esverdeado eu vislumbrava já dois pares de olhos gigantes, estatelados diante daquela novidade, a vida nadando, vermelha, dentro da nossa casa... Foi assim também quando comprei quinze violetas sem flores, que definhavam a olhos vistos, sob o sol de setembro (de resto igual ao de janeiro e ao de julho, em vitória), na floricultura da esquina. Com elas a experiência foi feliz e depois de algum tempo de adaptação nunca mais deixaram de florescer. Mas o Beto está ali, quieto; parece não querer muita conversa. Devo levá-lo de volta ao jardim suspenso, e desta feita talvez o ponha em meio às violetas.
nosso mercantilismo forjou as grandes transformações históricas, políticas, culturais e sociais que experimentamos nos últimos séculos. mas veja só: o dilema que esse fabuloso mercado nos coloca. se comprar, sou conivente, se não comprar... é um ser vivo. que coisa!!! que incômodo... que estranho incômodo é esse que nos coloca contra a parede, nós que temos esse grave defeito de nos esforçarmos em sermos éticos (pelo menos conosco mesmos): fazer ou não fazer - se optamos por um ou por outro, não tem jeito, somos criminosos, como se fosse um pecado original.
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