O Aboio está de volta. É o mesmo, porém diferente. Como espaço de escrita que é, volta a servir de desaguadouro a tudo o que me encanta, ou, pelo contrário, me apavora. Depois de tantos anos de afastamento, eu mesma me desreconheço nas postagens mais antigas. Os amores são outros, as causas são outras, é outro o país.
sexta-feira, 30 de março de 2012
quinta-feira, 29 de março de 2012
Mentir
- Mãe, eu vou mentir.
- O quê?
- Eu vou mentir.
- Por quê?
- Porque eu estou crescendo!
- O quê?
- Eu vou mentir.
- Por quê?
- Porque eu estou crescendo!
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quarta-feira, 28 de março de 2012
A verdade, parte 2 (autoria duvidosa)
Emilie Faife
Epígrafe: aforisma de Nietzsche retirado do Dicionário de citações.
Primeiro parágrafo, introdutório: a história da filosofia em doze linhas.
Segundo parágrafo: ponto de vista sociológico.
Terceiro parágrafo: telas de Rembrandt e Dalí.
Quarto parágrafo: o livro de Jó.
Quinto parágrafo: La tia Julia y el escribidor, de Vargas Llosa. "Dois rumos", de Drummond.
Sexto parágrafo: um vestido transparente que esqueci por uma semana no varal, exposto ao sol e à chuva. Pousaram nele todos os pássaros que quiseram; cagaram nele; virou um trapo. Vendo-o lá esquecido, um menino da vizinhança lançou-lhe uma pedra certeira, que rasgou a renda já fragilizada pelas intempéries.
Sétimo parágrafo, conclusivo: limpar cuidadosamente, com o trapo embebido em álcool, o chão do quarto em que vomitaste.
quarta-feira, 21 de março de 2012
Les parfums
Acabo de ler o romance Les parfums, da estreante canadense Nolei Note. Na trama, após a morte de seu companheiro secreto de anos de convivência, Justine - a amante -, sente entranhar-se em seu cérebro a idéia inexpugnável de que deve, por direito afetivo, herdar-lhe algo. Após algumas semanas elaborando um longo inventário simbólico através do qual revive as cenas mais tórridas daquela paixão delirante, e sentindo agora, estranhamente a posteriori, ciúmes como nunca antes havia sentido da esposa de Franc, ela resolve que vai ficar com os perfumes que foram dele, já que a memória olfativa era o que mais o "trazia de volta", para usar as suas próprias palavras.
Justine arma então uma cena complicadíssima, simulando um assalto real, para tomar de Honnête os vidros de perfumes. Curiosamente, os meses que Justine gasta para arquitetar o roubo são o tempo que a viúva, atormentada pelas providências de ordem prática, leva para resolver o que fazer com aqueles frascos que a ela restaram duplamente incômodos: primeiro, por provocarem a lembrança automática do ex-marido, trazendo de volta a carga de sentimentos ambíguos a que uma relação de décadas não pode escapar. Segundo, pela qualidade mesma dos perfumes, com os quais ela sempre implicou, implicância que agora, em lembrança, lhe soa nefasta.
Resultado: quando Justine arromba a porta do closet de Honnête e se aproxima enfim da cesta onde, segundo a diarista, estariam os perfumes, descobre que eles não estão lá. Honnête já os tinha distribuído entre os funcionários encarregados da limpeza do prédio. A partir da descoberta do destino dos odores amados, Justine se vê presa aos corredores e pátios do prédio em que vive Honnête. Obcecada pela necessidade de sentir o cheiro do amado morto, ela se transforma, enfim, em faxineira do apartamento de Honnête, um modo de poder conviver de perto, ainda que eventualmente, com aqueles cheiros.
O que me encanta nesse livro é a descrição de cada um dos cinco ou seis aromas em questão. Eu queimaria o resto inteiro das páginas se tivesse que escolher entre aquelas duzentas e esses trinta e poucos parágrafos. Ao lê-los, tive a impressão de reconhecer um dos perfumes, pude imaginar uns outros tantos e fui tomada de um enorme desejo de provar aqueles que me pareceram os mais exóticos. Um livro apaixonante, quiçá devido à milenar paixão humana pelos perfumes...
