Por que será que têm me perseguido as carcaças? Geralmente os leitores, ao se depararem com essa palavra, se lembram logo de baudelaire. É porque ninguém encontra carcaças reais por aí assim, à torta e à direita. O mais longe que a maioria chega é mesmo ao poema, na sua tradução para o português. Mas eu, sim. Eu encontro carcaças. Melhor dizendo: as carcaças me perseguem.
Como assim? Uma fruta que esqueci sobre a pia, e que as formigas devoraram por dentro, deixando intacta a casca; o gato morto no asfalto, inchando com as chuvas de maio... Deve ser que ando demais para ir de casa ao trabalho, olhando os cantos da rodovia, ao atravessar os municípios da grande vitória (esse hábito de nomear os próprios com iniciais minúsculas ainda me causa problemas, especialmente quando não desejo ser irônica)...
E hoje, conversando com o dinho no café da padaria, notei que algumas pessoas têm o dom de - mui discretamente - trazer à tona as nossas próprias carcaças. Ou seriam couraças? Não sei se reich ou freud se viraram no túmulo; na verdade não gosto dessa expressão, que se baseia em uma série de impossibilidades: toda vez que se acha que alguém vulgarizou um ponto das teorias freudianas, por exemplo, logo um sujeito solta: "Freud deve ter se revirado no túmulo". Que túmulo, afinal? E que freud, enfim? Mas, num esforço de consideração de toda a abstração que traz esse chistezinho sem graça, suspeito em geral que, ao contrário do que se pensa, freud adoraria ouvir o que se diz sobre o que disse um dia...
Bom, estava no café com o dinho, e talvez retorne até lá, impressionada com a capacidade que tem a sua presença de bom ouvinte, todo olhos, acostumado a pensar a pausa, o silêncio entre as frases de um diálogo (ou monólogo)... a sua capacidade enfim de desenterrar as nossas carcaças. Uma presença que por vezes se disfarça entre cortinas...
E não é que ontem a frase nefasta nos apareceu no texto de uma entrevista que líamos em aula? Estava lá, com todas as letras: "Freud deve ter se revirado no túmulo". Era sobre o fim do tabu do incesto, projetando um momento em que a família nuclear tivesse já se transformado, após a disseminação da reprodução humana por meio da clonagem...
O entrevistado lembrava freud para afirmar que algo como o complexo de édipo teria de ser revisto, numa situação em que um filho pudesse ter dois pais e duas mães (um biológico e outro doador), e quando pai e filho fossem, na verdade, irmãos gêmeos, o que aconteceria também com mãe e filha, sendo que irmão e irmã seriam tão estranhos, sanguineamente, como pai e mãe, podendo inclusive virem a se apaixonar...
Ali pausamos, a pedidos, para que eu explicasse o que vinha a ser o complexo de édipo, contando, na introdução, com o resumo da peça feito pelo carlos augusto, sempre a postos com sua memória multimídia, e, quando ia terminando minha fala, que dizia do desejo filial, pincel na mão riscando algo no quadro, principiei a ouvir a negativa que se avolumava a partir dos cantos da sala, feito um coaxar, na turma eminentemente masculina: "Não! Não! Não!". E um dos rapazes ainda acrescentou: "Nem morto!"; e um outro: "Nem que me pagassem!", o que quase nos mata a todos de rir.
Freud também gargalhava, em decúbito ventral.
hahahahaha.... o que seriam dos eruditos se não fosse o povo?!?! Os eruditos precisam do povo pra sobreviver, afinal! Dia desses eu li numa matéria de política, na revista carta capital, um texto mais ou menos assim: "fulano de tal disse tal coisa, mas, num lapso freudiano, ele quis dizer outra coisa"... imagina: freud é pop!
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