“Mães
zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas...” (Gilberto
Gil)
As palavras
estão à nossa disposição. Ao que parece, podemos nos servir delas ao bel prazer. Algumas
vezes chegamos a crer que realizamos plenamente esse direito,
como um macaco realiza o seu desejo diante de um cacho de bananas. Algumas
palavras atraem feito ímãs, outras nos saltam de dentro como se
tivessem nos causado uma indigestão. Acontece que, como as bananas, as palavras têm
casca. Parece um exagero dizer que, em prol da vida, é preciso remover a casca
das palavras.
Durante esta semana
chamou-me à atenção o uso da palavra “normal”, que ouvi três vezes,
pronunciada por pessoas diferentes, em diferentes ocasiões.
A primeira
foi numa loja. Um homem bastante jovem se aproximou e pediu uma dica sobre que roupa deveria comprar para a filha pequena. Enquanto eu fazia os cálculos divinatórios sobre a numeração, cujo tamanho, no Brasil, sempre esteve em defasagem com relação à idade das crianças reais, o
rapaz, talvez para quebrar o silêncio insuportável de vinte segundos, me veio com esta: “Antes era mais fácil comprar, porque menina gostava de
princesa, e menino de super-herói, que é o normal!”
Nessas ocasiões vem à tona aquela vontade
de argumentar, de dizer que, ainda que fosse ele mesmo quem quisesse variar ou fugir à norma, em todas
aquelas centenas de araras à nossa disposição, por mais que lhe parecesse que
sim, ele jamais conseguiria fugir à normalidade, porque cada gravura daquelas, cada cor, cada botão, cada sutil diferença nos desenhos das
golas, cada detalhe já tinha sido pensado e desenhado sobre uma prancheta, planejado por meses
a fio para nos colocar a todos dentro de uma norma, ainda que a
intenção fosse justamente nos dar a ideia contrária, a de que somos livres para
escolher e de que as possibilidades ao nosso alcance são infinitas.
Claro que
enquanto eu olhava as roupinhas à minha frente e pensava sobre isso o homem já tinha mudado de ideia. Quando me voltei para ele, vi que caminhava em direção às prateleiras de acessórios. Mas a última palavra dele
ficou comigo: normal. Era o que ele desejava para sua pequena filha: que fosse uma criança normal, com uma vida
normal, vestindo roupas normais.
A mim parece triste um tempo em que o desejo se reduza a tão pouco.
Esse foi o
primeiro caso.
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