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quarta-feira, 14 de março de 2012
Pérola
Dentro da ostra,
uma pérola.
Dentro da pérola,
Arnaldo Antunes.
(Andréia Delmaschio/Jô Bittencourt)
uma pérola.
Dentro da pérola,
Arnaldo Antunes.
(Andréia Delmaschio/Jô Bittencourt)
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O louco
Viajou para a China,
indiferente,
assim que lhe nasceram os filhos,
aos pares.
No avião
leu um poema metalinguístico
e chorou
convulsivamente.
indiferente,
assim que lhe nasceram os filhos,
aos pares.
No avião
leu um poema metalinguístico
e chorou
convulsivamente.
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segunda-feira, 12 de março de 2012
Gritar
- Mãe, você fica chateada quando eu grito?
- Ah, fico sim!
- Então tá! Eu prometo que agora só vou gritar bem baixinho!
- Ah, fico sim!
- Então tá! Eu prometo que agora só vou gritar bem baixinho!
sábado, 10 de março de 2012
Primeiro passeio de trem
Trem sobre ponte da estrada de ferro Vitória a Minas.Fonte: http://viagemdetrem.blogspot.com.br/
- E de que é que você gostou mais, Francisco?
- Do maquinista!
sexta-feira, 9 de março de 2012
quinta-feira, 8 de março de 2012
A caixa de guardados
Como num susto lembrei-me, de repente, de uma antiga caixa de guardados que vi pela última vez há mais ou menos cinco anos, quando ainda morava em Brasília. É muito provável, aliás, que ela tenha se extraviado na mudança para Vitória, junto com os perfumes, o relógio de vento e o material todo do escritório, nunca mais encontrados. A mim mesma me surpreende que só agora tenha me lembrado dela, embora o turbilhão que representou esse retorno e os seus desdobramentos justifique em parte o longo esquecimento. Dentro dela eu depositei, ao longo de décadas, cartas e cartões, além de fotos raras ou queridas e algumas pequenas esquisitices simbólicas, cujo valor só eu mesma poderia recuperar.
Quando comecei a lecionar, aos dezenove, eu me incomodava com a vulgaridade da versão ainda mais juvenil desse mesmo costume de guardar lembranças. As meninas das novas gerações prendiam às folhas da agenda, com clipes coloridos, tickets de shows e passes escolares, além dos papéis das balas e chicletes que recebiam dos colegas e namoradinhos, nesse caso anotando ao lado o nome do ofertante, o dia, a hora e o minuto em que tinham recebido o efêmero mimo. Nem é preciso dizer que a prática, ao final, lhes furtava muitas horas de estudo...
Voltando ao meu baú da memória, lembro-me, quase como se o tivesse agora mesmo entre as mãos, de um bilhete deixado por mamãe para mim e meu irmão caçula, escrito num losango amarelo que restou de um bloco de notas. As frases curtas apresentavam uma sequência de erros ortográficos que um de nós dois corrigiu em vermelho e depositou de volta sob o telefone. Sua caligrafia, redonda à moda dos mais parcamente alfabetizados na primeira metade do século passado, sempre esteve associada, para mim, às dificuldades que eu sei que enfrentou, na infância, para ir de casa à escola e aprender aquele tanto. Quando criança, com pouco esforço eu entrevia, nos seus raros escritos, como que restos de pedras e foices, arreios e panelas areadas no córrego... Ainda hoje me enfeitiça e desagrada encontrar, numa redação ou prova de aluno, uma caligrafia tão feiamente arredondada... e ponho-me a imaginar, para além da personalidade que pariu aquelas palavras, o percurso todo que o escrevente fizera até a sala de aula onde enfim nos encontramos...
Quando penso na caixa de cartas perdida quase que materializo à minha frente a flor azul de origami que a amiga Evelyn (por onde andará?) me trouxe do sul do país em uma de suas viagens, e que continha no interior, ao fim da desdobradura, apenas o dístico: "Uma semana é uma vida. Tenho o tempo das borboletas.", e que me foi entregue junto com um livro de poemas do Brecht que volta e meia faço circular entre os alunos como a prazerosa e gratuita tarefa de casa.
