domingo, 18 de novembro de 2012

Vida de bailarina

Paula Rego.
 
Os que compram o desejo
pagando amor a varejo
vão falando sem saber
que ela é forçada a enganar,
não vivendo pra dançar,
mas dançando pra viver!


(Chocolate/Américo Seixas: "Vida de bailarina")

Três da tarde. Maria chora.

As lágrimas vão molhando o porcelanato e ela, enfim, lhes acha uma utilidade. Com o pé, empurra o balde de plástico. À noite, calcula quantos quilômetros caminhou por entre aqueles seis cômodos, conduzida pelo desinfetante.

Maria já deu duas voltas ao mundo sob o odor artificial da lavanda. Maria prende os cabelos no alto da cabeça. Semelham um espanador. Maria pinta os cabelos da mesma cor do espanador. Escreve na nota de compras, dependurada na geladeira: alho, bucha, batata, espanador. Maria penteia os cabelos como quem penteia o espanador. E se confunde com o lustre, a mesa de canto, o abajur, o aspirador de pó.

Marido saiu cedo, muito cedo, para o trabalho.

O abajur não acende mais, deu defeito. Marido chega tarde, não percebe que a luz se apagou. Maria brilha mais que o abajur com defeito. Maria desinfeta, Maria limpa, Maria arruma, mas a casa nunca está a contento. Maria está insatisfeita e a insatisfação é o seu último nicho de humanidade.

Maria elege responsáveis pela sua infelicidade. Maria não sabe mais a quem culpar. Marido sorri pelos cantos.

Ao meio dia Marido chega, irrepreensível, para o almoço. Marido esconde as mãos. Tem as costas caídas, os olhos baços, o fígado em frangalhos.

Piedade Maria não tem. Maria vive para os demais, como o milho vive para o frango, portanto a culpa da existência de Maria é deles. Ela quer juros e correções monetárias pela sua dor.

Marido não gosta de números. Marido gosta de nomes.

Maria quer governar o mundo, mas o mundo é um catre. Tranca, catraca, cárcere, calabouço. Maria se confunde. Maria teve um filho, porque um filho tinha de ser tido, tinha de ter sido. Maria tem um carro, porque um carro tem de ser tido.

Maria vai às compras, Maria confraterniza, Maria antipatiza. Maria afia as garras. Não pode mais usar biquínis. Maria luta contra a celulite. Maria tem o pé pequeno como o das gueixas. Nunca lhe foi permitido andar descalça. A filha também não anda descalça.

Marido não percebe, Marido não se importa.

Maria cozinha, Maria arruma, Maria passa. Maria organiza as gavetas, ordena as cuecas do Marido. A ordem vem de fora, alienígena, um meteoro. O amor é outra palavra. Maria já não ouve muito bem.

Maria compra lingeries, acende velas. Marido chega com hálito de cerveja, mas Maria não conhece o cheiro da cerveja. Não, Marido não bebe cerveja!

Marido desorganiza as gavetas, espalha copos pela casa. Marido vende, doa a televisão. A televisão não faz falta. Maria faz falta, como faz falta o sofá.

A criança rasgou o sofá. Maria castiga. Maria espancou um pouco a sua criança. Maria pensa como criança: mulher faz papel de mulher, Marido faz papel de Marido, criança faz papel de criança.

Marido rasga papéis. Marido escreve, escondido, lindas obscenidades. Maria empalidece diante de cenas de sexo. Maria é uma criança.

Às seis da tarde, Maria chora.

Marido se atrasa.

E Maria sabe, no fundo sabe, que a vida finda. Um dia, finda. Quando menos se espera, termina. Maria de repente se descobre mortal. Num átimo se vê entre os demais – todos mortais.

Maria morrerá.

Na geladeira perecerão os caquis. As gavetas, em breve, desordenadas. Só Marido, pleno de culpa, jamais restabelecerá a ordem interior. Jamais uma nova ordem, sem Maria, a faxineira, Maria, a arrumadeira, Maria, a babá, Maria, serviço bancário.

Marido dá dinheiro, Maria paga as contas.

Maria é uma santa. Marido geme na cama da vizinha. Marido tem vida dupla, de malabarista. Maria tem meia vida, de bailarina.

Maria deprime, Marido traz um presente. Maria fica contente. Por dias, fica contente.

Marido parece triste. Maria traceja tramas, Maria tem o dom das aranhas. Maria planeja a mortalha, mas o avesso do bordado traz um borrão.

Marido adoece, Marido se esforça, bate ponto às doze e às dezoito. Marido quer ser fiel. Marido definha. Cada culpa do Marido é uma vitória de Maria. Pena, Maria não tem.

Marido também morrerá.

Maria se procura, se acha, se sente vitoriosa. De repente entende que ninguém tem culpa. Aos poucos, Maria intui. A intuição é o seu forte, junto com o instinto materno, a fé em Deus, o amor eterno e os arranjos de Natal.

Maria intui que Marido é Marido e Maria é Maria. Não há nada que verdadeiramente a impeça de dar a volta ao mundo. Ela por vezes sente o influxo dos desejos, mas tem um protocolo a cumprir, até que a morte os separe. Maria é. Maria sabe que é, mas o que é mesmo que Maria é?

Marido bem sabe o que não é.

Maria tem medo. Ao erguer o tapete – o marido detesta tapetes –, Maria treme e lembra o muxoxo da mãe, fundo no quintal, numa terra distante, num tempo distante...

Maria não enxerga. Recorda apenas as lágrimas da mãe caindo na terra, suas fundas olheiras, a frágil imagem, fundida à do pai...

O pai desarrumava as gavetas...

E até a morte os separou.

2 comentários:

  1. Que lindo esse conto, crônica? Não sei como definir (embora seja desnecessário!). Incrível seu lirismo ao falar do quotidiano! A Maria.... Uma hora vou trabalhar com meus alunos este texto.
    Então, me passa seu e-mail outra vez, vou salvá-lo na minha agenda aki! Tô aqui imaginando aqui a cena de você atrasada e placidamente caminhando ou correndo para pegar o voo! kk Terminei agora um trabalho para apresentar amanhão no seminário de conclusão de disciplina. Tô um prego!!

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  2. Obrigada, Vinicius. O cotidiano é o ar (às vezes rarefeito) que respiramos. Meu endereço é: adelmaschio@gmail.com . Um grande abraço, com lembrança das "originais" e daquela ótima música tão mal tocada...

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