quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Pés e cabelos

Van Gogh. Par de botas.
Museu Nacional Vincent Van Gogh, Amsterdã.

Francisco se atrapalha com tênis e sandálias. Seu pé comprido e fino - idêntico ao meu em cada traço, veia, canto de unha - parece se ampliar para os lados junto com a borracha colorida da papete, e então ele se desequilibra, toca nas coisas, tropeça e cai; foi feito para andar descalço. Em compensação, deve poder escalar pedras com leveza e admirável facilidade. Como a mãe. Feito um gavião ou um bode. Eu mesma, embora não tire as sandálias sequer para o banho, de tênis me sinto um alien: tenho medo de tropeçar na porta da sala de aula e cair direto lá dentro. Acontece mesmo de, por vezes, enquanto caminho, um pé esbarrar no outro, embora seu alinhamento seja perfeito. Nunca me acostumei a esses tênis rechonchudos que todos usam, aparentemente usufruindo deles muito conforto. O último que comprei está intacto no armário há exatos dez anos. É possível que a borracha tenha ressecado e, mesmo, que não me sirva mais, porque, ao contrário do que dizem, o corpo muda sempre - antes e depois dos quarenta. Ter passado pelos anos oitenta em plena adolescência, sem calçar um par de tênis, parece estranho, hoje, mesmo para mim, porém mais me assunta saber que cheguei aos dezoito sem ter vestido nunca a onipresente calça jeans, outro incômodo no corpo de meu pequeno filho. A mais antiga lembrança do assunto que trago comigo diz respeito a uma criança pobre, porém, contudo, todavia filha de costureira, o que muda muita coisa no mundo das aparências, ou seja, no mundo. Eu devo ter desejado, sim, me embrulhar em justos jeans, como o fazia a maioria das garotas da minha idade, mas não com muita força, que naquele tempo a imposição não tinha o alcance de hoje. E seria uma dupla afronta rejeitar as saias e vestidos tão lindos e tão baratos feitos pela minha mãe... É certo que às vezes ela exagerava um pouco, e eu ia à escola digamos um pouco bonita demais. Lembro-me de uma vez em que a dona nilda, assinante de revistas de moda e costureira das mais requisitadas na vila velha, resolveu estender deus dotes até os meus longos cabelos, e construiu ali um alto coque tipo b-52, que aos oito anos quase me matou de raiva e vergonha. E medo de que os colegas descobrissem que por baixo da banana brilhosa e loira que os fios lisíssimos compunham havia nada mais nada menos que uma bucha de bombril. Desgraça. Infelicidade. Aquilo me destruiu o dia, porque eu não podia desfazer o penteado. Depois de tentar fugir, cedia, contrariada e entre lágrimas, à estética obstinação materna. Obedecia sem que ela precisasse de mais argumentos. Ao caminhar em direção ao colégio, onde me encontraria com os meus colegas negros e pobres para o capítulo mais ridículo de uma já difícil relação, sentia no ouvido, feito o som de um violino fúnebre, o ranger dos finos fios de aço. Só sei dizer que a bucha foi descoberta, pinçada, puxada, espalhada, lançada pela sala aos pedaços. Naquele dia devo ter odiado minha mãe, como em tantos outros. Mas foi bom, para sentir de uma só vez como é ter cabelo de bombril e ser discriminado em público.

2 comentários:

  1. Andreia,
    Seu texto é sempre lindo, com sutilezas vc mexe no fundo da alma, corta fundo como um punhal delicado. Nao teve como nao rir e chorar do penteado com bucha de bombril.
    Me cadastrei como seguidora, vc viu? Pode fundar agora uma seita ou um partido politico, vou seguir.
    Beijos

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  2. Ahahahahah! Seu humor é excelente mesmo! Viu só como é que se coopta alguém? Você não foi fácil de fisgar... Adorei ver sua foto ali. Olha só: na pia só uso esponja! Por que será?

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