Junto com a flor de papel se foi também um cartão postal que o poeta Miguel Marvilla me enviou da Espanha (ou da Alemanha) logo depois que nos conhecemos, casualmente, numa viagem entre Vitória e Colatina, durante a qual inventamos e recheamos com muitos detalhes um encontro entre Mário de Andrade e Fernando Pessoa, alegremente inspirados pelo fato (raro, segundo Miguel) de nos sentarmos lado a lado no ônibus, eu lendo este e ele lendo aquele.
Havia ainda um postal que me mandou o Nino na data do meu aniversário - que era também a do dele -, ilustrado com uma foto do Palácio Anchieta. Nessa época não parecia estranho alguém ir até o Correio para mandar a um amigo residente na mesma cidade uma foto de um ponto turístico da cidade em questão. No verso o cartão trazia uma discreta declaração de amor, daquelas resultantes de muitos pequenos rascunhos inseguros e só depois desenhada em definitivo, para vir enfim a perder-se - como todas as declarações de amor ditas ou ouvidas por todos os amantes que pela terra passaram. Algum tempo depois, num desses infelizes incidentes que por vezes separam para sempre duas pessoas, o Nino teria tentado me afogar num rio do sul da Bahia. Curiosamente, não me desfiz do seu postal sui generis.
Lá estavam também dois trechos de poemas do Mário Quintana que me tinham sido dedicados pelo amigo Jair na década de oitenta, quando apenas nos aproximávamos, na biblioteca central da UFES, um trevo de quatro folhas plastificado, presente de mamãe, e ainda um curioso bilhete de Joana, datado de junho de 1987, ano em que iniciamos o curso de Letras, passado a mim de mão em mão, do fundo da sala até adiante, na aula de Linguística, no qual ela dizia que eu era uma loira de "alma morena", etcétera, e reclamava do meu atraso (grafado ao mesmo tempo com s e com z)... Lá estava também um guardanapo de bar colhido em Copacabana, de passagem para Porto Alegre, em que cada um da turma, recém-saída do ensino médio, escreveu uma pequena frase para guardar de lembrança, todos com muito medo de parecer piegas aos olhos dos demais, naquele tempo dos simultâneos arroubos e tentativas de contenção das declarações de amor-amizade. Perdi também a foto do Preto, em que ele posava junto com o irmão Carlito, que não cheguei a conhecer, pois já tinha sido morto na época em que fui presenteada com a foto, presente que nunca entendi bem por que é que recebi... E ainda o grande volume de cartas longas, de conteúdo secreto e por vezes bastante doloroso, recebidas da Sheila, no ano em que morei em Colatina.
Junto com a flor de papel se foi também um cartão postal que o poeta Miguel Marvilla me enviou da Espanha (ou da Alemanha) logo depois que nos conhecemos, casualmente, numa viagem entre Vitória e Colatina, durante a qual inventamos e recheamos com muitos detalhes um encontro entre Mário de Andrade e Fernando Pessoa, alegremente inspirados pelo fato (raro, segundo Miguel) de nos sentarmos lado a lado no ônibus, eu lendo este e ele lendo aquele.
Havia ainda um postal que me mandou o Nino na data do meu aniversário - que era também a do dele -, ilustrado com uma foto do Palácio Anchieta. Nessa época não parecia estranho alguém ir até o Correio para mandar a um amigo residente na mesma cidade uma foto de um ponto turístico da cidade em questão. No verso o cartão trazia uma discreta declaração de amor, daquelas resultantes de muitos pequenos rascunhos inseguros e só depois desenhada em definitivo, para vir enfim a perder-se - como todas as declarações de amor ditas ou ouvidas por todos os amantes que pela terra passaram. Algum tempo depois, num desses infelizes incidentes que por vezes separam para sempre duas pessoas, o Nino teria tentado me afogar num rio do sul da Bahia. Curiosamente, não me desfiz do seu postal sui generis.
