sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Educado

No restaurante, ao fim do almoço, Francisco anuncia, sem afetação:
- Mãe, eu quero ser um homem educado.
- Você já é muito educado, meu filho.
- Mas eu quero ser igual àquele moço ali.
(Na mesa ao lado almoçava sozinho um senhor de setenta anos, tão discreto e silencioso que eu nem mesmo o tinha percebido. Dir-se-ia a própria solitude).

Analfabeto

Kate Mcdowell: Soliphilia.
 
- Mãe, eu sou um malfabeto?

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Carta aberta 35

Heitor, houve um acidente, sim.
Áurea - desta vez ao menos - não exagerou.
O desfecho sempre poderia ter sido mais trágico,
mas a perda resultante é uma lástima.
Segue sendo.
O meu abraço.
A.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Carta aberta 34

Ahhhhh, Dea!
Entendi, agora. Dei uma olhada no blog e o Anonymous tá "pê" da vida com a inexistência dessa dama frágil chamada realidade...
Tomara que o Hector beije bem mesmo, hein!? rsrsrs
Não encontrei o lap top e não faço ideia de onde posso ter deixado.
Estou te escrevendo de uma lan house
e já muito preocupado com o material que perdi, a maioria sem cópia,
o que me dá a estranha sensação de que nem sei ao certo o que perdi.
Beijos beijos,
Saudades,
H.


terça-feira, 27 de novembro de 2012

Carta aberta 33

Não sei, querido,
alguns heitores - digo leitores -
queriam que "você" fosse você.
As pessoas se sentem ofendidas com essa mentirada.
De um certo modo, somos todos toxicômanos de identidade.
(E onde estava o lap top?)
Beijos,
A.

Carta aberta 32

Andréia, Penha, como assim?
Me descobriram achando que eu existisse?
Mas como assim, se as palavras me deixaram e eu estou aqui espavorido sem abecedário?
E qual a chateação do mundo?
Beijos!
Heitor, o Braga.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Carta aberta 31

M, H, como vão?
Alguém acha/descobriu que vocês não existem.
Alguém pode/parece ter se chateado.
Vocês existem, sim? (Por favor, respondam, que nós mesmas já começamos a duvidar!)
Beijos,
Andrea, Andréia.

domingo, 25 de novembro de 2012

Carta aberta 30

Heitor,
você não imagina como é difícil eu me colocar no seu lugar.
Definitivamente, não sei imitar o seu estilo.
Seria mais fácil se você tivesse respondido ao meu último e-mail.
Ter de inventar absolutamente tudo me dá um cansaço quase divino.
Pode parecer, às pessoas que lêem este post, que você não existe,
sabendo-se contudo, como sabemos nós dois, que eu é que não existo.
Um beijo. Espero que encontre logo seu lap top.
Andrea.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Carta aberta 29


Era o Segundo Seminário "A Educação Estética", na PUC.
Valeu mesmo foi o minicurso sobre o leitor na ficção e na autobiografia,
com a Raquel Guimarães - muito jovem e muito arguta leitora de
Drummond, de Nava, de Graciliano.
E boa viagem pra São Paulo, então. Seus pais ainda moram em MS?
Beijos.
A.

Carta aberta 28


Que legal, Dea! Que evento e minicurso eram?
Também tenho essa sensação com viagem... de desautomatizar e ser mais imprevisível...
Ah, bem que eu queria te visitar logo logo. Mas antes de ir pra casa dos meus pais vou visitar minha vó e uma tia no interior de SP.
Estamos dando uma força porque outra tia faleceu em outubro, e era o sustentáculo da casa.
Obrigado pelas palavras sobre a dissertation!
Beijinhos,
H.

Carta aberta 27


Estou bem, Heitor. Passei a semana em BH, em Seminário.
Qualquer viagem é um pouquinho de paz, um descanso na loucura -
que me perdoe o Guimarães. Fiz um ótimo minicurso: como é bom ser,
de novo, aluna!
Você vem me ver no fim do ano? Deve vir um conhecido de BH passar o
réveillon. Venha também!
Olha: fique feliz com o corre-corre do final. Pior é o nosso caso,
aqui: houve greve e por isso o
próximo período (que seria o período passado) se iniciou dia 19!
Beijos. A.

Carta aberta 26


Dea, tô numa correria lascada aqui com atribuições de final de ano: provas, TCCs, trabalhos, fechamento de notas...

Você como está, querida?

Saudades.

Beijocas!
 
