Acontece que alguém tem que chutar a bola, é certo, na hora terrível da cobrança de pênalti. Sofre o goleiro, sofre o jogador, sofre talvez a bola, no seu couro calejado, que por vezes uma partida basta para desbastar-lhe as arestas e tirar-lhe o cheiro de matéria nova. Tenho receio de usar metáforas de futebol, mas até aqui penso que não fui mal. O que importa é o chute - a coragem (obrigatória) e a força dele. Mas a bola pode ir para o mesmo lado ao qual o goleiro se lança para abraçá-la - e tudo em questão de segundos. Menos ainda, talvez. E ninguém me exija verossimilhança, que só pisei num estádio uma vez - e foi por engano. A bola pode ainda se desviar. Para que isso aconteça basta que, ao resvalar na chuteira, descubra um milímetro até então oculto de lama no ponteiro também já gasto, e quase na hora de ser dispensado. Se o gramado também não ajuda... E o gramado, inclusive, sofre, se não for de plástico (artificial não seria o termo mais adequado). Aí subentende-se que falo aqui de uma pelada de várzea. Gosto bastante dessa idéia, porque em volta da quadra posso vislumbrar um bairro suburbano, e então o nosso jogador emagrece um pouco, não tem carro nem glamour. Nem moças esperando na fila para serem suas próximas namoradas. Também não precisa ser obrigatoriamente assim, claro... Voltando ao campo, lá nos cantos do gramado, já que nossa grama é viva (natural não seria o termo mais adequado), existem centímetros não pisados, e ali o mato mais alto (que não se trata nem bem - ou não só - de grama) ainda guarda um pouco de rocio (que o nosso rocio não é de rosas) e a nossa partida é logo pela manhã. Domingo. Tédio de beber no bar da esquina com os camaradas de sempre, falta de grana... E aquelas gotículas de orvalho, que irão secando lentamente com o passar do dia, permanecem lá; aguardam uma carícia do gandula, porque esse anda descalço. Em meio a todos os esquálidos jogadores, ele é o mais leviano (no sentido marioandradino do termo) e corre lépido todo o tempo que durar a partida. Sua mulher, grávida, acompanha-o a cada domingo ao local do jogo, e sempre com um misto de vergonha hierárquica e um certo sorriso escondido lá consigo, através do qual se vinga do desempenho tão ruim que o rapaz tem na cama... Alguém passa distribuindo água. Aqui você não deve imaginar as garrafinhas azuis de água mineral. Melhor: imagine-as, sim, mas reaproveitadas do lixo limpo do boteco mais próximo e reabastecidas com água da torneira da prefeitura. Mas ela mata a sede de todos, especialmente a daquele goleiro oprimido, que o irmão caçula segue com os olhos como a um super-herói; porque não basta ser herói, tem que ser super. E a bola vem na sua direção. Para ele, aquele momento se apresenta em câmera lenta, como num filme. Ela vem vindo, a princípio lenta, lentíssima, e quando ele abre os olhos ela já entrou. E entrou por entre seus finos gambitos. Seu primeiro olhar é para o irmão caçula, sentado em lugar de visão privilegiada. Ele bem sabe que o pequeno o compara ao Spiderman desde que o viu, um dia, escalando um alto muro, na vizinhança. O irmão menor, em silêncio, sente latejarem as têmporas, na hora da cobrança. E internamente reza, como se o irmão estivesse no cadafalso... E a bola passa - por entre as pernas. A cabeça do goleiro reclina incontinenti...
Gente... o que é isso!!! Você já morou em São Gabriel da Palha?!
ResponderExcluirNão, mas confesso que, enquanto escrevia, lembrava o tempo todo daquele campinho ali ao lado da estrada, lotado nos fins de semana, quando passava voltando de Nova Venécia...
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