Lá estavam também dois trechos de poemas do Mário Quintana que me tinham sido dedicados pelo amigo Jair na década de oitenta, quando apenas nos aproximávamos, na biblioteca central da UFES, um trevo de quatro folhas plastificado, presente de mamãe, e ainda um curioso bilhete de Joana, datado de junho de 1987, ano em que iniciamos o curso de Letras, passado a mim de mão em mão, do fundo da sala até adiante, na aula de Linguística, no qual ela dizia que eu era uma loira de "alma morena", etcétera, e reclamava do meu atraso (grafado ao mesmo tempo com s e com z)... Lá estava também um guardanapo de bar colhido em Copacabana, de passagem para Porto Alegre, em que cada um da turma, recém-saída do ensino médio, escreveu uma pequena frase para guardar de lembrança, todos com muito medo de parecer piegas aos olhos dos demais, naquele tempo dos simultâneos arroubos e tentativas de contenção das declarações de amor-amizade. Perdi também a foto do Preto, em que ele posava junto com o irmão Carlito, que não cheguei a conhecer, pois já tinha sido morto na época em que fui presenteada com a foto, presente que nunca entendi bem por que é que recebi... E ainda o grande volume de cartas longas, de conteúdo secreto e por vezes bastante doloroso, recebidas da Sheila, no ano em que morei em Colatina.
Quanta coisa mais não se perdeu, para além dessas, das quais ainda posso me lembrar...
E esses papeizinhos circulavam tão fartamente, antes do evento do correio eletrônico! Eu mesma não era muito afeita a guardá-los, mas, desde que os tinha recebido, não tinha mais como me desfazer deles, pela carga afetiva que representavam. Permitia-me, contudo, uma espécie de faxina anual, quando me desfazia daqueles cuja relação com o remetente já não era efetiva - ou quando não me sentia tocada, à simples visão do escrito, ou pela lembrança do momento em que o encontro se celebrou. Dentre todos, os que restaram até o desaparecimento da caixa provavelmente tinham o seu quê de valor estético, para mim. Assim muita coisa ia para o lixo, uma prática que alguns amigos consideravam rara e mesmo um sinal de frieza da minha parte. Minha irmã mais velha, por exemplo, posso apostar que ainda hoje guarda, num recôndito da sua casa, as cartas de amor que trocou na juventude - provavelmente tão perdidas para sua memória quanto aquelas que de eu fato perdi, com a mudança, e que neste instante não posso recordar.
E esses papeizinhos circulavam tão fartamente, antes do evento do correio eletrônico! Eu mesma não era muito afeita a guardá-los, mas, desde que os tinha recebido, não tinha mais como me desfazer deles, pela carga afetiva que representavam. Permitia-me, contudo, uma espécie de faxina anual, quando me desfazia daqueles cuja relação com o remetente já não era efetiva - ou quando não me sentia tocada, à simples visão do escrito, ou pela lembrança do momento em que o encontro se celebrou. Dentre todos, os que restaram até o desaparecimento da caixa provavelmente tinham o seu quê de valor estético, para mim. Assim muita coisa ia para o lixo, uma prática que alguns amigos consideravam rara e mesmo um sinal de frieza da minha parte. Minha irmã mais velha, por exemplo, posso apostar que ainda hoje guarda, num recôndito da sua casa, as cartas de amor que trocou na juventude - provavelmente tão perdidas para sua memória quanto aquelas que de eu fato perdi, com a mudança, e que neste instante não posso recordar.
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sábado, 3 de março de 2012
Pro domo
A loucura tanto é a alienação quanto a desalienação.
(Jacques Derrida)
Cai, querubim,
a cada sábado um degrau.
Depois vai fazer a feira.
Tudo segue em ordem lá fora -
ameixas queimando
na banca de orgânicos,
melancias cozinhando
ao sol de mais um março.
Tua loucura e tua lucidez
são dois instantes
de desvario.
(Jacques Derrida)
Cai, querubim,
a cada sábado um degrau.
Depois vai fazer a feira.
Tudo segue em ordem lá fora -
ameixas queimando
na banca de orgânicos,
melancias cozinhando
ao sol de mais um março.
Tua loucura e tua lucidez
são dois instantes
de desvario.
Órgão
À superfície do abismo,
na ponta seca da língua,
pressinto o gélido húmus.
Gotículas do suor
sabem a sal e pimenta.
Sigamos, cavando a unha,
a estranha massa disforme!
Avante mais uns milímetros
e atingiremos
a pasta quente
do coração.
O coração é músculo oco,
um órgão,
centro do escudo.
Os zelos, inalcançáveis,
vivem reféns
nas altas câmaras do cérebro.
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