H.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Manu

- Mamãe, a Manu é linda, não é?
- É sim.
- Eu acho que ela gosta de mim!
- Ah, com certeza. E como foi que você descobriu?
- Ela desenhou um navio no meu caderno!

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Soletrando

Flora, com a revista no colo:
- E... u... b... e... b... i.
(E logo depois mais rápido):
- E... u... b... e... b... i... E... u... b... e... b... i... Mãããe, eu li, eu bebi!

domingo, 18 de novembro de 2012

Vida de bailarina

Paula Rego.
 
Os que compram o desejo
pagando amor a varejo
vão falando sem saber
que ela é forçada a enganar,
não vivendo pra dançar,
mas dançando pra viver!


(Chocolate/Américo Seixas: "Vida de bailarina")

Três da tarde. Maria chora.

As lágrimas vão molhando o porcelanato e ela, enfim, lhes acha uma utilidade. Com o pé, empurra o balde de plástico. À noite, calcula quantos quilômetros caminhou por entre aqueles seis cômodos, conduzida pelo desinfetante.

Maria já deu duas voltas ao mundo sob o odor artificial da lavanda. Maria prende os cabelos no alto da cabeça. Semelham um espanador. Maria pinta os cabelos da mesma cor do espanador. Escreve na nota de compras, dependurada na geladeira: alho, bucha, batata, espanador. Maria penteia os cabelos como quem penteia o espanador. E se confunde com o lustre, a mesa de canto, o abajur, o aspirador de pó.

Marido saiu cedo, muito cedo, para o trabalho.

O abajur não acende mais, deu defeito. Marido chega tarde, não percebe que a luz se apagou. Maria brilha mais que o abajur com defeito. Maria desinfeta, Maria limpa, Maria arruma, mas a casa nunca está a contento. Maria está insatisfeita e a insatisfação é o seu último nicho de humanidade.

Maria elege responsáveis pela sua infelicidade. Maria não sabe mais a quem culpar. Marido sorri pelos cantos.

Ao meio dia Marido chega, irrepreensível, para o almoço. Marido esconde as mãos. Tem as costas caídas, os olhos baços, o fígado em frangalhos.

Piedade Maria não tem. Maria vive para os demais, como o milho vive para o frango, portanto a culpa da existência de Maria é deles. Ela quer juros e correções monetárias pela sua dor.

Marido não gosta de números. Marido gosta de nomes.

Maria quer governar o mundo, mas o mundo é um catre. Tranca, catraca, cárcere, calabouço. Maria se confunde. Maria teve um filho, porque um filho tinha de ser tido, tinha de ter sido. Maria tem um carro, porque um carro tem de ser tido.

Maria vai às compras, Maria confraterniza, Maria antipatiza. Maria afia as garras. Não pode mais usar biquínis. Maria luta contra a celulite. Maria tem o pé pequeno como o das gueixas. Nunca lhe foi permitido andar descalça. A filha também não anda descalça.

Marido não percebe, Marido não se importa.

Maria cozinha, Maria arruma, Maria passa. Maria organiza as gavetas, ordena as cuecas do Marido. A ordem vem de fora, alienígena, um meteoro. O amor é outra palavra. Maria já não ouve muito bem.

Maria compra lingeries, acende velas. Marido chega com hálito de cerveja, mas Maria não conhece o cheiro da cerveja. Não, Marido não bebe cerveja!

Marido desorganiza as gavetas, espalha copos pela casa. Marido vende, doa a televisão. A televisão não faz falta. Maria faz falta, como faz falta o sofá.

A criança rasgou o sofá. Maria castiga. Maria espancou um pouco a sua criança. Maria pensa como criança: mulher faz papel de mulher, Marido faz papel de Marido, criança faz papel de criança.

Marido rasga papéis. Marido escreve, escondido, lindas obscenidades. Maria empalidece diante de cenas de sexo. Maria é uma criança.

Às seis da tarde, Maria chora.

Marido se atrasa.

E Maria sabe, no fundo sabe, que a vida finda. Um dia, finda. Quando menos se espera, termina. Maria de repente se descobre mortal. Num átimo se vê entre os demais – todos mortais.

Maria morrerá.

Na geladeira perecerão os caquis. As gavetas, em breve, desordenadas. Só Marido, pleno de culpa, jamais restabelecerá a ordem interior. Jamais uma nova ordem, sem Maria, a faxineira, Maria, a arrumadeira, Maria, a babá, Maria, serviço bancário.

Marido dá dinheiro, Maria paga as contas.

Maria é uma santa. Marido geme na cama da vizinha. Marido tem vida dupla, de malabarista. Maria tem meia vida, de bailarina.

