quarta-feira, 18 de maio de 2016

Não basta golpear, tem de escarnecer


Ao Grupo Globo de Telecomunicações não satisfaz promover o golpe de estado. À Rede Globo de Televisão não basta emburrecer a audiência; tem também de chamar de burra, em alto e bom som, no ato mesmo em que a emburrece, sendo em geral aplaudida por ela.
O que vai aqui é óbvio para qualquer pessoa que não ignore a existência da superestrutura, mas nem por isso é menos revoltante, e não devemos nos iludir acreditando que a maioria o note e não precisamos mais falar sobre isso. Porque, é claro, em 2016 ainda há quem não creia que o homem chegou à Lua, e há também quem rechace a teoria da evolução das espécies.
Mas eu estou falando do Grupo Globo, e ele não duvida; ele sabe.
Na sexta-feira 13, um dia após a possessão de Temer (maio de 2016, ano do golpe), ia ao ar mais um capítulo da série “Liberdade, liberdade”. Durante grande parte do episódio, a personagem Alexandra (Juliana Carneiro da Cunha), uma idosa com os cabelos incrivelmente curtos para o século XIX, perambula perdida por ruas e praças, mendigando e recebendo na face o escárnio do povo que passa, casais que passeiam de braços dados, famílias que saem da igreja. Ah, a igreja! A mulher está trajada com roupas que, embora sujas e rasgadas, não escondem a nobreza da sua condição anterior. O golpe que recebeu no pescoço, em close, ainda sangra.
Na cena anterior, no meio da mata, Xavier (Bruno Ferrari) havia se aproximado e perguntado seu nome, que ela já não lembrava. No resumo prévio desse capítulo, publicado dias antes no site da série, assim que Xavier a encontra, a mulher desmaia e é amparada por ele. Na edição final porém o rapaz estranhamente deixa que a senhora idosa e ferida parta sozinha pelo meio da mata.
Enquanto isso, Joaquina, a filha do Tiradentes, recebe o famigerado livro do pai. Numa atuação de fazer inveja a qualquer vendedor de feira livre, a atriz Andreia Horta lê, se emociona com a dedicatória “para Joaquina, que herdará um país livre”, e chora. E chora. A personagem de Lília Cabral secunda: “um país livre, é esta a sua herança”.
E se resume a isso, por enquanto, a genialidade dos profissionais dessa grande empresa produtora de arte e cultura (profissionais que, em massa, apoiaram o golpe de estado que resultou, já nas suas primeiras horas, na extinção do Ministério da Cultura): transformar num meme fútil e leviano um dos eventos mais importantes da história do Brasil e da luta do seu povo pela liberdade: a Inconfidência mineira.
Ora, todos sabemos que essa empresa tem capital suficiente para manter o aparato tecnológico necessário à criação e à propagação diuturnas de um conjunto de ideias que já foi capaz inclusive de eleger um candidato a presidente da república, embora esse tempo já nos parecesse um pouco distante, antes do último capítulo do golpe.
Também sabemos que a Globo pode comprar profissionais competentes, tecnicamente falando. Só que técnica não é tudo, e o que não nos parece muito inteligente é justo a ostentação ostensiva, por assim dizer sobeja, desse mesmo poder de manipulação e desse ódio de classe mal dissimulado.
Dissimulado? Até que ponto tem sido necessária a dissimulação? Até quando a classe trabalhadora do país aguentará calada? Foucault afirmou um dia que ninguém suportaria o poder totalmente cínico ou como mero impositor de censura. E aí quase ouço a resposta, sempre cínica, dessa empresa que domina a nossa mídia golpista, racista, fascista, reacionária, corrupta e sonegadora: - Que é isso, companheiro petralha? Não ostentamos quase nada! Nós somos capazes de muito mais!
E assim esfregam esse poder de manipulação, de modo debochado, bem na cara daquele que lhe dá audiência, ou seja, daquele mesmo que lhe dá esse poder. Um poder que no fundo resulta do valor produzido justamente pela classe trabalhadora de que essa elite empresarial depende, para ter aos seus pés produtos e serviços.
Mas o problema do poder sempre foi o perder a mão, e, para que saibam a dose certa a aplicar para a sua desejada propagação, é preciso que conheçam melhor o paciente!
O escárnio é a arma dos que não têm argumentos, e é a um verdadeiro show de zombaria e cinismo que temos assistido ultimamente no país, em todos os níveis do raciocínio e da produção do espetáculo, da feira livre ao Senado.
Mas não nos enganemos: não há quem ria de dentro da sua própria ignorância que não receba de volta seus frutos estragados, mais cedo ou mais tarde.
Vamos à luta para que seja mais cedo!

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