Maria deprime, Marido traz um presente. Maria fica contente. Por dias, fica contente.

Marido parece triste. Maria traceja tramas, Maria tem o dom das aranhas. Maria planeja a mortalha, mas o avesso do bordado traz um borrão.

Marido adoece, Marido se esforça, bate ponto às doze e às dezoito. Marido quer ser fiel. Marido definha. Cada culpa do Marido é uma vitória de Maria. Pena, Maria não tem.

Marido também morrerá.

Maria se procura, se acha, se sente vitoriosa. De repente entende que ninguém tem culpa. Aos poucos, Maria intui. A intuição é o seu forte, junto com o instinto materno, a fé em Deus, o amor eterno e os arranjos de Natal.

Maria intui que Marido é Marido e Maria é Maria. Não há nada que verdadeiramente a impeça de dar a volta ao mundo. Ela por vezes sente o influxo dos desejos, mas tem um protocolo a cumprir, até que a morte os separe. Maria é. Maria sabe que é, mas o que é mesmo que Maria é?

Marido bem sabe o que não é.

Maria tem medo. Ao erguer o tapete – o marido detesta tapetes –, Maria treme e lembra o muxoxo da mãe, fundo no quintal, numa terra distante, num tempo distante...

Maria não enxerga. Recorda apenas as lágrimas da mãe caindo na terra, suas fundas olheiras, a frágil imagem, fundida à do pai...

O pai desarrumava as gavetas...

E até a morte os separou.

Prefeito

- Mãe, não é que o Luiz Paulo perdeu?
- É verdade, rs.
- E o Luciano ganhou?
- Ganhou.
- Por que o Luciano é Rezende?
- É o sobrenome dele.
- E agora que ele ganhou, ele é só Luciano?
- Não, continua Rezende.
- E não é que ele não existe?
- Como assim? Existe, sim.
- Mas eu nunca vi o Luciano! Eu só vi a foto dele no muro. Onde ele mora?
- Não sei...
- Tá vendo? Eu vou pedir ao meu pai pra me levar lá na Prefeitura, pra ver se ele mora lá.

Mamadeira

- A partir de hoje eu não tomo mais mamadeira.
- Por quê?
- Porque eu sou homem.
- Então você tem de comer alguma coisa.
- Tá bom. Homem come o quê?

Mágico

Cândido Portinari: Menino com estilingue.
 
- Mãe, eu queria me vestir de mágico!
- Está bem. E você precisa de quê?
- De nada, eu só preciso de mim mesmo!

sábado, 17 de novembro de 2012

Céu nublado

- Mamãe, o sol está vestindo a roupa de passear!

Carta aberta 25

Heitor,
não estou certa de ter aqui o Reino dos Medas, para enviá-lo a você.
Também não acho que o encontre em sebo - não sei.
De todo modo, daremos um jeito para que você o leia.
Por que foi abjurado? Diz o Reinaldo que a ironia está ausente, e ela não pode faltar.
Beijos,
Andrea.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Carta aberta 24


Dea!
Fiquei chateado com o cacófato, não!
É que gosto da aspereza da língua quando a informação vem clara e precisa, mesmo quando surgem esses sons desencontrados das palavras.
Acho que a imagem do áspero vem do Guimarães, estive relendo o Grande sertão nas últimas semanas, por conta de aulas de Literatura Brasileira.
Mas na obra dele aparece outro teor, mais próximo da ideia de reflexão e ação: "quem mói no asp'ro não fantasêia"...
Estou muito a fim de ler esse livro do Reinaldo Santos Neves, procurarei por ele nos sebos.
Por que o Reino dos Medas foi abjurado?
Bateu muita saudade, também; agorinha mesmo, eu estava ali atrás do bloco C (bloco de Letras da universidade aqui em Cornélio) fumando um cigarro e me lembrei de você. Após dias muito secos e quentes, choveu bastante e a temperatura caiu, o céu limpou. Está uma tarde lindíssima aqui, o céu todo azul, dá pra ver os montes, sedes de fazendas, muito verde para os lados de Londrina. Aí achei tudo isso lindo e me lembrei de você. Que bom seria você ao lado, a gente proseando e contando histórias, dando risadas e olhando pras coisas.
Um beijo, Déa.
Heitor.

Carta aberta 23


Hei tor! Ficou chateado com o lance do cacófato? Espero que não!
Eu busco cacófatos quase que inconscientemente, mas também não
me importo, não. Deve ter soado antipático, escrevi depressa, no calor da emoção.

No mais, só chamam à atenção detalhes assim quando o texto é muito bom.
Olha outro cacófato ali: "e foi se tornando uma amiga". Rs.
A boneca russa é a matrioshka (não sei direito como se escreve), aquela
que tem uma dentro da outra, então usei a imagem para designar
surpresa. Estou fraca de palavras. Sim, até no áspero a língua é bela.
Isso é Guimarães ou Heitor?

O Reinaldo Santos Neves é um grande romancista. Há alguns meses fiz parte de uma banca de mestrado na UFES sobre a obra dele. O mestrando - Nelson Martinelli - é excelente e trabalha a autoficção. Esse livro que você cita, o primeiro,
foi abjurado pelo autor e agora está virando filme. Também não é, entre todos,
aquele que eu mais aprecio.
De repente muitas saudades. Quando é que vamos nos falar pessoalmente,
amigo querido?
Abraço,
Andrea.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Carta aberta 22


É verdade, Dea, dá uma boa "cacafonada" a expressão "crítica capixaba".
Mas sabe que não me incomodo muito com esses sons desagradáveis quando expressam um conceito, uma imagem...
Até no áspero a língua é bela, não?
Você começou como uma referência bibliográfica (li muito de você na UEL, em tardes compridas - acho que já lhe disse isso) e foi se tornando uma amiga.
Quer coisa mais gostosa que isso!?
Boneca russa é surpreendente?
Hein, você conhece um livro de 1971 chamado No Reino do Medas, de Reinaldo Santos Neves?
Ouvi falar dele por meio da adaptação ao cinema. A história se passa em Vitória.
Fiquei com vontade de ler/assistir.
Beijos!

Heitor.

Carta aberta 21


 
Como vai, Heitor? Seu texto da dissertação é primoroso, apaixonante, inteligentíssimo. Apesar do cacófato, achei curioso você me chamar de "crítica capixaba". É que nunca ouvi essa expressão, acredita? E chamou-me à atenção justo porque inédita. Daí se pode concluir muita coisa acerca do Espírito Santo, amigo, das dificuldades com que (ainda) trabalhamos aqui. Mas as coisas vêm mudando; aos poucos vêm mudando – e, às vezes, aos supetões! Quando em um texto, certa feita, nomeei o Evando Nascimento “filósofo baiano”, a ele também pareceu engraçado – com licença para a comparação. Muito elegante, ainda, o agradecimento, o lance de ser promovida de referência bibliográfica a amiga. Só você mesmo, Heitor! Sempre uma surpresa - boneca russa.
Beijo. Andrea.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Agradecimento

Francisco, fazendo xixi no jardim:
- De nada, plantinha, de nada!

domingo, 11 de novembro de 2012

traço (vestígios)


Kate Macdowell: Vênus.
 
A B.

e quando menos
se espera

- porque em vitória
muito sempre mais de tudo
se espera -

seu olho quase verde,
a tez quase branca,
o pelo quase negro

descobre meu medo
atrás das cortinas de fumaça.

um passo apenas adiante
e a minha febre
te devora.

esboço (riscos)

Arthur Bispo do Rosário.
 
A R.

por enquanto, cuido:
cactus na cristaleira,
crianças comendo tranquilas,
cabelos lisos e tintos.

de repente a crise,
o coma,
as cãs...

seu novo olho
suave de lince

rasga uma cortina
: belo horizonte.

quem, o que és
fica onde permaneces
(tautológica presença).

de longe a minha
tromba d'água passional
não pode, não deve,
não quer te demover.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Sozinho

- Mãe, ontem eu me vesti sozinho, mas hoje eu desconsegui.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Guardião (entre irmãos)

René Magritte: Corujas.
 
- Vamos brincar de castelo, Francisco?
- Vamos, mas eu sou o guardião.
- Então eu sou a guardiã do guardião.

domingo, 4 de novembro de 2012

Poder

- Mamãe, hoje eu vou causar chuva!

Sempre

Portinari: Menino com pássaro (detalhe).
 
- Quantos anos eu vou fazer?
- Cinco.
- Dessa vez eu quero ficar com cinco anos pra sempre!

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Finados

- Mãe, por que a gente não vai pra escola hoje?
- Porque hoje é feriado.
- É dia de quê?
- Dia dos mortos.
- E a gente não vai comemorar?

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Surpresa

- Mãe, quando que eu vou morrer?

Retrocesso

Kate Macdowell: Escultura em cerâmica.
 
- Mãe, quando eu voltar a ser pequena, você compra uma outra caminha pra mim?